Ameno Dore escrita por MyKanon


Capítulo 2
II - Queda




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_ Tchau-tchau meninas. Tenho que correr para falar com a professora ainda antes do ensaio. Beijos.

Itacy jogou a pesada mochila no ombro e correu para fora da sala.

A professora Sueli havia lhe prometido um novo pianista. Precisava saber o progresso da situação.

Tocou o corrimão frio e correu escadas acima.

+

Enzo deu mais uma olhada na convocação. Não lhe incomodava o fato de ser expulso ou suspenso, mas ainda não havia feito nada errado...

_ Cara, como chego nessa sala aqui? - perguntou ao colega da frente.

_ Lembra da escadaria antes de chegarmos ao refeitório?

Uma confirmação de cabeça.

_ É no último andar.

_ Valeu.

Jonas não conseguia imaginar o que o novo aluno pudesse ter feito para receber uma convocação logo no primeiro dia, mas também preferiu não perguntar.

Bagunçando mais ainda os cabelos negros com a mão, Enzo venceu o primeiro lance de escadas. Faltavam mais três.

+

Itacy parou de correr. Sua respiração ficou pesada. Sentiu vertigens. Recostou-se na parede. Tinha de aguentar.

Fazia tempo que não se alimentava. Sentiu raiva ao pensar nisso.

Um pouco de água fresca no rosto vai me ajudar...”

Ergueu a mão até a altura do rosto. Estava trêmula. Agarrou o corrimão com firmeza. Mais alguns degraus e chegaria ao banheiro feminino.

+

Virando no penúltimo patamar, Enzo a visualizou.

Suas longas madeixas escorriam pela parede. Estava descansando? Pensando na vida?

Dormindo?

Seus olhos estavam fechados, podia muito bem ter caído no sono...

Era muito inconsequente de sua parte fazer isso em pé nas escadas.

_ Ah, não...

Ouviu-a reclamar, mas muito baixo. Mesmo que cem pessoas estivessem ali, apenas ele teria ouvido.

Em seguida seu corpo começou a deslizar pela parede.

Levaria uma queda muito feia. Muito provavelmente quebraria o pescoço.

+

Não queria apagar. Se machucaria. Faria barulho. Todos se preocupariam.

Mas estava fora de seu controle.

_ Ah, não...

Tudo sumiu. Sentiu-se no centro da Terra, e percebeu claramente seu movimento de rotação.

+

Tudo pareceu muito devagar. Eram apenas cinco degraus, mas sua velocidade estava diminuída...

Jogou os braços para frente e por sorte conseguiu amenizar sua queda.

Caíram juntos.

Sentiu as quinas dos degraus agredirem-lhe as costelas, mas a pressão do corpo de Itacy sobre o seu tomou toda sua atenção.

+

_ Desculpe-me, eu tropecei...

Itacy levantou-se rapidamente enquanto se justificava. Mas ao reconhecer o novo aluno, parou imediatamente.

_ Ah, você. - constatou com desdém.

_ Já me conhece? - perguntou sarcástico.

_ Não. Mas sei que você já me conhece. - respondeu cruzando os braços com altivez.

Depois de soltar uma risada, Enzo também se levantou.

Calou-se por um instante. Caminhou ao redor da colega, lhe estudando.

_ Isso a incomoda? - sussurrou ao seu ouvido.

Itacy não permitiu que o arrepio se manifestasse. Virou-se nos calcanhares e o encarou com firmeza.

_ Se arrependeria se soubesse o quanto.

+

Era mesmo um porre.

Como alguém de aparência tão angelical podia ser tão insuportável?

_ Você faz jus à sua fama.

_ Linda e perspicaz? Estou cansada de saber.

_ Chata.

_ Só para os merecedores. Bem, se me der a licença...

Enzo deu-lhe passagem antes de se aprofundarem nos adjetivos.

+

Itacy desviou-se do colega e subiu o último lance de escadas. Virou na direção oposta à planejada. Precisava jogar uma água no rosto. Depois da tontura e da fraqueza, agora sentia-se quente por causa da raiva.

+

Toc, toc.

_ Entre.

Enzo empurrou a pesada porta de carvalho e adentrou a sala revestida de mogno.

_ Lorenzo Freitas? - perguntou a professora observando-o por cima dos óculos minúsculos.

_ Enzo, por favor, professora.

_ Ah, sim. Pode se sentar, Lorenzo.

Ela estava mesmo ouvindo-o?

Acomodou-se na cadeira acolchoada e aguardou. A professora de cabelos grisalhos e aparência elegante voltou a escrever.

_ Sabe por que está aqui Lorenzo?

Ela fez a pergunta, mas continuou a escrever. Enzo recusou-se a responder enquanto não tivesse sua atenção.

Curiosa pelo silêncio, a professora parou de escrever e o fitou.

_ Não, professora. A convocação não dizia o motivo.

_ Ah, é mesmo.

Ela voltou a escrever, mas dessa vez por pouco tempo. Então cruzou as mãos sobre a mesa e o estudou. Começou:

_ Seu padrasto me fez ótimas recomendações sobre você.

Era uma afirmação, então Enzo nada disse.

_ Disse que você é um ótimo pianista.

O rumo da conversa em nada lhe agradou. Mas ainda assim não era uma pergunta, então não exigia uma resposta.

_ Talvez pudesse nos ajudar com seu dom, para que o ajudássemos com os nossos. O que acha?

Chantagem?

_ A professora pode ser mais específica?

_ Claro. Os alunos que participam dos grêmios ou dos clubes recebem pontuação extra. E isso é extremamente valoroso para suas fichas.

_ Hum.

Fizeram silêncio, e como o garoto não respondia, a professora insistiu:

_ E então, podemos contar com você?

Óbvio que não.”

_ Desculpe, professora, mas não me é interessante.

_ Ah, sim.

Enzo já contava três exclamações “Ah”.

_ Os alunos que desempenham cargos de responsabilidade dentro da escola recebem uma gratificação mensal no valor da metade do curso. Em forma de bolsa de estudos, ou espécie.

Metade do valor do curso era um montante considerável. Não precisava de dinheiro, seu padrasto arcava com suas despesas, mas ela era rigorosamente controlada por um contador.

_ Prefiro em espécie.

_ Ah, ótimo!

Quatro.

+

Itacy observou seu reflexo no espelho. Estava mesmo acabada. Olheiras começavam a se formar. Daria um jeito nisso quando chegasse em casa.

Enxugou o rosto em uma folha de papel e deixou o banheiro.

Caminhou a passos apertados até a sala da professora Sueli.

Toc, toc.

_ Entre.

_ Com licença, professora.

_ Tacy! Que bom que veio! Precisava lhe falar.

Mas o que...”

_ O que faz aqui? - perguntou dirigindo-se a Enzo.

_ Era sobre isso que eu gostaria de lhe falar, querida... Este é o Lorenzo, nosso novo pianista. Lorenzo, esta é Itacy, responsável pelo nosso corpo de balé.

_ O quê?! - exclamou a garota surpresa.

_ Enzo, por favor-

_ Por sorte recebemos um aluno virtuoso este ano, isso não é mesmo ótimo? - sorriu a professora para Itacy.

Não, era péssimo. Como alguém como ele podia ser virtuoso?

Mas não tinha escolha...

_ É, incrível. - confirmou irônica.

+

Justo agora que Itacy havia perdido a graça...

Ela não podia ser muda? Resolveria todos os problemas.

Enzo fechou a porta com cuidado e seguiu sua colega pelo suntuoso corredor do quarto andar.

Também não estava satisfeito, mas não permitiria que uma garota mimada ditasse o rumo de suas decisões.

Observou sua silhueta delgada caminhando logo à frente. O uniforme das meninas era igual ao dos meninos, calça e casacos pretos, contrastando com uma camisa branca. A única diferença era o corte, mais justo para as garotas.

Percebeu a irritação com a qual ela arrancou a gravata vermelha.

_ Ei, até que horas dura isso? - perguntou na tentativa de estabelecer alguma comunicação.

_ Meia noite.

_ Não é perigoso para voltar para casa?

_ Não.

Voltou a silenciar, estava claro que nenhum dos dois desejava aquilo.

Brincou com as folhas que tinha nas mãos. Era o cronograma de ensaios do mês.

_ Então, quando nos encontramos?

Itacy endureceu. Virou-se e o encarou com desprezo.

_ Nós ensaiaremos na quarta feira faltando vinte minutos para as onze horas.

Enzo riu do pensamento da colega.

_ Não pensei nisso, não se preocupe. Atualmente, é a última coisa que desejo, Tacy. - provocou.

_ Muito me alivia, Lorenzo. - percebera que ele não gostava do nome.

Sem dar maior importância à provocação, Enzo passou pela garota e iniciou a descida.

+

Insolente!” Itacy pensou irritada.

Tomou a outra escada para descer até a academia do colégio.

Ao chegar, correu para o vestiário para colocar suas vestimentas e dar a notícia para as outras bailarinas.

_ E ele é bonito, Tacy? - perguntou Michele.

_ Não.

_ Mas é gentil? - dessa vez foi Juliana.

_ Também não.

_ Toca bem? - Michele tornou a perguntar.

_ Não sei. Mas não temos outra alternativa. Então é bom que ele toque!

Mas com o que estava irritada? Ele nem estava mais lá... As meninas não tinham culpa.

_ Bom, na verdade, espero que o Max se recupere logo. Afinal, já temos sincronia... Agora, melhor ensaiarmos!

Quase que em sincronia, as garotas se levantaram.

+

_ Voltando com demi-plié... - Instruiu Itacy enquanto ela mesma executava o passo – Demi-plié Mari! - ralhou entre dentes.

_ Me desculpe, perdi. - justificou-se a garota sem se interromper.

Itacy revirou os olhos e continuou acompanhando as execuções através do espelho à sua frente.

Continuou a observar a todas sem descuidar de seus próprios passos.

Já os executava praticamente de forma automática. Não era a toa que lhe fora confiada a missão de dirigir os ensaios.

Seus sentidos eram apurados e sua desenvoltura se destacava. Conseguia prestar atenção aos seus movimentos e às suas cinco amigas sem deixar passar um detalhe que fosse.

_ Carol, junte essa pernas. Michele, desculpa anjo, mas você está parecendo um hipopótamo.

Através do espelho, pôde ver suas duas amigas lhe fazerem caretas e tentarem corrigir o erro. Limitou-se a devolver uma careta de desdém e continuou a observá-las cuidadosamente.

_ Ok, do início. - disse batendo palmas.

Na execução seguinte, caminhou por entre as amigas, fazendo correções, ou simplesmente assistindo sem muita emoção.

_ Mais alto Mari. - ordenou parando para avaliar a amiga.

_ Me ajude.

Itacy a auxiliou a erguer a perna mais para o alto.

_ Você me segura para eu não cair?

Itacy percebeu a nota de insinuação na voz da amiga, e recusou-se friamente.

_ Vai querer que eu segure na apresentação também?

_ Só queria um pouco de ajuda, Tacy...

_ Supere suas limitações.

Dando as costas para a amiga, voltou a inspecionar o resto das dançarinas.

Ao final do ensaio, estavam todas tão cansadas e irritadas, que deixaram o estúdio de dança em disparada, sem esperar umas pelas outras como habitualmente. Marian ofereceu-se para lhe fazer companhia, mas Itacy outra vez a evitou.

Jogou a mochila no ombro quando começou a descer as escadarias de pedra em direção ao portão.

Cumprimentou o guarda ao atravessar o arco de pedestres e ganhou a rua.

Enfiou as mãos nos bolsos da calça enquanto caminhava pela rua silenciosa. Era a única de sua turma que não tinha medo de fazer aquilo sozinha, àquela altura da noite. E muito provavelmente a única que não tinha pais que a proibissem de fazê-lo.

Pensou que depois de tanto tempo, as coisas fossem começar a ficar mais fáceis, mas parecia o contrário.

Sua fraqueza tornava-se mais frequente e estava cada vez mais irritada e descuidada.

Seu irmão estava descontrolado, mantinha-o sempre confinado. Ele tinha apenas 12 anos... Precisava sair, precisava de amigos... Não tinha ideia de como ajudá-lo...

Algumas vezes chegava a se arrepender da escolha que fizera, mas agora era tarde.

Sobressaltou-se com o som de uma garrafa tombando e rolando pela rua. Virou-se para trás a fim de encontrar o causador daquilo, mas não viu nada.

Não sentiu medo de ser atacada, pois sabia que ninguém poderia machucá-la, pelo contrário, sentiu medo de perder o controle.

_ Tem alguém aí?

Sua única resposta foi uma brisa suave atravessando a rua.

Itacy relaxou os ombros e voltou-se para seu caminho, e teve de conter um grito de susto ao quase trombar com alguém.


Continua


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