Emoticontos escrita por Palas


Capítulo 2
Julgamento




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   Pois que o Mal foi encontrado - calmamente jogando em uma Lan House - e, em rede nacional, teve sua prisão decretada. Como precisassem de uma acusação, disseram logo que ele era suspeito de aliciar menores para o tráfico de drogas e a boleiragem. É verdade que a imprensa foi muito mais rápida que a turba ignara que prontamente se amontoou na rua para ver quem era aquele elemento vestido com um sobretudo preto, mesmo no calor do Rio de Janeiro. Aquilo era um furo e tanto. Afinal, o próprio Mal,  causador de toda a desgraça humana - sendo a desgraça em si não mais que uma tatuagem em seu corpo - estava sob custódia da polícia e, logo mais, quem sabe os problemas da humanidade estariam resolvidos?     Seguindo o hábito brasileiro, alguns anos depois ele teve seu julgamento - também transmitido em rede nacional - conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, só pra dar ainda mais importância e pompa à coisa. Naturalmente, foi aprovado um ajuste de vinte e sete por cento no salário para todos os membros do Judiciário no país, para suportar a enorme pressão que seria aquele embate.     O Mal foi chamado como primeira e única testemunha, até porque não tinha como haver muitas outras - E o réu havia dispensado advogados. O promotor começou.

     "Então, senhor Mal... O que estava fazendo no Rio de Janeiro?"

     "...Eu moro lá." - Respondeu o elemento, depois de hesitar um pouco por achar a pergunta um tanto desnecessária.

    "Certo. Bem, você é acusado de ser o motivo de todos os problemas do mundo. Todos os males do mundo através da História seriam culpa sua, segundo essa afirmação. Temos infinitas provas disso. Temos gravações suas, por exemplo, confessando ser o inventor do assassinato e do sequestro."

    "Ahn." - Grunhiu o Mal, aparentemente muito alheio a tudo aquilo.

    "Ora, eu poderia considerar isso como uma confissão, não poderia?" - Gritou o promotor, triunfante, fazendo com que o juiz o reprimisse e pedisse para continuar. Para não dar muito na cara.

    "Erhm, bem" - Refez-se o homem, ajustando a gravata - "O que tem a dizer?"

    "É, fui eu quem inventou todas essas coisas aí. Se eu cobrasse royalties, estaria rico e poderia subornar todos vocês." - Disse, calmamente, o réu, olhando com impressionante desprezo o promotor, mesmo que de baixo para cima.

    "Mas que cínico! Olha, juiz, ele confes-"

    "No entanto" - Interrompeu - "É por isso que vocês vivem, não é?"

    O juiz levantou uma sobrancelha, olhando para o Mal com curiosidade. "Explique-se", pediu.

    "Com prazer, Meritíssimo. Não fosse por minhas invenções, vocês estariam passando fome. Curiosamente, vocês estariam agora dando um tiro no próprio pé se me prendessem, se me enforcassem, se fizessem o que quer que seja. Vocês só estão vivos por minha causa."

    O juiz, como o promotor, abaixaram a cabeça. De fato, eles tinham bocas para alimentar e viagens para fazer. Viviam do erro dos outros, não podiam negar. Mais ainda - Eram eles quem definiam o que era o erro dos outros. Que profissão mais infeliz era aquela, pensaram os dois.

    Entretanto, o júri era popular e nada tinha a ver com as filosofias pessimistas dos doutores da lei, e por isso um membro mais inteligente pouquinha coisa se levantou e disse, apontando para o promotor.

    "Ei, vocês! Parem com esse mimimi, agora. Soltá-lo seria egoísmo da parte de vocês, mesmo tendo ele confessado. Portanto, se vocês continuarem com essa palhaçada, o povo vai causar uma revolução aqui mais louca que saci de patinete, e vamos prender os três!"

    O promotor lentamente levantou a cabeça, inconformado - Não estava sendo egoísta. Não estava pensando apenas no seu emprego, como também pensava no emprego de todos os advogados, juízes ministros e coisas que tais no mundo todo. Nenhum deles teria mais necessidade no mundo. Mas, bem, não importava.

    "Dane-se" - Disse ele em voz alta, fazendo pasmar todos que estavam ali, especialmente os milhares de repórteres - "Vamos continuar com isso. Vamos salvar a Humanidade."

    O Mal sorriu.

    "Seria mesmo egoísmo de nossa parte deixar você solto apenas para podermos sobreviver. Egoísmo, aliás, que é ferramenta sua também. Bem, para prosseguir, acho que temos que definir quais são suas invenções."

    "Além do ateísmo e da religião" - Começou o Mal, com voz  cansada, levantando-se da cadeira. O juiz ordenou que se sentasse, mas quem ligava, àquele momento? - "Eu poderia falar o dia todo das coisas que fiz, todas muito danosas à Humanidade. Tem esse mesmo Egoísmo de que vocês falaram e que está dentro de cada um de vocês, tem a Arrogância, a Doença, o Medo, o Crime, a Guerra, enfim. Mas, sem sombra de dúvidas, aquela de mais me uso é a Verdade."

    "A... Verdade?" - Perguntou, estarrecido, o promotor.

    "É. A Verdade. O maior objetivo da vida é a felicidade, certo?"

    "Devemos concordar."

    "Então. Sua mulher está te traindo. Nesse exato momento."

    "Com base NO QUÊ você faz essa denúncia?" - O promotor fechou a cara e começou a berrar - "Minha mulher é MUITO honrada e só ficou em casa hoje para cuidar do bebê! Ora, onde já se viu? Como VOCÊ poderia saber disso?"

    "Eu sou o Mal, cara, eu tenho que saber quem está usando meus inventos."

    O juiz deu uma risadinha que fez desabar o promotor, afinal aquilo era muito certo. É, não tinha erro. Vendo isso, o Mal prosseguiu.

    "Imagino que você seria muito mais feliz se não soubesse disso. Veja como está triste. Como está arrasado. A Decepção é uma das minhas criações preferidas, sem dúvida."

    O promotor, de cabeça baixa e quase chorando, levantou a cabeça com ódio e rancor extremos, começou a balbuciar alguma coisa batendo uma mão contra a outra. Por fim, entretanto, parou de súbito e disse "É".

    "Provei, então, que a Verdade é o que mais impede vocês de serem felizes. Se vivessem em sonho eterno, nunca precisariam fazer nada do que não gostam. Seria perfeito, não é?"

    O júri concordou, em coro. Depois, o juiz resolveu que aquilo tinha que terminar.

    "Olha, acabou a brincadeira. Eu, sem autorização de ninguém, e dane-se isso, estou condenando você a quarenta e cinco anos de reclusão por... Por existir. Com direito a habeas corpus e redução da pena, caso tenha bom comportamento na cela. Boa sorte. Homens, levem ele algemado."

    O júri, bem como os repórteres, e ainda os policiais, gritaram de euforia. Finalmente a Era de Ouro da Humanidade começaria. Nunca mais aconteceria nada de ruim ao mundo, e o Paraíso se instalaria na Terra. Aquele Julgamento era a nova Arca da Aliança.

    "Mas peraê" - Disse o Mal, depois de esperar todo mundo parar de celebrar - "Nada que foi dito aqui é mentira, certo?"

    "Jurada sobre a Bíblia" - Respondeu o juiz, a essa altura já dando tapinhas nas costas do promotor - "E daí?"

    "Daí que vocês usaram a Verdade para me acusar e condenar, imbecil. Isso significa que, se eu sou digno de condenação, vocês também o são. Vocês não podem utilizar da minha própria invenção para me acusar sem se tornarem meus discípulos. Então, sou igual a todos vocês e, se me dão licença, vou ver o jogo do Brasil. Passar bem."

    E saiu do tribunal, já tirando o celular do bolso porque o jogo já devia estar nos quinze minutos do segundo tempo.


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