Clube Do Imaginário escrita por ShoutOut


Capítulo 7
7 – Um pouco de filosofia. Um móbile.


Notas iniciais do capítulo

E EU ACABEI OS PRIMEIRO RELATOS!! AI ESTÁ O TÃO ESPERANDO CAPÍTULO O RUDY E O MUNDO GRITA!! ESPERO QUE GOSTEM!! SÓ AVISANDO, A HISTÓRIA VAI SER DIVIDIDA EM TRÊS PARTES, ESSA É A PRIMEIRA, E TIPO, VAI ACABAR, PROVAVELMENTE, NO CAPÍTULO NOVE. =D



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7 – Uma pouco de filosofia. Um móbile. E o mundo para pela primeira vez.

1ª relato de Rudy Hetfield

Stephen King escreveu: “ Monstros são reais, fantasmas são reais, também. Eles vivem dentro de nós. E algumas vezes, eles vencem”

Pense. Monstros e fantasmas realmente existem dentro de nós. De todos nós. Não temos escapatória deles. É a mais pura verdade.

Isso me faz pensar. É uma espécie de projeto pessoal. Caso alguém, ou algo fosse capaz de “caçar” esses monstros e fantasmas internos das pessoas, o mundo mudaria. Talvez. É uma coisa que eu realmente queria que acontecesse.

Mudar o mundo. É algo que eu realmente quero fazer, só não sei por onde começar.

Peguei o nanquin e comecei a fazer o acabamento do desenho que estava fazendo do meu vizinho, um senhor cego, que estava sentado na varanda de sua casa com a bengala sobre as pernas.

Talvez o mundo fosse melhor se ele fosse exatamente como um desenho. Algo simples e controlável, onde tudo se originasse de uma coisa só. Alguém poderia controlar tudo para que nada de errado acontecesse. Eu poderia fazer isso. Eu queria poder fazer isso.

Os monstros e fantasmas seriam extintos.

Comecei o sombreado, era uma parte difícil, tinha que parecer com o real, dar a ideia de luz, sombra e tudo mais. Olhei para o meu vizinho ainda lá, parado, parecia está pousando para a o desenho, é meio irônico pensar que ele é cego e nunca verá o desenho.

Se o mundo fosse como um desenho, ele seria mais simples, verdade. Ele mudaria, verdade. Mas talvez perdesse a graça, o movimento, o acaso.

O único problema o mundo são os monstros e fantasmas das pessoas. Elas têm que aprender a lidar com eles.

Eu tento lidar com os meus. Deixo-os trancafiados dentro de mim para que não afetem os outros. Sei que parece algo insignificante, mas é só pensar comigo: “Menos alguns monstros e fantasmas assombrando o mundo”.

Talvez alguém. Em algum dia. Em algum ano. Consiga me dizer se o que estou fazendo é certo ou errado, porque eu não sei.

Borrei o desenho. Foi com o nanquin. Não tinha conserto. Talvez nem o mundo tivesse, mas não custava nada querer mudá-lo.

[Sério Hansel? Eu não falei nada do seu relato, então cala a boca]

Na verdade não sei por que decidir começar o relato contando isso, talvez porque meu vizinho é alguém realmente interessante. E naquele dia, ele realmente me fez pensar sobre o clube, mesmo de maneira indireta.

Quando o desenho não deu certo resolvi jogar ele para dentro da minha mochila e ficar olhando o movimento da minha rua. Nunca gostei daquele lugar. Casas muito juntas que pareciam alegres por fora, mas...

Exemplos: tinha a casa da família Lorcan, que ficava a duas casas a esquerda da minha. Todo mundo sabia que a mulher do Senhor Lorcan o traía com garotos com idades para serem seus filhos. Acho que meu irmão já deu em cima dela. E o senhor Lorcan vivia dando presentes para ela. Lembro de ter rido como um condenado quando ele mandou uma daquelas mensagens faladas de umas empresas para ela.

Tem uma senhora da casa do lado direito da minha que era roubada por todas as empregadas que tinha, sem exceções, e ainda tinha a filha que, segundo o meu irmão, era a “rainha da orgia chapada” na cidade. Já até a peguei saindo correndo da minha casa. Nenhuma escapava do Mason.

Outra era o meu vizinho cego. Ele costumava brincar comigo e o meu irmão quando éramos pequenos. Ele vivia com os dois filhos mais velhos. Uma mulher e um homem. Acho que sua esposa tinha morrido antes mesmo de eu nascer. Os dois irmãos tiveram uma briga grande com o pai e quando foram ver um deles empurrou o pai contra um armário cheio de objetos com cristais. Os cristais acabaram rompendo as pupilas dele e ele perdeu a visão. A filha dele saiu de casa agora quem cuida do senhor é o filho mais velho que só está interessado no dinheiro do senhor. Agora ele passa maior parte do dia sentado na varanda numa cadeira de balanço fitando o vazio. É meio triste. Ainda é um senhor cheio de energia e com o físico bom. Vê-lo morrendo na frente da minha casa é meio deprimente.

Sei que os outros dois primeiros exemplos parecem piores, mas o senhor era o que mais me comovia. Talvez porque ele tentava, mesmo, fazer com eu e o Mason, o meu irmão, fôssemos normais, como dois garotos de dez e catorze anos, respectivamente, principalmente depois que o nosso pai foi embora.

Um imbecil estava correndo na calçada numa bicicleta e gritou bem alto:

- Ei coroa, tira o pé daí!

Devia ser algum idiota de alguma outra rua distante da nossa. O Senhor se levantou, confuso, e o cara parecia nem ligar. Parecia não está vendo a bengala.

- O filho da mãe, para essa porra de bicicleta, não tá vendo que ele é cego?!  -gritei com toda a raiva que podia, o cara parou de imediato e até pediu desculpas. Melhor.

Fui ajudar o senhor a se sentar novamente.

- Olá Rudy. –ele disse. Quando o ajudei a se sentar novamente, me assustei por ele saber que era eu, fazia anos que mal nos falávamos.

- Senhor Lewis. –disse com voz neutra, poderia assustá-lo depois do grito que dei contra o idiota que quase o atropelava. Tive que respirar bem fundo para conseguir, minha visão estava um pouco avermelhada por causa da raiva.  – Como está? – saiu quase como um sussurro.

Ele disse que estava bem e me pediu para me sentar com ele por um tempo. Eu sabia que tinha que sair logo de casa, podia me atrasar para o clube e me meter em problemas, mas acabei aceitando. O senhor Lewis reclamou por que eu nunca mais conversei com ele e perguntou como tudo estava na minha casa agora que era só eu e o meu irmão, e como estava com a minha “terapia ocupacional”, disse a mesma coisa que Mason falava para dizer a todos: “Estamos bem, minhas crises se tornaram cada vez menos frequentes e as pinturas cada vez melhores, Mason está ganhando a vida do jeito que quer, honestamente, e a mãe tá feliz na outra cidade.”

O que não era verdade desde a primeira letra a última, mas saiu automaticamente, era melhor assim.

- Rudy. –ele virou o rosto para mim, o que foi meio impressionante.

- Sim. –falei tentando parecer um garoto educado.

Então ele falou algo que eu nunca mais vou esquecer:

– Garoto, alguém já lhe que verdade e mentira não existem? A coisa mais confusa e errada do mundo pode ser a mais certa, depende do jeito que você ver e como você estiver. Talvez você possa dar um passo pensando ser o errado, mas na verdade é o certo. Essas coisas de destino, ninguém sabe ao certo.

Estranho como aquilo entrou na minha cabeça e foi associado ao clube, a briga, a Harley, Tessa, Ramone, Hansel, Garrett e Max, a tudo.

Era errado me envolver com as pessoas, eu tinha o fantasma das crises me acompanharia, e eles tinham visto uma. Tive que usar todo meu autocontrole para não acabar com alguém ali. Quase acabei com meus sais de Lítio quando cheguei a casa de noite, depois de ter ficado rodando que nem barata tonta pela cidade, ainda tive tempo de escutar Mason dando uma festa em casa. Roubei uma garrafa de whisky e fui para o meu quarto (que graças a que você quiser é no sótão e quase a prova de som) me tranquei e fiquei lá.

Parecia errado demais me envolver com eles, principalmente como Harley queria. Era errado e idiotice. Parecíamos estar num exército indo para a morte e por isso tínhamos que nos conhecer.

Mas será que era o certo? Que só assim a verdade sobre para que diabos eu sirvo nesse mundo só apareceria desse jeito?

É, eu literalmente sou meio filósofo.

            Despedi-me do Senhor Lewis e fui correndo pegar o carro do meu irmão. Ele estava dormindo. Como sempre fazia quando chegava de manhã em casa, então não iria falar nada sobre o carro e eu tinha podia mentir que a carteira dele era minha, éramos parecidos para tanto. Peguei o carro porque estava atrasado, na verdade gostava de ir a pé para a escola.

            Mason tinha me ensinado a dirigir assim que a mamãe tinha sido chamada para trabalhar na capital. Assim eu podia pegar o carro e resolver minha vida sem que ele desse uma de pai. Ainda bem que ele me deixou em paz. Tudo que eu menos precisava era de mais coisa para me irritar.

            Resolvi pegar o caminho mais longo, observar um pouco aquela cidade no fim do mundo. As casas passando como borrões, as falas que viravam sem o mínimo nexo, algumas pessoas que tinha que colocar som num volume absurdo. E no outro lado tinha a floresta, onde várias casas antigas estavam abandonadas. Eu ainda me lembrava de algumas delas que meu irmão tinha me mostrado. Eram verdadeiras obras de arte da arquitetura perdidas na floresta.

            Tudo era meio instigante para mim. A contradição presente na minha cidade.

            Cheguei logo a minha escola e estacionei o carro de qualquer jeito, não me importava nenhum pouco que Mason levasse uma multa por minha causa, talvez ele lembrasse que tem um irmão mais novo assim.

            Encontrei Harley, Tessa e Ramone andando juntas, de braços dados conversando.

            Ainda consigo visualizar a cena com detalhes, deve ser porque tenho memória fotográfica, algo assim, desenvolvi isso depois de sete anos desenhando e pintando.

            Tessa estava bem no meio, com os cabelos vermelhos presos numa trança que lhe caia sobre as costas. Pela movimentação da trança ela parecia estar animada, conversando sobre algo que lhe agradava talvez. Ramone estava com a mão livre sobre a nuca e parecia está sorrindo ou rindo algo assim, seu cabelo estava desarrumado, mas ela parecia não ligar para isso. Harley estava na outra ponta, observando as duas, até que do nada eu pude ser um meio sorriso surgiu em seus lábios.

            Eu não sei por que naquela hora pareceu que o mundo parou. Tudo congelou e uma mistura maluca de sensações começou a surgir dentro de mim. Não sei como defini-las, mas posso dizer que elas me fizeram querer sorrir sem motivo. Talvez fosse a cena, das três garotas, que estava perfeita até demais.

            Perfeição e simplicidade estavam juntas numa coisa que para mim era errada.

            Talvez alegria fosse contagioso, como algumas pessoas falavam.

            Fiquei um tempo estagnado no mesmo lugar fitando o vazio, parecia um doente mental, então lembrei que tinha a reunião do clube e por mais que não gostasse tinha que ir. Sai correndo.

            Entrei na sala normalmente, controlando a minha respiração para não demonstrar o cansaço.

            Harley me lançou um olhar estranho, que misturava raiva e felicidade e fez um movimento com a cabeça para que eu juntasse ao resto do grupo. Eu não escutei uma palavra do que eles falaram.

            Fiquei com a fala do senhor Lewis na cabeça por um bom tempo. Talvez eu estivesse muito errado sobre algumas análises que tinha feito, como as garotas, para mim era errado, mas aquela cena, que não saía da minha cabeça de jeito, estava certa, como estava certa, e para mim aquela amizade maluca de alguns dias era erro, burrice, idiotice, loucura... Várias coisas.

            Sim, eu sei que aparências enganam, eu sei, juro a quem quer que esteja vejo esse relato, pode olhar nos meus olhos e saber que eu sei disso. Mas... Era confuso, eu queria saber o que tudo aquilo significava.  

            Olhei para eles novamente com os braços cruzados sobre meu peito. Não escutava uma só palavra. Então nem venha me perguntar sobre o que eles conversavam, mas sei exatamente o que fizeram.

Gestos falam mais do que palavras, essa é a minha opinião.

            Max levou uma barra de chocolate e deu um pedaço a todos, deu para ver que ele pensou em fazer o mesmo comigo, mas acabou desistindo. Garrett, como sempre tinha levado alguma tarefa que não tinha terminado, ou talvez, era uma tarefa que só cobrariam daqui alguns meses, ou algum trabalho extra que passaram para o gênio. Não sei.

            Tessa parecia um pouco alegre, conversando com os outros sobre alguma coisa que ela sabia muito a respeito, talvez livros, coisas assim, só ficava meio vermelha quando Hansel a cortava em alguma hora. E Ramone acabava dando um tapa no ombro de Hansel em resposta.

            Agora Harley... Eu não entendo essa garota, juro.

            Ela olhava para tudo, até o último detalhe como eu estava fazendo, mas participava das coisas. Seus olhos brilhavam de um jeito diferente de tudo que eu já tinha visto. Parecia querer saber de tudo, e fugir de tudo ao mesmo tempo.

            Olhando para ela, e depois para as outras duas garotas, eu começava a me lembrar da sensação que tinha tido mais cedo, que o mundo parecia ter parado, queria repeti-la a qualquer custo.

            Só que aquela cena, de alguma forma, me deixava confuso. Era como se de alguma forma, uma força sobrenatural tivesse postos a três ali, na minha frente, para que eu visse tudo. Visse Tessa animada, Ramone com a mão na nuca e o sorriso singelo de Harley, os três juntos.

            A cena tinha algum significado, só que eu não conseguia colocar tal coisa em palavras. Realmente me deixava nervoso não entender isso. Muito nervoso. E muito confuso.

            Uma hora eles começaram a reclamar de alguma coisa, então Ramone subiu na mesinha, olhou para câmera e gritou:

            - Não somos seus prisioneiros!

            Aquilo foi até mesmo engraçado, ela parecia querer gritar no ouvido da diretora, soltei uma risada tão baixa que ninguém escutou.

            - Somos sim. – Hansel falou. – Por mais que eu não goste. Três horas por dia obrigados a ficar aqui. Sem nada para fazer a não ser falar de coisas que aconteceram com vocês.

            - Podemos mudar o horário. – sugeriu Harley. – Falar com a Miranda para que seja mais cedo, sei lá.

            - Não é isso. – Max falou. – É essa droga de sala que cheira a prisão. – ele apertou a irmã contra si.

            Foi ai que meu cérebro deu uma guinada muito estranha. Será que eu estava concordando com o errado? Concordando com a Miranda para me proteger de algo que eu nem sabia se era certo? Eu estava concordando com uma espécie de prisão injusta que uma diretora de escola de cidade do interior metida a carrasca tinha me botado?

            Eu conseguia ouvir a voz de Miranda na minha cabeça falando: “Você tem o direito de permanecer calado e tudo que você disser pode ser usado contra você no tribunal”

            Tive uma vontade enorme de esmurrar alguma coisa.

            Olhei ao redor, tinha que me acalmar, meus sais estavam em casa, então...

            - Vou dar uma volta. –falei tão baixo que acho que ninguém me escutou.

            Melhor.

            Sai rapidamente, aquela sala estava me sufocando. Era verdade, por mais ódio que eu sentisse, era verdade, eu estava concordando com uma prisão por puro... Instinto de sobrevivência.

            Andei pela escola, agora vazia, com as mãos nos bolsos. Por mais que aquele lugar cheirasse a injustiça, era bonito, de verdade, bem bonito, com árvores em vários lugares que dava um certo ar de... Lugar antigo, contra a modernidade.

            Não sei, acho que nunca gostei da modernidade. Só o que eu gosto mesmo, são as novas baterias que inventam por ai, os nanquins e, talvez, os livros com técnicas de desenho.

            Foi só olhar para os armários que tive a impressão que tinha esquecido alguma coisa.

            “O que será?” fiquei pensando enquanto ia para o meu armário.

            Assim que eu o abri o objeto caiu na minha frente.

            Ah, claro. Eu sou idiota! Como eu posso ter esquecido aquele livro? É o meu livro preferido de técnicas de desenho.

            Religiosos tem a bíblia e eu tenho aquele livro, eu sei, é estranho, eu bateria numa freira se ela tentasse trocar aquele livro por uma bíblia.

            Abaixei para pegar o livro e algo estranho aconteceu, logo em baixo dele, tinha um envelope imaculadamente borrado que eu acho que quem escreveu estava com uma crise momentânea de Mal de Parkinson, algo assim.

            Peguei-o e pus no bolso. Tinha que voltar para clube. Depois veria de quem era. Dei um sorriso involuntário enquanto fazia o caminho de volta para a sala 13. Como assim alguém tinha me deixado uma cartinha? Isso era mais estranho do que eu.

            Ramone perguntou por que eu sumi, e disse que se eu ferrasse com o clube iria me matar. Girei o indicador no ar em cima da minha cabeça e eu acho que ela entendeu. Acho que fiz algo que todo mundo estava querendo fazer, era compreensível.

            Eles começaram a discutir sobre o que iria dizer para a Miranda que fazíamos até que o celular do Garrett alarmou. Olhei para o computador que tinha na sala, sim, tinha um, e pensei que podíamos usar aquilo para alguma coisa, mas como sempre... Ser antissocial por natureza pareceu uma doença mental e me tirou de lá.

            Andei normalmente até o carro do meu irmão. Vi Hansel indo para a para de ônibus e Ramone indo com ele, acho que os dois estavam brigando, não sei.

            Entrei no carro. Girei a chave. Era melhor ver o bilhete em casa. Estava escurecendo e como meu irmão parecia um vampiro que só conseguia andar a noite, era melhor eu voltar logo.

            Cheguei a casa em dois tempos, joguei as chaves e a carteira de motorista do meu irmão sobre a mesa e corri para o meu quarto.

            Liguei o som no máximo e peguei uma tela em branco. Estava com vontade de pintar alguma coisa, tenho isso às vezes.

            Lembro-me de tentar começar a pintar ali mesmo em pé, mas não consegui, era estranho. Tinha a cena na cabeça, mas não conseguia pintar ali.

            Deitei-me na minha cama olhando para o móbile com miniaturas de aviões da segunda guerra mundial que eu tinha feito com o Mason quando tinha nove anos.

            Nunca que eu imaginaria naquela época que depois de ter feito uma das melhores coisas que tinha aprontado na minha vida, ela daria uma guinada como aquela. Tudo parecia está bem então BUM era como se a bomba de Hiroshima tivesse explodido bem na minha casa. Os gritos e as surras antes existiam, como existiam, era quase toda noite quando ele voltava bêbado para casa, mas eu sobrevivia, a mamãe sobrevivia, o Mason sobrevivia. Tínhamos um ao outro e também, acho que a mamãe nos fazia entender tudo aquilo, não sei ao certo, era muito imaturo para ter certeza.

            Só um episodio que mudou tudo.

            Virei só mais um sobrevivente de uma guerra. Alguém que nunca mais esqueceria o que era o desespero. Alguém que nunca mais encontraria um lugar que se sentisse em casa.

            É meio paranoico, é verdade, mas você não esteve no meu lugar. Eu, falando a verdade, não sei direito como definir o que é estar no meu lugar. Acho que só quando eu morrer vou saber definir. Ouvi falar de um livro chamado “Memórias Póstuma de Brás Cubas” e tinha uma passagem que ele falava assim “A primeira virtude de um morto é a sinceridade.”

            Eu realmente concordo com isso, mesmo não sendo um morto.

            Acho que devo contar o episódio do móbile.

            Foi assim. Eu e Mason fazemos aniversário quase no mesmo mês, e tínhamos uma mania que o nosso pai odiava. Guardar o dinheiro que ele nos dava para lanchar para comprar um presente um para o outro.

            Era legal na época, dávamos os presentes mais diversos um para o outro. Lembro-me de ter dado um vestido para o Mason uma vez. E ele usou por alguns minutos. E ele tinha me dado maquiagem, era engraçado.

            Naquele ano, em especial, eu tinha decidido dar mais de um presente. Tinha achado num bazar de rua algumas de modelos de aviões da segunda guerra. Lembrava que Mason gostava de história e tinha e contado sobre eles. Comprei dois, porque meu dinheiro só dava para dois.

            Quando cheguei a casa Mason me deu um tapa na nuca e falou que eu era um plagiador sem vergonha até que ele mostrou que tinha comprado os outros três aviões que tinham para vender no bazar que eu tinha ido.

            Caímos na gargalhada. Antigamente éramos tão unidos para tanto.

            Ele me arrastou para o meu quarto e ficou falando que devíamos fazer algo que valesse para os dois com os aviões, tínhamos agido como gêmeos naquela hora, seria engraçado.

            Ficamos olhando algumas coisas que ficavam no sótão, onde era o meu quarto, até achar o antigo móbile que tinha no berço do meu irmão mais velho, que era com aviões de pano.

            - Eu me lembro dele. –falou ele com um meio sorriso. – Não sei por quê. Eu acho que tinha três anos quando Cesar tirou ele de mim. Eu gostava dele. Ai você nasceu e eu pensava que veria de novo.

            - Ele é legal. – eu me lembro de ter dito. – Queria ter tido um.

            Mason sorriu mais ainda, começou a andar de um lado para o outro como um doido. Eu me perguntei se era assim quando ficava andando de um lado para o outro.

            Somos parecidos, a mesma cor de pele, dos olhos, mesmas feições, só que ele é loiro.

            Puxamos ou nosso avô por parte de mãe, dizia a mamãe, ainda bem que não parecíamos com o Cesar, o nosso pai, eu tinha puxado o cabelo da mamãe e o Mason do vovô, nada mais.

            - Vai lá embaixo, pega o barbante e aqueles gravetos na caixa de ferramentas do Cesar. – Ele ordenou. – E uns dois pregos e o martelo.

            Lembro que fiquei tão empolgado que quase rolei escada a baixo de tão rápido que andava. Peguei tudo que ele mandou em segundos e corri para o meu quarto.

            Foi a tarde inteira fazendo aquilo. Lembro-me que tirei bomba numa prova de matemática depois disso.

            Quando terminamos estávamos sujos com reboco do teto e com barbante em lugares bem estranhos. Mas estávamos bem, nos sentíamos invencíveis.

             Foi a primeira vez que eu me senti invencível na vida. E durou muito pouco.

            Cesar chegou à noite, e como sempre, foi olhar naquela caixa de ferramentas dele. Começou a gritar quase que de imediato. Perguntando quem tinha roubado as coisas dele e tudo mais.

            Mason fechou a cara na hora. A mamãe não tinha chegado, éramos nós três em casa. Só.

            - Fique aqui. –ele fechou a porta. Então os estalos começaram.  

            - O cinto não. – falei com raiva. – Ele deixa marcas.

            Mason estava levando uma surra por minha causa.

            Os gritos começaram depois de alguns minutos, acho que a mamãe tinha chegado, algo assim.

            Lembro-me de olhar para os lados. Queria que tudo parasse. E a única coisa que realmente pareceu fazer sentido na hora, foram as estrelas, quietas ali, na minha janela.

            Fui até a grande janela do sótão e fiquei lá.

            - Eu sou um covarde. – foi tudo que eu me lembro de ter dito.

            Todos do clube me chamam de bad boy e psicopata. Às vezes, eu sou, às vezes, sou só um garoto assustado com distúrbio de bipolaridade.

            Eu não sabia que eu era, até entra no clube. Era só, raiva, crise, sem raiva, nada, lembranças idiotas e covardia. Eu devia ter enfrentado o meu pai quando pude, não ter ficado quase tão violento quando ele.

            Foi pensando nisso, nas estrelas e como elas pareciam ser a única coisa que me entendia, que peguei a tela em branco e o tripé dela e fui até a janela. Gostava das estrelas, sempre gostei.

            Consegui começar a pintar. A cena das garotas começava a sair pelas minhas mãos para a tela me dando uma pequena parte da sensação que tive mais cedo. Resolvi misturar um pouco as coisas, colocar um pouco das estrelas que via da minha janela no quadro, eu geralmente fazia isso, transformar algo que eu via, em algo imaginário, tudo ficava mais bonito.

            O mais bonito foi quando tive que pintar o sorriso de Harley.

            Eu sorri na mesma hora, foi estranho, era como se aquilo me acalmasse, ela me acalmasse. A garota cometa. Minha vizinha de armário desde a quarta série que só soube que eu existia há poucos dias.

            Terminei o quadro, me sentei olhando para ele. Tinha horas que eu não acreditava nas coisas que fazia. Tinha acertado no tom de vermelho do cabelo da Tessa, Ramone estava quase igual, o que era meio difícil pelo fato dela ser gordinha e Harley estava lá, era simples, mas estava certo.

            Sobre a luz da lua ele ficava mais bonito, eu devia ligar as luzes do meu quarto, estava ficando mais escuro e em pouco tempo eu não enxergaria nada, mas eu nunca gostei dessas coisas modernas.

            Lembrei-me do estranho bilhete que alguém tinha posto no meu armário, tirei ele do meu bolso e o abri. Cara, eu nunca decorei muitas coisas que eu li, mas esse eu lembro cada palavra.

            “Rudy,

            Vou falar as únicas coisas que eu acho que devia falar pra você.

            A confusão, a injustiça e a loucura unem as pessoas. Acontece.

            E todo mundo tem uma prisão, precisamos mesmo criar outra?

            Olhe atrás.”

            E atrás tinha o telefone dela. Da Harley, era só ler que eu sabia que era ela quem tinha escrito.

            - Eu sou um covarde sem vergonha. –falei.

            Procurei a droga do meu celular entre as minhas coisas, era rezar para que ainda tivesse crédito, e tinha. Eu tinha que ligar para ela. Eu nem sabia por quê. Queria ligar. Eu nunca tinha falado muito com ela, mas queria saber como tudo iria acontecer, o que levaria ao resto. Se aquela sensação voltaria.

            Queria fazer uma coisa sem pensar nas consequências, como tinha feito o móbile do meu quarto. Queria correr o risco.

            Chamou uma vez, chamou duas vezes.

            - Alô?

            - Harley. –falei normalmente olhando para o quadro. Eu conseguia vê-la sorrindo na minha cabeça, de novo, e sensação voltou.

Últimas palavras deste relato:

Sabe. Dizem que é bom ser uma pessoa prevenida, que tem tudo planejado, que pensa em todos os passos antes de dar o primeiro, mas quer saber, isso é uma merda. A vida só tem graça se você correr riscos e fizer algo sem pensar no amanhã. Dizem que adolescentes pensam que são invencíveis não é? Bem, adultos idiotas, é por isso que vivemos melhor que vocês.


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Notas finais do capítulo

REVIEWS?