De tudo o que eu sabia, ou o que eu não sabia, só havia uma verdade pra mim: a vida de Gabriel era mais importante pra mim que a minha própria vida. Engraçado, desde quando me tornei uma Filha do Pecado, sobreviver passou a ser a coisa mais importante de todas. Além do sangue, além do sexo, além de tudo, a autopreservação era o maior instinto de todos. Mas depois que eu percebi que o amava, percebi que minha vida era apenas secundária. Como eu poderia pensar em viver sem ele?

Tudo foi muito rápido, tudo mesmo. O tempo em que passei com ele, as lições que aprendi, tudo foi como um sonho, um sonho que nunca pensei que poderia sonhar. Aliás, eu não sonhava mais. Desde quando me tornei vampira, eu nunca mais sonhei. Deve ser porque o espírito dos Filhos do Pecado ficam presos em seus próprios corpos, como Gabriel me falou. Mas mesmo sem poder sonhar, mesmo sem acreditar mais em Deus ou na felicidade, Gabriel apareceu e me salvou.

Nessas poucas semanas com ele eu fui mais feliz que em todos os meus anos de vida. Então, não me arrependi do que fiz. Eu não consegui acompanhar a maior parte da luta dele com o outro Anjo, mas eu senti quando a vida dele estava ameaçada e, naquele momento, eu fui mais rápida. Nem pensei, só agi. Não havia o que pensar, o que ponderar. Ele era tudo, minha luz, minha felicidade.

Eu não poderia permitir que morresse por mim. Corri e o abracei. Senti a lâmina da espada penetrar em minha carne, mas o calor do abraço de Gabriel, fez tudo ser tão belo. Estava tudo tão claro pra mim. Era assim que devia ser, era por ele que eu devia morrer. Sem remorsos, sem medo, sem arrependimento. Somente por amor.

...

Minha espada perfurou a carne, mas do corpo errado. Eu lutava com meu irmão apenas pelo dever. Não queria enfrenta-lo, não queria ter que matá-lo. Mas era inevitável. As ações de Gabriel não me deram escolha.

Simplesmente não pude acreditar em meus próprios olhos. A vampira estava lá, nos braços de Gabriel, protegendo-o de meu ataque. Meu irmão gritou, chamou por ela, mas já era tarde. Minha lâmina, ainda impregnada com o sangue dela, pesava em minhas mãos. Senti meus outros irmãos e aproximarem, todos tão surpresos quanto eu. Era sem precedentes o que estávamos presenciando.

Gabriel a envolveu nos braços e, finalmente, as lágrimas escorreram de seus olhos azuis. Ele sentia dor, muita dor. Era como se ele próprio tivesse sido atingido. A dor e o desespero dele eram tão grandes, que todos nós sentimos. Eu chorei. Senti todo o amor e a dor de meu irmão, que abraçava a vampira apertado contra si.

Como podia ser? Como uma Filha do pecado tinha conseguido nos encontrar? Como ela havia conseguido permissão para entrar na casa de meu Pai? Como ela tinha sacrificado a própria vida por um de nós?

Eu não sabia as respostas, nem meus irmãos. Tudo naquele momento era a dor que todos nós sentíamos. A dor de Gabriel era imensa demais, era a mais pesada que eu já tinha sentido em toda minha existência. Eu já não estava suportando mais.

Ele nos encarou. Seu corpo vermelho pelo sangue dela. Não havia ódio, ele não nos condenou pelo o que aconteceu. Havia apenas tristeza, somente uma enorme e profunda tristeza.

...

Michaela era diferente, eu sempre soube, desde o momento em que a conheci. Ela me amou, me amou a ponto de sacrificar sua própria vida para salvar a minha. Minha dor era tão grande que não cabia em mim. Gritei, chorei, apertando-a contra meu peito, tentando sentir o pouco calor que ainda existia em seu corpo. O pior momento foi quando seus olhos se fecharam. Meus olhos verdes que eram minha vida, se encerraram.

Senti meus irmãos por perto. Eu não os odiei, não senti raiva. Eu sabia que eles faziam o que achavam que era certo. Mas o que era certo, afinal? O Senhor nos ordenou para que viéssemos à Terra e que resgatássemos os Filhos do Pecado. Nossa missão era fazer com que suas almas perdidas retornassem aos braços do Pai.

Agora eu percebo o que deveríamos ter feito. O tempo todo interpretamos as ordens de maneira equivocada. Matar não era a solução e Michaela foi quem mostrou isso a todos nós.

Ela foi capaz de amar, de sorrir, de sentir. Comigo, ela voltou à vida. Era isso, essa era a nossa missão. Não deveríamos matá-los, deveríamos ensiná-los a amar novamente. Deveríamos ensiná-los a lição maior que nosso Pai nos ensinou: o amor, o amor verdadeiro e sincero. Esse é o caminha da verdade e da salvação. Essa é a verdadeira salvação, e Michaela nos ensinou o que Anjo nenhum foi capaz de perceber. Ela nos ensinou que o único caminho pra retornar aos braços do Pai, é o amor.

- Gabriel...

Olhei para cima, na direção de Vahuiah. Eu sabia que todos eles tinham percebido a verdade. Levantei devagar, com minha vampira nos braços.

- Vamos enterrá-la. Ela terá o descanso que merece e as honras que deve ter, meu irmão.

Anariel se aproximou e pôs a mão em meu ombro. Minhas lágrimas voltaram quentes e abundantes. Vê-la morta em meus braços me fazia querer morrer também.

- Me desculpem, mas eu preciso levá-la. Preciso levá-la pra sua família, ela não pode ficar aqui.

Minha voz saiu tão robótica e sem vida quanto eu me sentia por dentro. Meus irmãos baixaram a cabeça, em sinal de respeito à minha decisão. Anariel se pôs ao meu lado e eu sabia que ele me acompanharia. Eu também podia sentir a dor deles e o arrependimento que veio à luz da verdade. Então, nós todos sentimos. Uma presença quente e forte e única. A figura surgiu diante de nós e tudo pareceu se transformar em luz.

Fechei os olhos, pois a energia que emanava daquele ser era enorme. Quando senti que diminuiu o suficiente, tentei ver o que tinha acontecido. Meus irmãos estavam ajoelhados a minha volta, de frente para a figura de luz, que não estava sozinha. Havia outro ao seu lado. Aquele eu reconheci, era Miguel.

Instintivamente, eu apertei o corpo de Michaela contra o meu. Algo dentro de mim se agitou. Será que eles a tirariam de mim? Eu já não a tinha, por que eles tirariam seu corpo sem vida de meus braços?

- Não viemos para levá-la, Gabriel.

A voz pronunciou as palavras em nossa língua antiga. Era uma bela voz feminina, suave, bondosa, que veio da figura iluminada ao lado de Miguel, que sorria pra mim. Aos poucos, a luz foi diminuindo, como se estivesse sendo sugada para dentro do corpo que tomou seu lugar. Era um Anjo. Uma linda e bela figura. Era pequena, com longos cabelos amarelos que se perdiam de vista. Os olhos eram violetas e as asas, eu sabia que existiam e que eram enormes e fabulosas, embora eu não as enxergasse.

Os Filhos da Luz, com suas asas translúcidas, permaneceram ajoelhados, assim como Anariel. Eu curvei a cabeça em respeito ao ser superior que estava diante de mim, mas vacilei e deixei mais lágrimas escorrerem para o corpo de Michaela em meus braços.

- Não chore meu irmão, não há motivo para dor. – Miguel falou se aproximando de mim.

Ele estava sorridente e visivelmente satisfeito, mesmo vendo que eu carregava sua filha em meus braços. Com cuidado, ele esticou o braço e acariciou docemente o rosto da minha vampira.

- Quando enviei você para esta missão, eu tinha a certeza de que dentre todos, você seria o único que poderia realizá-la. Você cumpriu a sua missão com êxito, conforme nosso Pai ordenou.

Eu encarava Miguel e as palavras ficaram presas em minha garganta. Foi com dificuldade que consegui falar:

- Michaela é sua filha, não é?

- Sim, ela é. – ele respondeu, sem interromper o carinho no rosto dela.

- Por quê? – foi tudo o que consegui falar.

Ele suspirou antes de responder.

- Entendemos errado, meu irmão. Não deveríamos matá-los. A verdadeira salvação não está na morte, mas na vida e no amor. Recebi a missão de trazer à Terra a pessoa que poderia nos mostrar isso e também a missão de escolher dentre todos o único capaz de compreender as palavras do Pai. Você, Gabriel, foi o único entre nós capaz de seguir seu coração e de lutar contra tudo e todos por isso.

Respirei fundo e senti dor. Minha mente estava confusa demais.

- Mandou que aquele vampiro a transformasse? – perguntei olhando para o rosto perfeito e sereno de Michaela.

- Tive de fazê-lo. Mas saiba que nunca, nunca deixei de estar com ela.

Silêncio. Como tudo tinha ido parar ali? Então eu estava certo. Aquele meu pressentimento de estar com ela, de estar fazendo o certo, era realmente o certo. Mas algo estava errado.

- Eu cumpri minha missão. Mas por que não me sinto feliz?

Eu encarei Miguel nos olhos e minha pergunta não foi respondida. Ele se limitou a sorrir.

- É por isso que estou aqui, Gabriel.

Olhei para frente, para a figura pequena que veio com Miguel até nós. Por um tempo, eu até tinha me esquecido de sua presença.

- Veio para levá-la...

- Minah, me chame de Minah. – ela disse sorrindo.

- Veio para levá-la, Minah?

Senti medo de ouvir a resposta. Eu sabia que o espírito de Michaela não estava mais em seu corpo, mas eu me agarrava a ele como se estivesse. Aquele corpo era tudo o que eu tinha.

- Não. Eu vim para trazê-la de volta.

Não entendi. Pisquei várias vezes e nada saiu de minha boca. Trazê-la de volta... essas palavras não entravam em minha cabeça.

- Eu vim com a permissão de nosso Pai trazer de volta a vida que você resgatou. Michaela se sacrificou por amor a você e alcançou o mais alto Dom que ele nos concedeu, o do Sacrifício.

Dizendo isso, a pequena figura se aproximou de nós. Miguel deu um passo para o lado e Minah ficou de frente para Michaela, que jazia em meus braços. Meus outros irmãos se puseram de pé e estavam nos rodeando. Minah passou a mão alva pela testa da minha vampira e aproximou seu rosto do dela. Sorrindo, Minah abriu a boca de Michaela com a mão e soprou. Soprou a vida, minha vida, de volta.

Foi um momento único. Senti o corpo de Michaela ser preenchido aos poucos pelo calor de sua alma, retornando ao corpo antes vazio. Enquanto soprava, Minah sussurrava palavras em nossa língua nativa. Ela dizia: Pelo sacrifício que fizeste, recebe sua vida de volta. Viva-a com alegria, viva-a com amor, e dissemine o amor de Deus entre os mortais. Seja feliz, Michaela.

Quando olhei para o verde brilhante e vivo de seus olhos, eu sorri, e senti minha Michaela de volta, de volta pra mim.