Respirei fundo, mesmo sendo desnecessário, e olhei para as árvores, para o céu e para a grama macia, tentando manter pensamentos mais alegres, ou pelo menos mais calmos. As folhas farfalhavam fazendo um burburinho muito convidativo, como sempre... O céu estava alaranjado com algumas camadas lilases, estávamos no fim da tarde do dia 20 de dezembro. Daqui a dois dias seria o meu aniversário de 17 anos... E eu só pararia no tempo aos 18. Era um pensamento meio ridículo perante tudo que estava acontecendo, inútil... Mas eu me sentia melhor pensando em coisas irrelevantes do que na coisa mais importante da minha vida.
      -Por que nunca demonstra isso? - Ouvi a voz doce de Sora as minhas costas, seu caminhar era macio na grama. Mas eu não conseguia me virar. - Quer dizer... Sempre que fica mal... Não quer ninguém ao seu lado... Não quer ajuda...
      -É melhor assim. - Respondi, interrompendo-o. Depois dei um riso seco e baixo. - Parece que todos que ficam a minha volta correm risco mortal.
      -Acredite, todos nós corremos risco mortal e não é exclusivamente por você. Colibri quer dominar todos, e todos estão contra Colibri... Isso não é uma decisão inteligente, mas temos que lutar pelo nosso povo. - E Sora, como tantas lindas vezes, sentou ao meu lado e pareceu querer entender meus pensamentos.
      -Por que faz isso? - Decidi perguntar, tomando coragem e pensando que talvez essa seria a minha chance, Colibri estava mesmo com disposição para matar qualquer um.
     -Ahn... Isso? - E ele fez uma careta estranha, como se não entendesse.
     -Não sei... Querer saber se eu estou bem enquanto todos apenas tomam cuidado para que eu não "morra". Ás vezes sinto que estou sendo usada, como se o meu único talento fosse matar Heidi e "me matar". - Fiz aspas no ar e suspirei pesadamente.
      -Também me sinto assim. Lembra quando te contei a única missão nos Margos...?Morrer em batalhas. - Sora pegou distraidamente um graveto perto de seus pés encolhidos e atirou longe.
      Um tempo se passou em silêncio, fiquei fitando o céu colorido. Até que algumas perguntas me surgiram na mente.
      -Hill disse onde está Jaden?
      -Ah, sim. Carl e Marie parece que pediram para ele partir rapidamente para a Holanda, assuntos urgentes... Mas ninguém sabe quais são. - Respondeu Sora, e continuou a fitar o interior da floresta.
      -E Hillary e Viollet? Onde estão? - Tentei puxar assunto, não queria ficar apenas parada sentada com Sora.
      -Ah, estão planejando a viagem de Hill para o mundo de Arpis. Como entrar na fortaleza... Como achar a princesa... Estão se dando muito bem. - E Sora completou com um riso baixo: - Parece que só você não foi com a cara dele.
      Era essa a hora, talvez eu devesse abrir o jogo.
      -É que... - E olhei para o lado, constrangida. - Eu talvez tenha c-ciúmes dela...
      Sora agora deu um riso mais amplo, quase incrédulo.
      -Por que ciúmes?
      -Ela tem o que qualquer garota gostaria de ter. É bonita, provocante, auto-suficiente... Ela tem... você. - Murmurei bem baixinho, não sabendo se deveria continuar ou dizer para ele que estava brincando.
      Os olhos púrpura de Sora se arregalaram e ele continuou a me fitar, um sorriso brincando em seus lábios.
      -Como assim ela tem a mim?
      -Ah, você sabe! Viollet te conquistou com um só olhar! Depois você não parou de admirá-la, de protegê-la... - Confessei de uma vez por todas, e recebi um silvo cético de Sora.
      -É que a única pessoa que eu me apaixonei parece muito encrencada e também envolvida... Mas eu sinceramente não sei se o cara que namora ele a merece mesmo... - Respondeu Sora, suas mãos leves encostaram nas minhas e se fecharam nela, me segurando com um tanto de força.
      Nem foi preciso mais algumas palavras. Nós dois estávamos num tipo de conexão. Eu me virei rapidamente para ir de encontro com seus lábios que pareciam também ter ido de encontro com os meus. Foi apenas um beijo leve e doce, e antes que pudesse se prolongar para um beijo mais intenso, ouvimos alguém gritar:
      -Alice? - Perguntou incrédula uma voz fina e que podia ser cantarolada, se não fosse pelo ódio em sua voz. Me virei, sem nem pensar. Hillary estava na pequena varanda dos Phillper a uns 5 metros de nós com os olhos arregalados, Sora que ainda estava do meu lado, apenas coçou a cabeça um pouco constrangido. - Como você pôde?
      -Hill... Espera, eu posso explicar! - Gritei, e me levantei rapidamente, mas Hillary ia virando as costas para entrar na casa.
      -Ele confiou em você! Você é a droga da vida dele, caramba! - E percebi que ela estava falando de Jaden, o qual ela tinha um carinho extremamente grande e cuidava para que ninguém o ferisse.
      Comecei a dar passos pesados e rápidos de volta á casa, olhei para o segundo andar e lá, debruçada sobre o parapeito da janela, estava Viollet, com os olhos arregalados e muito vermelhos de raiva.
      -Me desculpe! Eu... eu não pensei, ok?! Afinal, eu não sei se quero continuar com o Jaden, ele anda tão estranho! - Expliquei, e cruzei os braços contra o peito fortemente, chateada.
      Hillary se virou, estava a 2 metros de mim, suas pernas estavam separadas e ela tinha parado numa pose de "policial" e também tinha os braços cruzados.
      -Então conte a ele antes que ele descubra por si só! Não faça o QUE VOCÊ FEZ COM O HENRY! Então? E ai se o Jaden ficar super bravo e for pro lado de Heidi como o seu querido Hen foi?! Você é uma grande de uma vadia mesmo, não é?! - Ela gritou. Eu a olhei incrédula, Hill era meiga e MUITO minha amiga, como ela dissera aquilo? Mesmo que fosse verdade, não esperava que outras pessoas me chamassem assim. Menos Viollet, claro.
      Eu dei alguns passos até ficar quase cara a cara com ela.
      -Qual é?! Pode ficar pelo menos feliz? Agora você pode ficar com o Jaden! Pare de bancar a super-protetora, é claro que vai me denunciar para ele e vai se aproveitar do coraçãozinho dele! - Respondi, no mesmo tom de voz.
      Ouvi passos descendo a escada e Viollet apareceu com um pequeno sorriso de satisfação no rosto, estava realmente animada pela brigaria toda contra mim.
      -Bem que eu sempre suspeitei Alice! Você me olhava feio quando eu encostava nele... - E pôs a ponta do dedo perto da boca, pensativa.
      -Cale a boca, Viollet! - Bradei, espantada com a minha própria fúria. Estávamos as três encarando uma a outra, paralisadas de raiva.
      Senti que iria começar a chorar, minhas estranhas lágrimas estavam contidas, mas não por muito tempo. Me virei E empurrei a porta de vidro da casa, rumando para o gramado. Senti uma mão tentar me deter, me puxar. Eram as mãos macias de Sora. Eu não tinha nem como falar, apenas sacudi os braços me desfazendo dele. Não me importei em correr rápido, fui caminhando pesadamente e me embrenhando pela floresta.
      Nós não tínhamos tempo para isso, Colibri ia tentar de algum jeito persuadir Cerinus para que ele desse o dom aquático para ela, e assim... Bem, eu teria que "me matar" para salvar o mundo. Mas naquelas situações, eu talvez só precisasse de alguns minutos, então me recuperaria e tentaria terminar a missão, mesmo tendo que aguentar comentários horríveis sobre Viollet junto com a minha mais numa inimiga: Hillary e provavelmente Jaden quando ele voltasse.
      Os minutos iam se passando enquanto eu me encontrava lá, infelizmente na minha pior forma, agachada, apoiada com um dos joelhos no chão, as mãos cobrindo o rosto e as lágrimas que teimavam em sair.
      Senti uma mão carinhosa no meu ombro, quase o afagando.
      -Alice? - Perguntou uma voz doce e rouca. Estava cansada das pessoas me chamarem assim, como se não tivessem certeza se deviam conversar comigo ou apenas irem embora e deixar eu sofrer.
      Me virei irritada, apoiando uma mão no chão e deixando as lágrimas a mostra.
      Na minha frente, estava um garoto de camisa social cor de vinho com listras verticais finas e escuras. Com calça jeans de lavagem escura e cabelos dourados penteados para trás, levemente caídos para frente um tanto sensualmente. Suas mãos estavam dentro dos bolsos da calça e ele ostentava um olhar preocupado sobre mim. Seus olhos cor-de-mel dançaram nas minhas poucas lembranças vampiristicas.
      -Henry! - Minha voz saiu doce e maravilhada. Como um longo suspiro de alívio. Então meu rosto se enrijeceu e eu lembrei para quem ele trabalhava. - Veio me matar?... Não precisa, eles já fizeram isso. - Acrescentei, levantando-me aos poucos e chateada.
      -Não... Mas... o que? - Perguntou, confuso.
      -É uma longa história. - Bufei impaciente e me virei a encarar os olhos quase dourados de Henry, que por algum motivo estavam sombrios hoje. - O que veio fazer aqui? Ainda trabalha para Heidi, certo?
     Henry passou a mão na cabeça, alisando o cabelo para que voltasse ainda mais rebelde para frente, e depois deixou a cabeça cair para trás como se estivesse impaciente.
     -Me desculpe por aquele dia. - Finalmente falou. E eu notei que ele se referia ao dia em que eu fora á "seleção de poderes" e ele nos tratara mal. - Colibri odeia a ideia de que um dia eu fui seu. E eu não podia fazer nada, a não ser ter raiva de vocês. Posso até ter um pouco de raiva de Jaden por me roubar você... Mas eu nunca conseguiria te odiar, Ali.
     Sorri com o jeito com que pronunciou meu pequeno apelido.
     -Um dia você... foi meu? - Perguntei.
     Ele engoliu seco e virou a cabeça para o lado, fitando o horizonte.
     -Ainda sou. - Proclamou. Mas foi se afastando, mantendo uma distancia saudável para nós dois. - Só vim aqui avisar que Heidi... Bem, ela disse que você ainda pode se juntar a ela... E, bem... Mandou perguntar se você gostou do "presentinho" dela... - Quando foi responder, irritada, ele estendeu a mão, pedindo que parasse. - Não, Alice, isso é repugnante, nem responda. - E antes que eu pudesse sequer piscar, ele se encontrava perto de mim de novo, suas mãos seguravam meu rosto, alisando meu cabelo. - E quantas vezes eu tentei protegê-la? E agora... Não posso fazer nada para ajudar, a não ser piorar... - E repensou no que estava fazendo, se afastando de novo de mim. Delirei ao sentir seu hálito frio em meu pescoço, segundos atrás.
     -Ela... Por acaso não está te vigiando, certo? - Minha respiração ficou intensa, ela poderia estar vendo Henry fazendo todas aquelas caricias em mim... O que faria com ele quando voltasse ao palácio?
     -Não, pedi a ela um pouco de privacidade em troca de lealdade eterna. - Sua voz soou triste. - Acredite, ela quer nos jogar um contra o outro. Não importa se ainda está com Jaden... Apenas jure que nunca vai me abandonar, que vamos lutar juntos de alguma forma contra Colibri.
     -E-eu... Pr-prometo. - Respondi tremula, estendi as mãos para chamá-lo para mais perto, tentando não deixá-lo partir.
     -Certo, tenho que ir. E a sua resposta tem que ser não. - Ele riu cheio de amargura. - Alice, resista. Muitos cairão mortos, mas muitos irão se reerguer. Aguente firme, não se renda. Sei que os Phillper vão fazer de tudo para proteger todos que você ama. Nunca se esqueça: a recompensa será maior que todo o seu sofrimento.
     -Eu espero. - Afirmei, mais decidida. Com os punhos cerrados, lutando contra as lágrimas que teimavam em sair.
     -Voltarei quando puder - E do seu jeito, deu um sorriso torto. Queria pedir para ele ficar, e nos ajudar, a não ri com aquela mulher, sabe-se lá o que ela iria fazer com ele. - Adeus.
     -Eu não sei se aguento mais pessoas se despedindo tão intensamente de mim, como se o amanhã pudesse não existir. Não faça isso, me dê um tchau e um "até a próxima" se ainda achar que temos chance. - Pedi a ele, tentando fazer piada, mas minha voz saiu trêmula e suplicante.
      Henry hesitou, olhando para o chão, mordendo o lábio.
      -Tchau... e... Até a próxima. - Respondeu, enfim. Virou-se e correu em uma velocidade super-sônica para o coração da floresta, provavelmente iria entrar na árvore de Missânia e lá seria apenas de Heidi.
      Girei na ponta dos pés, fiquei andando de um lado para o outro da floresta.
      Não sabia se estava feliz pela volta de Henry, triste pela sua ida, apreensiva com a guerra entre os mundos ou atordoada pela briga com Hillary.
      Seja como for, foi bom ter visto um antigo amigo.