Signatum escrita por MilaBravomila


Capítulo 3
Capítulo 2 - A delicada Gladius




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Quando acordei abri os olhos lentamente, ainda meio grogue. Pra variar, me assustei com a figura de Jules parado próximo a mim. Anjos eram criaturas bem esquisitas. Eles não dormiam, não comiam, apenas lutavam e oravam, não necessariamente nessa ordem. Bom, eu não sabia se todos os anjos eram assim, mas Jules era.

Ele tinha aparecido em minha vida como um anjo deve aparecer pra todo mundo: quando eu mais precisei de ajuda.

Voltava pra casa depois de mais um dia entediante de trabalho. Odiava ficar atrás do computador digitando laudos e mais laudos sem parar. Era uma merda, mas era assim que eu sobrevivia. Nunca fui muito normal, nunca mesmo. Desde pequena eu vivia afastada das outra crianças, nunca me senti completamente enturmada. Sempre achei que eu não era feita pra esse mundo. E não era.

Depois que eu completei 16, comecei a ter estranhos pressentimentos. Eram como lampejos, quando eu passava perto de algum lugar ou de alguém, eu sentia como um frio no estômago, uma sensação de alerta. Fui há diversos médicos, mas ninguém conseguia explicar isso, fisiologicamente. Tentei psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, e mais uma meia dúzia de “psicoisas”. Tentei padres e pastores, mas nada, nem ninguém me respondeu o que eram aquelas sensações.

Eu tinha uma vida normal, mas de vez em quando, aquilo acontecia e eu meio que me perdia. Era perigoso até, as vezes eu cruzava com alguém no meio da rua e sentia aquilo e simplesmente travava. Já quase fui atropelada algumas vezes por parar no meio de uma avenida ou da ciclovia.

Então Jules apareceu há alguns meses atrás. De fato, há muitos meses atrás. Eu saí tarde do trabalho e andava distraída pela rua. Estava fazendo contas com a miséria de dinheiro que ganhava semanalmente pra ver se dava pra comprar um no par de botas

Foi quando eu senti aquela sensação estranha me invadir de um modo muito forte e repentino. Eu senti medo, estava sozinha e começava a garoar. De repente, tudo ficou muito frio e silencioso. Eu sentia que alguma coisa não estava bem. Então a criatura surgiu, bem na minha frente.

Ele primeiro me encarou como se estivesse surpreso por eu o estar encarando de volta, por estar enxergando. Era asqueroso, pequeno e com olhos negros como a morte. A criatura sorriu quando viu que eu não desviava o olhar. Deu um passo em minha direção e eu dei um para trás.

Então ele saltou, bem pra cima de mim e me invadiu com aquele fedor pútrido que eles exalam e que hoje me é tão familiar. Os dentes afiados e podres miravam meu rosto. Como qualquer garota em minha situação, eu gritei. Mas então, vi Jules surgir. As asas brancas, o corpo perfeito, uma espada na mão. O anjo cortou a criatura ao meio tão rapidamente, que se eu tivesse piscado, teria perdido a cena.

Depois, o anjo – Jules – ateou fogo nas duas metades do corpo do demônio e me encarou enquanto as chamas negras subiam para o céu.

Eu o encarei de volta. A sensação ruim que a criatura me causou, já não existia mais. Eu senti paz, uma paz enorme ao lado daquele anjo de longos cabelos castanhos e corpo esbelto. Então eu soube o que os calafrios significavam e minha vida nunca mais foi a mesma.

Eu sou o que chamam de sensitiva beta. Entre os humanos, existem diferentes graus de sensibilidade. A maioria possui um grau baixo, que apenas permite algumas sensações leves de desconforto ou algo parecido quando estão próximos a uma criatura das trevas ou a algum local de encantamento. Mas no meu caso, é claro, a sensibilidade era desenvolvida demais e eu era capaz de sentir sempre que estava próxima a um deles e também era capaz de vê-los.

Jules é um anjo guerreiro, que escolheu cair para nos ajudar na batalha que se aproxima. Essa batalha, aliás, é um mistério até mesmo para ele. Ninguém sabe como começou, ou por que, mas todos – anjos e demônios – apenas sabem, sentem que algo grande está por vir. O destino dos humanos está em jogo como nunca antes e Jules foi um dos que resolveu fazer alguma coisa pra ajudar, já que o cara lá de cima parece querer ver o circo pegar fogo.

Bom, depois daquilo, Jules passou a me ensinar as técnicas básicas para capturar e exterminar os demônios que eventualmente apareciam. Nós somos uma boa dupla. Ele é um cara difícil, fechado e concentrado, mas nós nos entendemos bem, afinal, eu sou bem parecida. Ele sabe que eu sou uma boa ajuda na caça a essas criaturas, já que ele não é capaz de senti-los. Sim, eu sei, como um anjo, eu também achei que ele fosse ser o primeiro a senti-los, mas não. O dom da sensibilidade não é para qualquer espírito.

Eu nunca fui religiosa, nunca gostei de frequentar a missa nem de me confessar. E também não passei a rezar mais depois que tudo isso aconteceu. Eu apenas constatei um fato que já sabia: somos fantoches, brinquedos, e estamos sozinhos.

- Harper – Jules falou em seu tom grave habitual. Me lembrava um sargento do exército bem chato e bonitão.

- Sim, Jules, já estou indo.

Levantei bufando. Fui até o banheiro para higiene pessoal. Quando voltei já estava pronta. Com minhas botas de cano médio, a saia curta com meia arrastão e a blusa de manga compridas que deixavam parte da minha barriga de fora. Eu sempre fui assim, meio gótica, meio roqueira, meio tudo.

Coloquei as munhequeiras que escondiam as pequenas tatuagens em meus pulsos.  A palavra signatum estava tatuada em meus pulsos duplamente, de forma que faziam uma cruz média em cada um. Significa “lacrado” ou “selado” em latim. Isso impedia que os demônios superiores conseguissem se apossar de mim, os mantinha longe. Sim, eles fazem essas coisas e é um pé no saco quando encontramos um possessor.

Então finalmente eu e Jules saímos pela noite, em nossa diária missão de caçar e mandar de volta pro inferno o máximo de demônios que conseguíssemos. Nem sempre era fácil, mas ultimamente, estava cada vez mais comum toparmos com um deles por aí. Eles estavam vindo, as barreiras entre os mundos estavam cada vez mais tênues. Os demônios só precisavam de uma brecha para vir até nós, mas os anjos... nem todos estavam dispostos a ajudar.

...

Jules e eu andávamos lado a lado. Ele era enorme, com seu porte atlético. Chamava muito a atenção. Mas as roupas discretas que eu o fazia vestir ajudavam bastante. Ele geralmente estava com uma camisa e uma calça esportiva, tipo pra corrida. Era boa, ajudava nos movimentos de batalha.

As asas e a Gladius se mantinham invisíveis aos olhos humanos. Ele só recorria à materialização quando estritamente necessário. Como de costume, eu mantinha meu ipod ligado, tocando um heavy metal básico pra aliviar a tensão e afastar o silêncio. Jules quase não falava, preferia se manter atento a tudo a nossa volta e estava sempre preparado. Eu me sentia segura com ele e sabia que era um parceiro com o qual eu sempre poderia contar.

Andamos alguns quarteirões, fazendo nossa ronda, quando ele parou de repente. Um homem que andava distraído quase esbarrou nele, de tão brusca que foi sua parada. Imediatamente eu fechei os olhos, tentando captar algum sinal de seres malignos. Nada, não captei nada. Mas Jules estava atento, tenso.

- Jules? O que foi? Que merda é essa?

Ele nem me deu bola, apenas continuou concentrado.

- Sinto a presença de um ser da luz. Está perto e confuso... está com medo.

Eu ouvi suas palavras com desconfiança. Outro anjo por perto? O que poderia ser?

Andamos mais duas esquinas pra leste e foi aí que eu senti. Uma presença boa e pacífica estava por perto. Era semelhante a de Jules, mas não tão magnética e muito mais tranquilizante. E estava tensa, assustada.

- Eu posso sentir agora.

Jules não podia perceber demônios, mas os seus irmãos ele sentia muito bem. Então, poucos minutos depois, nós avistamos o dono da presença misteriosa. Ou melhor, a dona.

Era uma garota que estava do outro lado da rua. As pessoas passavam por ela, esbarrando, olhando com desconfiança. Pra esses humanos ridículos, ela parecia uma drogada, mas eu sabia que estava assustada demais, que simplesmente não sabia o que fazer.

Eu atravessei correndo, indo em sua direção e Jules me seguiu. Quando nos aproximamos, a garota nos olhou muito assustada e desconfiada. Tinha olhos lindos, cor de mel, e belos cabelos loiros que lhe caíam pelas costas. Parecia ser mais nova que eu e vestia um simples vestido branco. Era muito bonita, tanto que eu fiquei um tempo sem dizer nada, apenas observando sua beleza angelical.

- Olá. – eu disse finalmente.

- O-olá. – ela respondeu enquanto cruzava os braços abraçando a si mesma.

- Qual é o seu nome? – Jules perguntou autoritário. Isso a assustou ainda mais.

- Me-Melanie.

- O que faz aqui, Melanie?

- E-eu vim... vim atrás de Jules. – ela disse.

- Eu sou Jules. – ele respondeu, encarando a pequena jovem assustada e encolhida.

Ela sorriu rapidamente. Parecia feliz ao ter encontrado Jules, mas ele não a conhecia, pelo menos não aparentemente.

- Oi. Eu sou Harper. Pode vir conosco, está tudo bem. – falei, mais gentil do que de costume.

Ela sorriu pra mim e relaxou um pouco. Eu senti tanto alívio ao vê-la sorrir. Era como se alguém tivesse me coberto durante uma noite fria. Era bom e tranquilo estar com ela.

- Quem mandou você? – Jules quis saber imediatamente, sem nem deixa-la respirar.

Melanie olhava para os lados, atordoada.

- Eu vim por minha conta, mas antes de cair no Abyssi, o Guerreiro Miguel me disse para mentaliza-lo. Disse que procurasse Jules.

- Miguel? – Jules parecia surpreso.

- Miguel? Que Miguel? Tipo, o Arcanjo? – perguntei me intrometendo na conversa.

- Sim. – ela respondeu suavemente.

Jules estava quieto e pensativo. Encarava a pequena e frágil moça vagamente.

- Vamos. – ele decidiu então – Vamos voltar pra casa.

Eu apenas acenei. Quando Jules dava uma ordem, era melhor segui-la sem contrariar. Melanie andava atrás de nós ainda olhando tudo a sua volta. Ela se assustava com pequenos barulhos como uma carro mais veloz, ou uma moto, ou uma buzina. Parecia que nunca tinha estado em uma cidade antes.

A um quarteirão de casa, porém, eu senti algo muito forte. Uma pontada direto no estômago. Demônios.

Jules viu minha reação e prontamente se pôs em defesa, ao meu lado. Melanie estava confusa e tensa. Senti novamente, dessa vez mais forte.

- Jules, está perto. – sussurrei. O anjo apenas acenou e eu já pude enxergar o brilho prateado da Gladius em suas mãos.

A criatura surgiu das sombras e não estava sozinha. Ouvi o som agudo e terrível de sua garganta. Era alto e parecia com o grito desesperado de mil almas suplicantes. O demônio veio rápido em minha direção e eu estava pronta, sempre estava. Vi quando os outros dois atacaram Jules de uma vez e ouvi apenas os sons do combate.

A criatura veio em minha direção e eu saltei de encontro a ela. Minha adaga benta já estava em minhas mãos. Eu saltei com tudo pra cima do demônio fedorento com olhos negros como a noite. Infringi um corte profundo na garganta e a criatura berrou ainda mais.

Rapidamente girei o corpo para poder aplicar o golpe fatal, mas o demônio me surpreendeu. Explodiu em uma fumaça negra e se revelou. Isso era extremante raro, eu jamais tinha presenciado algo assim. As criaturas assumiam algumas formas para andar neste plano, mas nunca possuíam energia o suficiente para assumirem sua forma nativa. Algo estava muito errado.

O demônio era agora uma coisa não definida, de pele brilhosa e viscosa e fedia ainda mais a morte e enxofre. Tinha longuíssimos braços e pernas e eram finos a ponto de eu perceber o formato dos ossos sob a pele acinzentada. Não tinha mãos ou pés e os braços e pernas, ou patas, sei lá, terminavam num fino prolongamento, que mais parecia uma unha gigante. Fazia um som horrendo arrastando no asfalto.

O tronco era torto e igualmente sem forma. E tinha uma espécie de cabeça com um único e grande buraco, do qual saía o hálito demoníaco e de onde eu podia ver dentes podres e afiados. Era enorme e a boca ocupava quase que totalmente o rosto da criatura.

Ele veio pra cima de mim e eu rolei. Estava assustada, pela primeira vez em muito tempo. O monstro investiu novamente e conseguiu me atingir de raspão, mas foi o suficiente para fazer um corte longo em meu braço esquerdo e fazer sangue brotar. Isso enlouqueceu o demônio. Eles queriam sangue, sempre sangue. Ele investiu contra mim mais uma vez. Segurei firme minha adaga, apesar de saber que era pouca lâmina para um monstro tão grande.

Mas não precisei atingi-lo. O demônio foi cortado ao meio de repente. Ele parou de se mover e estava caído no chão. Olhei pra frente e vi o impossível. Melanie segurava trêmula uma espada fina e delicada, com as duas mãos na frente do corpo. Da espada ainda pingava o sangue negro que também manchava o vestido branco da moça.

Ela respirava com dificuldade e olhava fixamente a criatura contorcida no chão, parecendo não acreditar no que via, ou no que tinha feito.


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Notas finais do capítulo

A história está começando...

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