Parei de andar assim que senti a presença deles, que tanto me enjoava, e a densa e negra névoa nos encobriu rapidamente. Jules e Miguel puderam sentir minha apreensão e se prepararam. Ouvi quando Miguel avisou a Melanie para pegar a Gladius. Imediatamente saquei as adagas bentas que trazia sempre comigo e senti Jules de pé ao meu lado.

- Jules, estão aqui e são muitos! – gritei para que meu parceiro meu ouvisse.

- Cuidado, Harper! – ele gritou ao mesmo tempo em que me empurrou para o lado e eu caí no chão.

Rolei para o lado e ouvi um grunhido se aproximando. Estava escuro e o cheiro era horrível, como carne podre e queimada. O som agourento estava se aproximando de mim e me pus em posição de defesa, embora não enxergasse nada a minha volta. Sorte que eu era sensitiva. Pude sentir que algo se aproximava pela direita. Girei rapidamente e o cortei com a adaga. A criatura uivou de dor e aproveitei para pular sobre ela. Não deu tempo para o demônio reagir, eu o atingi no meio do peito deformado com as duas adagas e seu corpo gosmento caiu inerte aos meus pés.

Ouvi as pessoas que estavam na praça gritarem desesperadas, na certa estavam sendo atacados, os pobres moradores de rua. Mas estava tudo tão denso e escuro e o cheiro era forte demais, estava quase me fazendo desmaiar. Não havia nada que eu pudesse fazer por eles.

- JULES! – gritei na escuridão.

Instantes depois vi um vulto passando por mim e o ouvi cair no chão. Então senti a presença tranquilizadora de Jules, que surgiu ao meu lado. Pude apenas identificar sua silhueta.

- Está bem? – ele perguntou, colando suas costas nas minhas.

- Sim. – respondi – São muitos! Eu os sinto por todos os lados! Estão atacando as pessoas na praça!

- Eu sei, matei alguns, mas eles vieram preparados, não posso enxergar!

Então uma luz dourada surgiu há alguns metros de nós. Olhamos juntos em sua direção. Era forte e quente e formava um halo que crescia cada vez mais, afastando as trevas de nós. No centro da luz, estava a figura abençoada de Miguel. Era incrível o poder e a luz que emanavam dele. Suas asas estavam visíveis, pelo menos pra mim, e eram simplesmente magníficas. Ele empunhava a Gladius mais linda que já vi, era como uma espada flamejante, que trazia o fogo da justiça e da bondade.

Aos poucos, a névoa foi se dissipando e os grunhidos aumentaram. Então eu vi um verdadeiro massacre no chão do parque. Havia dúzias de corpos de demônios no chão, misturados aos dos humanos. O vermelho e o negro se misturavam na grama e senti ânsia de vômito.

A luz dourada diminuiu de intensidade, até que cessou completamente, assim como a névoa negra, e um silêncio mortal caiu sobre o lugar. Jules meio que correu, meio que voou até Miguel, e eu fui atrás.  Melanie estava há alguns metros, com suas roupas repletas de sangue negro e vários cortes no rosto e nos braços.

Assim que me juntei aos anjos, ouvi Jules sussurrar a Miguel:

- Já começou...

Abri a boca para falar, mas no mesmo instante, ouvimos uma risada estridente. Viramos para a direção da risada e tive que me impedir de gritar. A garotinha que estava no parque brincando de boneca antes do ataque demoníaco, estava parada há alguns metros de Melanie, que ainda estava ajoelhada e apoiada em sua Gladius prateada.

A garotinha tinha a pele esverdeada e olhava Melanie fixamente. Seus olhos, no entanto, não eram mais inocentes e doces como os de uma criança, eram vermelho-vivo e de sua pequena boca, escorria sangue humano.

- Está possuída! – falei aos demais, mas eu sabia que Jules e Miguel já tinham percebido.

Melanie ficou olhando atordoada e a criança possuída se aproximou devagar.

- Melanie, é um demônio! Cuidado! – gritei para ela e vi um movimento ao meu lado. Era Miguel. Ele deu um impulso e foi até ela, com a Gladius na mão.

Miguel parou ao lado de Melanie, apontando sua Gladius para a garotinha de olhos vermelhos, que soltou outra risada alta e estridente, enquanto fazia uma posição de ataque na direção dos anjos.

- Inferno regnat. Ardere omnibus peccatis suis animae putrida. Iam... *

A voz estridente saiu arranhando nossos ouvidos. Os dentes pontiagudos da criatura mordiam os lábios pequenos da garotinha possuída, cujo corpo era totalmente controlado pelo demônio. Eu não entendi suas palavras, mas senti um arrepio na espinha.

- INCLUSIT ! **– Miguel berrou e a criatura riu mais uma vez.

Então o demônio sentou no chão e começou a falar palavras ritmadas e sem sentido pra mim, e balançava o corpo da pobre criança pra frente e pra trás em uma velocidade sobre-humana.

Miguel rapidamente apertou a Gladius na mão e foi em direção ao demônio, que tinha os olhos vermelhos desfocados e um sorriso cínico nos lábios. Eu vi a determinação em Miguel. Ele estava focado em matar o demônio. Mas então, ele parou bruscamente. Vi que Melanie o segurava pela mão que não empunhava a Gladius, impedindo-o de prosseguir.

- Não pode fazer isso! – Melanie disse, ainda segurando Miguel pela mão – Ela é só uma garotinha!

- Ela está possuída! Esse demônio não pode permanecer entre nós! – Miguel respondeu um pouco exaltado, desvencilhando-se de Melanie e seguindo em direção ao demônio na pele da garota.

Melanie fez suas asas surgirem e deu um salto. Pôs-se na frente de Miguel, protegendo o demônio com o próprio corpo. O anjo hesitou.

- Melanie, saia! – ele disse, sério.

Jules e eu nos aproximamos dos dois. Jules parecia tenso e não deixava de encarar o demônio que possuía o corpo da garota. Eu fiquei olhando pra Melanie, que parecia determinada a não deixar Miguel matar a criatura.

- Se mata-lo, vai matar a pobre criança! Não vou permitir! – ela disse em resposta.

Miguel se sobressaltou com a decisão e a atitude dela e percebi que ficou indeciso. O demônio encarou a cena a sua frente e riu.

- Mortua fuerit, mox omnes homines erit. – a voz estridente falou.

- O-o que ele disse? – perguntei a Jules.

- Ele disse que a garota já está morta e que em breve todos os humanos também estarão. – Jules respondeu, sem retirar os olhos da garota possuída.

Engoli seco e senti minhas vísceras revirarem quando a criatura olhou pra mim.

Então Miguel se adiantou e disse a Melanie:

- Sinto muito.

No instante seguinte, vi um clarão dourado cortar o ar e a Gladius do arcanjo atravessava o peito da pequena garota. Os olhos vermelhos foram ficando desfocados aos poucos e uma lágrima cristalina se formou e escorreu pelo canto do olho da pequena. Era a lágrima da garotinha aprisionada em seu próprio corpo, que agora, pereceria.

Foi então que Melanie pulou sobre o corpo frágil que caiu na grama. Eu podia ver claramente a vida do demônio e da pequena humana se esvaírem mutuamente. Melanie se posicionou sobre o corpo praticamente inerte e puxou-o para si, num abraço apertado. Ela chorava e suas lágrimas eram a coisa mais brilhante e rara que já vi. Mesmo no meio da escuridão da noite, elas cintilavam com a tristeza e o amor de sua dona.

E eu soube, de alguma forma, o motivo de Melanie ser tão especial. Minha alma sentiu a dor e a força que emanavam dela naquele momento. Corri em sua direção e pus minha adaga em uma de suas mãos. Tudo foi rápido demais e eu nem sei como aconteceu direito. Foi como uma revelação do que eu sabia que Melanie tinha que fazer.

- Transfere seu amor pra ela, agora. – eu sussurrei no ouvido de Melanie, que ainda apertava o corpo frágil e quase sem vida em seus braços.

Então, eu peguei a mão de Melanie que segurava minha adaga e enfiei nas costas da pequena garota. Uma luz branca e forte saiu de Melanie e foi tão forte que fechei meus olhos. Alguns segundos depois, vi Jules e Miguel de boca aberta diante de nós. Melanie estava abraçada com a garota, que chorava. Não havia mais traços do demônio na pequena, que tão pouco estava ferida.

Melanie tinha uma alma pura, tão pura, que foi capaz de matar o demônio e salvar a menina. Melanie era uma sensitiva alfa.