Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 7
Irritação


Notas iniciais do capítulo

Demorou, eu sei. Mas aqui está ele. Pequeno, mas finalmente postado.



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Na manhã seguinte fui acordada por mais um pesadelo. Menos específico que o da noite passada, mais abstrato, porém tão assustador quanto. Eu estava presa dentro do mar e, não importava o quanto eu me esforçasse e nadasse, não conseguia sair de dentro dele. Eu era puxada cada ver mais para o fundo do mar. Cada vez mais para o fundo da minha alma.

Não tive muito tempo para pensar a respeito ou ficar aflita com ele, pois logo fui arrastada para fora da cama por Elora. Após ter o curativo em meu braço trocado, Elora arrastou-me para um bosque que havia do outro lado da cidade, perto das pedras e do mar, para então colhe ervas medicinais. As árvores altas da mata densa permitiam pouca entrada de luz, tornando a busca mais complicada. Eu não queria exatamente estar lá, mas Elora alegava que a razão para me levar junto era por que eu devia ajudá-la, já que as ervas seriam usadas em meu braço. Mas eu sabia que o verdadeiro motivo para isso era que ela não queria me deixar por muito tempo, como se ela devesse me proteger de Bonnie o tempo todo. Não tentei escapar, sabia que ela se sentia melhor assim, ficava aliviada. E também, não posso dizer que não foi de certa forma, divertido.

Não que ficar acocada no meio do mato arrancando matinhos raros do chão seja algo exatamente divertido. Mas estar com Elora é. Vê-la cair sentada após perder o equilíbrio, ou repreender-me por ter arrancado uma erva que ainda estava muito pequena, alegando que eu podia tê-la deixado curtir mais um pouquinho sua vida como plantinha, antes de arrancá-la para transformá-la na papa verde que vai para meu braço depois, são bons exemplos.

Almoçamos sentadas de baixo dos galhos das árvores do bosque, já que Elora havia se prevenido e levado comida para caso estivéssemos longe do solar quando sentíssemos fome. Foi bom não ter de comer na agitação da cozinha do solar, tendo que estar debaixo do mesmo teto que Bonnie e aguentar seus olhares venenosos.

Já devia estar no fim da tarde quando resolvemos voltar, após encontrar boa parte do que estava faltando no pequeno estoque que Elora fazia questão de manter. Caminhamos calmamente pelas ruas da cidade. Comecei a reparar na mudança no olhar das pessoas em nossa direção desde o distrito comercial até as proximidades do distrito sul. Olhares estes que no início eram de curiosidade, mas respeitosos, passaram a tornar-se de cobiça ou preconceito.

Percebi que um homem olhava para mim fixamente, deixando seu companheiro falando sozinho, até que este resolveu ver o que o outro tanto olhava. Até que percebi que o ignorado era o causador dessa confusão toda. Antes que eu pudesse reclamar mentalmente, novamente, ele já estava ao meu lado, com uma expressão um pouco aflita.

– Como a senhorita está hoje?

– Como sempre estive.

A expressão antes preocupada deu lugar a um sorriso que se esgueirava nos cantos dos lábios, como sempre, achando graça de minhas respostas evasivas. Como sempre? Alguns dias podem ser considerados sempre? Para alguém com memórias de apenas um ano, talvez sim. Ou é isso que quero acreditar, quando na verdade cada mínima ação desse homem atrai meu olhar e atiça minha curiosidade.

– E você, senhorita Elora, está mais calma? – seu sorriso era zombeteiro, enquanto algo em seu olhar demonstrava certa curiosidade.

– Desde que a Millie esteja bem, não há motivos para eu não estar calma. – O clima ficou tenso por algum tempo, até que Elora deu seu sorriso gentil de sempre – O senhor poderia acompanhá-la até o solar? Preciso encontrar mais algumas ervas ainda.

– Claro.

E num instante virei uma criancinha que precisa de cuidados o tempo todo. Mas de que estou reclamando? De certa forma eu sou uma criança, completamente inexperiente e de certa forma ingênua. Mal conheço a cidade à minha volta, suas características e de seus habitantes. Mas nem só por isso preciso ter ser um cão de guarda à minha volta.

Quando abri a boca para protestar, o Sr. Marshall deixou que um amplo sorriso tomasse conta de seus lábios. Acabei por desistir, pois sabia que ele não desistiria. Além disso, Elora já não estava mais conosco, escapara de fininho enquanto eu reclamava mentalmente.

Suspirei profunda e demoradamente. Ainda faltava uma boa caminhada até o solar e algo me dizia que, mesmo que eu tentasse convencê-lo, ele não deixaria de me acompanhar, mas não custa nada tentar.

– Eu posso ir sozinha. Não será bom para o senhor se for visto andando comigo no distrito sul.

– Na verdade – ele começou com uma voz um pouco tensa – seria pior para você. Minha reputação já não é muito boa.

Não pude deixar de rir. Nem passou pela minha cabeça que minha risada pudesse ofendê-lo. E realmente ele não estava ofendido, ao menos não demonstrara isso. Na verdade, ele parecia um pouco confuso e seus olhos demonstravam certa curiosidade.

– É que eu achei cômico nós dois aqui, tentando empurrar a má reputação de um para o outro.

– Apesar de a sua ser indevida.

Ele olhava para mim sério, parecendo se chatear com o fato de eu ser vista como uma prostituta mesmo não sendo. Mas eu ri de novo. Se nem eu me importava, por que ele deveria? Pouco me importa o que os velhos caretas e as damas, falsas ou não, pensavam de mim. Sou feliz da forma que vivo, apesar dos pesares.

– Pouco me importa o que desconhecidos pensam de mim.

Falei em tom de brincadeira, mas com um fundo de seriedade, em meio ao riso. Ao perceber que eu de fato não me importava com isso, ele riu também. E então eu percebi um estranho padrão. Estávamos novamente rindo como idiotas de algo que normalmente as pessoas não acham engraçado. E a maior parte das garotas do solar condenaria essa atitude. Dizem que você deve seduzir um homem e não fazê-lo rir de seu humor distorcido. Mas eu não sou uma dama. Nem uma prostituta. Tampouco quero seduzi-lo. Ou quero?

Maldição, em que diabos estou pensando?

Passamos um bom tempo em silêncio após isso. Exceto quando ele pegou e cesta de minha mão para carregá-la ele mesmo, ignorando minhas queixas com um olhar significativo em meu braço.

– Imagino que tenham conseguido bastantes ervas, considerando o peso desta cesta.

– Sim, apesar de não termos conseguido todas que Elora queria. Mas conseguimos o suficiente para tratar meu braço até curar, e um pouco mais.

Ele pareceu pensativo por algum tempo, provavelmente pensando a respeito do que havia acontecido entre mim e Bonnie nas duas noites anteriores. E graças às palavras de Elora na noite anterior, provavelmente estava se sentindo culpado. Mas ele não era culpado. Não fora ele quem rasgara meu braço com uma garrafa, mas sim a loucura de Bonnie. E a loucura de Bonnie também não é culpa dele, ele só teve o azar de ela ter se apaixonado por ele. Ou melhor, eu tive o azar de ela estar apaixonada por ele. Pois mesmo que eu não me sinta assim com relação ao Sr. Marshall, Bonnie pensa que sim. E isso é um verdadeiro problema.

– Dói muito?

Mentir não ajudaria em nada, então é, dói como o diabo. Mas eu não preciso que outras pessoas a sintam junto comigo, então é melhor suavizar.

– Um pouco, mas agora não estou sentindo nada.

Eu podia perceber a culpa em seus olhos. Ele realmente se culpava pelo que acontecera comigo, como se ele mesmo o tivesse feito. E isso estava realmente me irritando.

– Mas você vai ficar com uma cicatriz horrível.

Suspirei pesadamente. Eu devia imaginar. O problema aqui não era eu sentir uma dor infernal, mas sim que após tudo, vai ficar uma cicatriz feia. Suspirei pesadamente.

– Esse é o real problema? Não me importo com cicatrizes Sr. Marshall, ao menos essa eu vou saber a origem.

– Como assim?

Essa simples e maldita pergunta foi o suficiente para que eu me descontrolasse por completo. Pensei que ele fosse diferente, mas não, é apenas mais um idiota que só se importa com aparências.

– Você pergunta como? Simples. Eu não me lembro de nada. Onde nasci, onde cresci, onde vivi. Ou como diabos consegui essas malditas marcas em meu corpo. Então Sr. Marshall, essa é a menor das minhas preocupações.

Quando percebi, já estava gritando com ele. E então correndo de volta para o solar, que estava apenas a alguns metros de onde estávamos. Eu sabia que provavelmente iria me arrepender disso depois, mas a atitude dele realmente me irritara. E magoara. Entrei no solar e segui direto para o meu quarto atrás da escada, ignorando os comentários e perguntas das outras garotas que estavam ali, perguntando principalmente onde estava Elora.

Atirei-me em minha cama, tentando não pensar em nada. Não pensar em ninguém.


Quando acordei já era noite. E ninguém me impediria de ir para aquele balcão. Nem Elora. Eu sabia que o veria se trabalhasse. Mas também sabia que enlouqueceria se ficasse a noite inteira naquele quarto.

E também sabia que Bonnie provavelmente faria algo esta noite. E dessa vez eu não ia deixar barato.



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