Do Próprio Inferno escrita por erikacriss


Capítulo 8
8. Nascida para mentir




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Duas semanas se passaram desde o ocorrido. Denys estava desconfiado de que eu tinha algo a ver com o desaparecimento de Berta, mas por enquanto era só uma suspeita. Eu disse apenas que ela tinha saído pra comprar algumas coisas na feira e não voltado mais para casa.

Denys colocara a polícia de toda a cidade em busca da criada. Eu já havia dito para ele desistir, pois se não a tinham encontrado até agora, então não a encontraríamos mais. Mas ele não desistiu. Sua insistência era irritante e nos deixava, eu e Thiago, meio aflitos.

Eu sabia que nada nos ligaria ao desaparecimento dela, pois havíamos sido meticulosos na hora de encobrir as pistas e evidências. Dentre os visinhos ninguém viu nada, ninguém notou nada de estranho ou ouviu qualquer coisa.

Havíamos jogado o corpo dela no rio. E a correnteza a levaria para longe dali. Nada poderia nos incriminar. Ou ao menos era o que eu achava.

― Acharam a Berta. ― disse Denys assim que chegou a casa. ― Foi encontrada morta, dentro do rio, estava presa a um galho, que impediu que ela fosse levada pela correnteza. ― “Merda de galho!” ― Ela levou várias pancadas na cabeça, segundo os peritos. A assassinaram, Renata. ― ele olhou fundo nos meus olhos.

― Que horror! ― fingi espanto. ― Quem faria algo assim? ― questionei teatralmente enquanto tampava minha boca com as mãos.

― Não finja que está horrorizada, Renata. ― ele disse ― Eu sei que você tem algum dedo nisso. ― ele se sentou ao meu lado no sofá.

― Como pode pensar isso? ― franzi meu cenho, ultrajada.

― Não me venha fazer-se de vítima. ― ele segurou meus ombros, me fazendo ficar de frente a ele e fitando seus olhos ― Lembro-me muito bem que a sua primeira reação, quando Berta nos viu juntos, foi dizer “Vamos matá-la”. E lembro-me também que dias antes de Berta sumir você dizia que ela estava lhe perseguindo e lhe irritando.

― Mas eu jamais seria capaz de fazer algo do tipo! Eu digo as coisas da boca para fora! Mas nunca atentaria contra uma vida humana, ou mesmo animal! ― irritei-me. ― Fico muito triste que penses isso de mim.

Denys deu um longo suspiro, ainda não acreditando muito em minha resposta, mas tão pouco comentando.

Quando Thiago foi à minha casa pela tarde eu lhe contei a notícia de que encontraram o corpo de Berta, ele ficou meio aflito, mas dei um jeito de tranqüilizá-lo, um jeito que somente eu sei como fazer.

Na manhã seguinte acordei tendo alguns enjôos. Denys ficou preocupado comigo, mas eu disse que estava bem, que deveria ser algo que eu tenha comido.

De tarde um oficial de justiça apareceu em minha casa pedindo que respondêssemos algumas perguntas. Perguntou quando havíamos visto Berta pela última vez e outras perguntas do gênero, mas o que me deixou tensa foi a última pergunta:

― Vocês suspeitam de alguém que possa ter feito isso? Alguma pessoa que possa não ter tido um bom relacionamento com Berta? ― ele perguntou em um semblante sério, enquanto tomava a xícara de chá que eu havia lhe servido.

― Não. ― eu disse.

Notei que Denys me olhou profundamente antes de responder.

― Não.

Dei um suspiro aliviado.

O oficial deixou a xícara de lado e se levantou.

― Então, isso é tudo. ― falou ― Obrigado por responderem as perguntas e desculpem por tomar o tempo de vocês. ― disse cordialmente.

― Imagina. Só queremos ajudar. ― falou Denys.

O homem pegou seu sobretudo pendurado no suporte ao lado da porta e antes de sair me deu uma longa olhada e um aceno de cabeça.

― Tenham uma boa tarde.

Na manhã seguinte, mais enjôos. Sim, eu já deveria ter suspeitado do que estava acontecendo, mas na época as mães não tinham certas conversas com suas filhas e eu não tinha nem o mínimo de informação sobre o assunto.

Denys marcou horário para mim em um consultório médico. E voilà! O resultado:

― Você está grávida.

Sabe, descobrir que eu estava grávida não foi um momento muito emocionante ou mágico, como muita gente diz por aí. Fiquei irritada, eu acho. Talvez até inconformada que meu corpo viraria um balão dali uns meses e nunca mais voltaria a ser o mesmo. Além de que foi tudo muito rápido! Em um momento eu estava matando Berta e em outro eu ficava sabendo que daria a luz a um inocente e frágil bebê. Eu não estava com muita cabeça pra isso.

Será que Thiago ainda me amaria quando meu corpo ficasse metralhado de celulites e arranhado de estrias? E Denys? Ainda iria me amar quando meus seios caíssem e minhas nádegas ficassem flácidas?

Eu não amaria.

Mas apesar de tudo, Denys ficou feliz. Eu diria que feliz até demais. E não foi só ele.

― Grávida?! ― minha mãe exclamou deliciada assim que lhe contamos a notícia.

― Não é maravilhoso? ― os olhos de Denys chegavam a brilhar.

Fiquei imaginando a decepção dele se soubesse que aquela criança podia não ser dele e sim de seu irmão mais velho. Pelas minhas contas, o óvulo foi fecundado na lua de mel, o que não me deixa com certeza sobre a paternidade do feto.

Olhei para o rosto incrédulo de Thiago e lhe lancei um olhar do tipo: “É isso aí, possível papai.” Isso fez seus olhos brilharem ainda mais que os do irmão.

Estava toda a família reunida em um jantar que Denys havia convocado especialmente para a ocasião.

― Você deve estar tão feliz! ― supôs Anne. ― Mal posso esperar para ter filhos também. ― disse ela, sorrindo para Thiago.

Aquilo me enfureceu um pouco. Queria avançar em minha querida irmã e arrancar seus cabelos lisos da cabeça, mas me controlei pelo olhar que Thiago me lançou, um olhar que pedia paciência e compreensão. Controlei-me também por ter a mão de Denys sobre a minha.

― Com certeza. ― sorri amarelo.

―Você está tão linda e radiante, filha! ― disse minha mãe ― Eu sempre disse que casar-se fazia maravilhas com alguém!

Claro, claro. Incluindo adultério, perversão, ninfomania e assassinato a sangue frio com uma pequena ajuda do amante. Realmente, o casamento faz maravilhas com alguém!

― Está sempre certa, mamãe. ― lhe sorri.

Fora toda essa história de gravidez, ainda havia o assassinato a ser resolvido. O caso ainda estava sendo investigado e, a pedido do pai de Denys, ninguém parava um segundo sequer. Eu estava muito tensa.

― A filha mais nova da vizinha disse que ouviu um grito quando saiu para brincar no quintal atrás da casa no dia do desaparecimento de Berta. ― informou-me Denys.

― Estranho, eu não ouvi nada. ― menti.

Denys esfregou seus olhos com as palmas das mãos, aparentemente tentando se acalmar.

Eu estava sentada ao seu lado na sala, uma semana depois do jantar familiar.

― O que houve, amor? Por que está assim? ― perguntei inocentemente.

― Não seja cínica, Renata! ― explodiu.

Cheguei a me assustar um pouco, mas me recuperei e coloquei em minha face um ponto de interrogação gigante.

― Não me olhe como se não entendesse o que eu estou dizendo! Eu sei que foi você! ― bramiu levantando-se com tudo do sofá.

― Está me acusando de assassinato? ― fingi aflição e descrença.

― Sim, Renata, é exatamente isso que eu estou fazendo. ― disse sem olhar para minha face.

― Pois está enganado. Não mataria nem uma mosca, se quer saber.

Ele bufou e riu com escárnio.

― Não mintas pra mim. Não para mim, Renata. ― ele deu um suspiro cansado e voltou seus lindos olhos para mim. ― Eu encontrei, Re... Encontrei o globo de neve ensanguentado.

Meu coração acelerou uma batida. Eu achava que o tinha escondido tão bem! Havia enterrado ele no quintal, não imaginando que alguém iria conseguir achá-lo. E pensando bem, eu teria que arranjar outro lugar para esconder as roupas ensangüentadas, pois estavam enterradas a poucos metros do globo.

“Eu sabia que deveria ter queimado as roupas!” ― pensei frustrada ― “Mas Thiago disse que a fumaça chamaria muita atenção. E aquele globo... foi burrice enterrá-lo, eu devia ter limpado-o e o colocado no lugar.”

― Globo de neve? ― disse depois de alguns segundos engolindo meu próprio “veneno”, senti meu sangue se esvair de meu rosto.

― Sim, Renata. O globo de neve ensanguentado que usou para golpear Berta. ― olhou-me fixamente nos olhos, querendo penetrar minha alma.

― N...Não sei do que está falando. ― minha voz já não tinha o apelo de antes, estava mais fria, pois eu sabia que Denys era inteligente demais para cair nessa. Ele já havia descoberto, eu só estava adiando a confirmação.

Denys fechou os olhos lenta e mortalmente, andou de um lado a outro da sala em frente a mim.

― Eu não te entreguei para as autoridades. ― informou ele. ― Nem disse nada do Globo.

Continuei parada, muda, apenas olhando meu marido se mover inquietamente de um lado a outro.

― Como pôde fazer isso? Por que, Renata, Por quê? ― ele parou a minha frente e olhou fixamente meus olhos ― Quem lhe ajudou?

Meus pés ficaram dormentes, senti que meu rosto devia estar tão branco como giz, suei frio e estremeci.

Eu não podia contar a ele que fora Thiago quem me ajudou, nem que eu o fiz porque tinha um caso com seu irmão. Denys estava sendo relevante comigo, não me entregando, mas eu não podia confiar que ele daria tal cortesia ao meu amante, mesmo ele sendo de seu sangue.

― Responda: quem lhe ajudou? ― disse friamente.

― Eu fiz tudo sozinha. ― afirmei.

― Não, não fez. Você não tem força suficiente para erguer o peso da Berta sozinha. ― acusou.

“Claro, a mulher era uma baleia.” ― pensei com irritação.

― Alguém lhe ajudou. Quem? ― indagou com frieza.

Eu tinha que escapar dessa pergunta, o problema era como. Mas então uma idéia brilhante lampejou em minha cabeça.

Fiz cara de dor e abracei minha barriga dando um pequeno gemido. Para mim foi muito forçado, mas Denys pareceu não notar a farsa e logo começou a me amparar.

― Renata? Está bem? ― perguntou preocupado. Obviamente havia esquecido de meu estado “frágil”.

― Foi só uma dor. ― aleguei ― Não foi nada. Desculpe-me. ― disse começando a forçar lágrimas a saírem de meus olhos.

Passei a chorar desesperadamente, apelando para o emocional de meu marido.

― Tudo bem, Re. Desculpe-me você. ― deu um longo suspiro voltando a sentar-se do meu lado. ― Eu não devia pressioná-la assim no seu estado. Não fique triste, faz mal ao bebê.

Eu estava conseguindo. Naquele momento eu me senti a mais sínica das pessoas. Senti-me imbatível – não, mais que isso: Eu me senti muito foda.

Eu me admirava.

― Eu não consigo... ― funguei ― Não consigo não me sentir triste. Eu... sou uma pessoa horrível, Denys. ― eu chorava ― Foi um a... acidente. ― olhei suplicante para seus olhos. ― Eu não queria matá-la... juro que não queira. Foi um acidente... ― minhas palavras foram morrendo teatralmente e eu senti Denys me abraçar com ternura.

― Eu sei, querida. Sei que foi um acidente, meu amor. ― disse reconfortante. ― Apenas se acalme e conte o que aconteceu exatamente.

“O que aconteceu... o que aconteceu...” ― comecei a pensar rapidamente. Chorava e dizia palavras ininteligíveis para ganhar tempo.

― Se acalme, meu amor. ― voltou a suplicar Denys, com o coração em frangalhos.

― Eu estava aqui em casa... ― comecei minha mentira ― E ela disse que iria ir à feira... Eu fiquei sozinha aqui... ― funguei ― Era normal eu ficar sozinha, mas naquele dia eu senti medo. ― contei ― Eu senti que havia alguém na casa, mas eu sabia que não havia, porque Berta tinha ido à feira. ― voltei a afirmar ― Então eu ouvi alguns barulhos lá em baixo e senti muito medo... ― parei por um momento para chorar nos braços do meu amado ― Eu tive tanto medo Denys... Podia ser um ladrão... Podia ser um ladrão... ― disse repetidamente em tom de desespero ― Eu peguei o globo de neve, porque foi a primeira coisa que eu vi e fiquei quietinha no canto do quarto. Quando a porta abriu não pensei duas vezes e acertei o globo na cabeça de quem entrava... mal sabia eu que era Berta. ― forcei mais meu choro ― Quando eu notei que não era ladrão nenhum, eu me desesperei... Corri para fora de casa e vi que havia um homem passando na rua. Então eu pedi ajuda a ele. Pedi que me ajudasse a levar Berta ao hospital...

― O homem ajudou? ― perguntou Denys quando eu parei de contar por um tempo, curioso.

― Ele me seguiu para dentro de casa... Eu nem pensei se ele era perigoso ou se iria me agarrar a força... Estava tão desesperada a ponto de deixar um homem estranho entrar sozinho comigo aqui em casa... ― disse, dando mais dramaturgia a história.

― Ele te machucou? Forçou-te a algo? ― preocupou-se Denys.

― Não... Ele não fez nada de mal comigo. Ao contrário, ele disse que me ajudaria... ― contei. ― Mas quando ele viu Berta, logo disse que ela estava morta... Disse que eu seria julgada, condenada e que iria para a prisão... ― apertei mais o abraço ― Eu não queria ser presa, Denys... Então eu fiz o que ele dizia para eu fazer... Ele disse que era melhor escondermos o corpo... Mas quando estávamos no jardim de trás, a Berta acordou... ― afundei meu rosto na curva de seu pescoço ― Ela me acusou, Denys... Ela disse que eu fiz de propósito... Mas não fiz... Eu pedi para o homem me ajudar a levá-la para o hospital, mas ele não me deu ouvidos... ― fingi mais angustia ― Ele pegou uma pedra e bateu com ela na cabeça de Berta várias e várias vezes... Até matá-la. ― forcei mais um choro ininteligível antes de continuar. Eu tinha que ser convincente, afinal. ― Ele disse que iria ser melhor para mim e que eu devia agradecê-lo... Eu disse que o denunciaria a polícia, mas ele disse que me apontaria como cúmplice... Não tive escolha a não ser continuar com o plano inicial e esconder Berta... ― apertei mais seu corpo junto ao meu ― Foi tão horrível, Denys...

― Sabe o nome dele, amor? ― perguntou angustiado ― Lembra do rosto dele?

― Não sei o nome e prefiro não me lembrar do rosto daquele monstro...

“Irônico... Acabei de me chamar de monstro...” ― sorri internamente.

― Tudo bem, se acalme. ― pediu afagando minhas costas ― Não precisa dizer nada agora. ― ele se afastou por um segundo e beijou meu rosto ― Obrigado por me contar a verdade. ― olhou penetrante para meus olhos e eu não recuei de seu olhar. Era difícil mentir olhando para aqueles olhos sinceros e ternos, mas eu nasci para isso.

― Desculpe não ter contado antes, estava com medo. Prometo nunca mais mentir para você. ― menti.

― Eu te amo. ― ele encostou sua testa na minha.

― Eu também te amo. Amo demais. ― ao menos uma verdade em meio a camadas e mais camadas de lorotas.


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Notas finais do capítulo

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