Coração Satélite escrita por Ayelee


Capítulo 4
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Oi gente, queria me desculpar pela demora para postar esse capítulo. Primeiro me enrolei resolvendo uma série de assuntos pessoais, e quando finalmente consegui concluir o capítulo, minha internet parou de funcionar. Estou há quase uma semana sem acessar, aproveitei que estou na casa de uma amiga para postar o Capítulo 3.
Espero que gostem, esse capítulo é super-importante para vocês entenderem algumas complicações na vida de Ally.

Vocabulário de Anita (no texto são os termos em negrito):

juntaris - juntas
amigaris - amiga
sobreviveris - sobreviver
safadinharis - safadinha
nadaris - nada
'apx' - apaixonada

Músicas do capítulo:
Relax, take it easy - Mika
http://www.youtube.com/watch?v=RVmG_d3HKBA

Early Winter - Gwen Stefani
http://www.youtube.com/watch?v=0S7Qu5HMiCA&feature=artist

Boa leitura!



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PDV da Ally
“Poxa vida que horas são? Perdi o encontro!” Acordei atarantada sentindo um facho de luz morno sobre meu rosto, encandeando minha vista.  Havia esquecido de fechar o blackout da minha janela antes de dormir, por isso o sol da manhã invadia meu quarto sem o menor pudor. Ainda era nove e meia da manhã. Dormi quase 12 horas seguidas.


 Neste período do ano o sol nascia na direção do meu quarto, funcionando quase como um despertador natural sempre que eu esquecia de isolar meu quarto do resto do mundo fechando a espessa cortina, própria para anular a claridade vinda do exterior. Mas dessa vez o que me despertou mesmo foi meu relógio biológico, confuso com a mudança de fuso-horário.


Meu corpo cansado pedia que eu ficasse mais um tempo em minha cama confortável abraçando meu travesseirinho de viagem, com cheiro de Europa e meu agora inseparável cobertor com a bandeira britânica. Minha mente, porém, estava funcionando a pleno vapor, o que me impedia de ficar parada esperando o tempo passar.


Decidi então pôr em prática a pequena lista de atividades que havia planejado noite passada.


Vejamos:


“Separar uma roupa legal para o almoço com as meninas, colocar as roupas sujas para lavar, organizar meus novos objetos decorativos nas prateleiras e murais, guardar todos os papéis, tickets, mapas, tudo referente à viagem, em uma caixa e depois decorá-la com temas da Inglaterra”.


Esfreguei os olhos com as costas das mãos, prendi o cabelo em um rabo-de-cavalo, levantei da cama como se fosse um zumbi e me arrastei até o banheiro para um revigorante banho morno. Em poucos minutos já havia posto as roupas sujas para lavar e escolhido meu visual para a reunião mais tarde.

Um vestidinho fresco de alças finas com fundo branco e estampas florais nos tons verde, azul e lilás. Perfeito para o clima quente de Fortaleza. Confesso que senti um pouco de saudades de usar roupas em que os braços ficam descobertos e com um belo decote, sem precisar me preocupar em adquirir um resfriado pela ousadia.


Escolher onde colocar cada uma das peças decorativas que eu trouxe de viagem era uma atividade um pouco mais demorada, precisava decidir o que combina com o quê, qual objeto merece mais destaque, enfim, adiei esta tarefa para um momento em que não estivesse com tempo limitado.
Só restava reunir toda a papelada que acumulei durante os trinta dias que passei na Inglaterra, desde entradas de espetáculos teatrais até os tickets de metrô e do ônibus vermelhinho, ícone da cidade de Londres. Sentei no chão de granito gelado diante da minha mala, enfiando a mão em todos os bolsos, sacolas, caixas, onde quer que pudesse haver algum papel escondido.

Por fim peguei minha carteira, que estava pesada de tanta bugiganga que juntei lá, com pena de jogar fora. Afinal, tudo era lembrança de Londres!


Entre um cartão do seguro saúde e as últimas cédulas de libras dobradas dentro da carteira estava o cartão de visitas que Roger havia me entregado. Um calafrio percorreu minha coluna, da base de minha lombar até a nuca. Fechei os olhos me permitindo ter um flashback de meu encontro com Roger...


Agora, pensando com mais clareza e lembrando a expressão no rosto dele, parecia que um traço de aflição estava estampado em seus olhos azuis-esverdeados. Claro que ele não havia esbarrado em mim de propósito e, eu como fã, deveria saber que Roger nunca agiria de forma rude com ninguém. Onde eu estava com a cabeça para explodir daquela forma?


Suspirei e dei um risinho desanimado balançando a cabeça negativamente. Enfim, passou, eu não podia mais consertar aquele mal-entendido. Cada célula do meu corpo pedia para voltar no tempo para que eu pudesse reagir de forma mais madura, mas diante do impossível o que me restava era perdoar a mim mesma e guardar com carinho a única lembrança que eu tinha para provar a mim mesma no futuro que aquele encontro havia sido real.


A letra de Roger no cartão estava tremida, dava para perceber que havia sido escrito em um momento de urgência. Por que ele escreveu esse endereço? De onde será? Me passou pela cabeça uma idéia que a princípio  tentei reprimir, mas a curiosidade foi mais forte que eu.


Levantei do chão e sentei em minha cama com o laptop no colo. O wallpaper com imagens da última sessão de fotos que Roger fez para a revista Details fez meus batimentos cardíacos acelerarem um pouco e alterou minha freqüência respiratória levemente – meu Deus ele é lindo demais – e por segundos não pude acreditar que havia encontrado esse homem pessoalmente, mas o cartãozinho em minha mão escrito com letras desorganizadas em caneta preta me assegurava que sim, eu não só havia o encontrado como também tocado, de uma forma atrapalhada, mas ainda assim havia tocado seu corpo, sentido seu cheiro de cigarro misturado com cheirinho de roupa limpa, e minha memória garantia que meu olhar havia encontrado aqueles olhos inquietos, ternos, que escondiam uma mente em constante atividade.


A partir daí passei a ter uma sensação de que em todas as fotos ele olha diretamente para mim, me encarando com um ar de quem está tentando me decifrar. “Que bizarro... fico sem graça só em mirar o olhar penetrante dele em fotos. Alicia, você é ridícula. Você tem sorte de ninguém poder ler seus pensamentos, senão a essa hora você estaria fazendo desenhos nas paredes em algum sanatório.” Falei para mim mesma, quase em voz alta. “Preciso mudar esse wallpaper imediatamente, ele me distrai muito. Coragem!”


Abri a janela de busca no Google e busquei o endereço que Roger havia anotado. Não apareceu nenhuma referência coerente do endereço, então resolvi tentar o Google Maps. Agora sim, o mapinha indicou não somente o endereço, como me permitiu passear pela rua indicada no endereço através do Google Streets.

O bairro parecia ser extremamente tranqüilo, provavelmente uma área residencial da cidade. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Aquele endereço não poderia ser da casa dele, nenhuma celebridade iria se expor de forma tão inconseqüente. Uma pontinha de excitação invadia meus pensamentos, levantando as teorias mais absurdas em minha imaginação. Minha respiração agora estava ofegante, e o coração cavalgava dentro do peito. “Roger Peterson, você é um louco.” Pensei comigo mesma.


Eu precisava contar essa descoberta intrigante à Helena e Anita, precisava compartilhar isso com alguém antes que eu explodisse sem saber o que fazer. Peguei meu celular que repousava no criado-mudo junto do livro com as obras de Shakespeare que eu havia adquirido na Barnes & Noble dois dias atrás. Nesse momento tudo me fazia lembrar de Roger.


Hesitei por um minuto antes de discar o número de Helena, “Por que estou fazendo isso? Não vai me levar a lugar algum alimentar essa loucura. Contar para as meninas só vai conduzir essa história a um nível que eu não estou preparada para enfrentar. Não quero tomar decisões que não passam de ilusão, por me deixar levar pelos incentivos de minhas amigas saicow.”


Como para me trazer de volta à realidade, o celular vibrou em minha mão com o sinal de nova mensagem de texto. Providencial. Era de Daisy:


Mudança de planos: o almoço será na minha casa. Minha irmã me deixou de castigo cuidando do meu sobrinho. Já pedi os sushis no delivery. Esteja aqui pontualmente às onze e meia, ok? Tchau mesmo!


Hã? Almoçar na casa da Daisy? Com a família inteira? Não mesmo! Santa Inquisição elevada à milésima potência está fora de cogitação! Tratei de responder à mensagem dela imediatamente, antes que ela levasse esse plano desvairado às últimas conseqüências.


    Espere aí baby, reunião com sua família inteira? Me inclua fora dessa. Falou!


Mal pressionei o botão de enviar e o telefone tocou a batida hipnotizante da música ‘Promiscuous’ da Nelly Furtado, que a própria Daisy havia escolhido para ser seu toque pessoal, no meu celular.


- Sua ridícula, lógico que minha família não vai estar aqui! – Esbravejou naquele tom ‘mais-que-óbvio’ típico de Daisy – Continua sendo somente nós quatro, como combinamos. Meu irmão vai para uma churrascaria com o Max e a Gabi e o restante da turma deles. Você está safa.


Normalmente a Daisy era ‘Suíça’ quando o assunto era eu versus Davi. Mas como amiga, ela tentava me proteger ao máximo dos meus próprios sentimentos em relação ao seu irmão. Sempre evitava fazer programas em que eu e Davi estivéssemos presentes na mesma ocasião, exceto nas datas impossíveis de contornar, como aniversários, Natal, viagens de fim-de-semana à casa de praia de sua família, etc.


Dessa vez ela estava errada. Eu não estava tão preocupada com Davi quanto ela imaginava, só não queria passar pela bateria de perguntas de sua mãe e pai, além da própria Daisy.


- E quem disse que estou preocupada com o Davi? Sou outra pessoa baby, essa viagem me fez muito bem. Acredite, não me importo em encontrá-lo, só acho que vai desviar o foco de nossa reunião – Tentei passar o máximo de confiança em minha voz, já que ela não podia ver meu olhar de insegurança me denunciando.


- Muito bem, pois não tem desculpa. Traga sua câmera, todos os chips de memória e o que mais você tiver aí.


Olhei para o cartão do Roger, que estava em pé entre o teclado e a tela do meu laptop – Certo, levarei tudo – Bem, ela não sabe que esse cartão faz parte do ‘tudo’, então ele não precisa ir. Concluí satisfeita.


- Tchau mesmo!


-Tch....


Tu tu tu tu tu tu


“Grrrr...Daisy....eu ainda ensino essa atrevida a esperar a gente se despedir antes de desligar o telefone!”  Revirei os olhos e fitei o relógio, para só então perceber que já se aproximava das dez e meia, eu tinha uma hora para terminar de arrumar minhas coisas, tomar um banho, me vestir e sair!


Desliguei o laptop e deixei-o em cima da minha cama. Reuni todos os papéis que havia retirado da mala e guardei-os dentro da caixinha de papelão, e por último, peguei o cartão de Roger e o coloquei embaixo de todos os papéis, no fundo da caixa, como para manter a tentação fora de alcance.


Corri para um banho rápido, já havia lavado o cabelo quando acordei, bastava dar um jeito na franja com o secador. Coloquei o vestido estampado de alcinhas e uma maquiagem leve: pó, blush rosado bem claro, rímel transparente e delineador marrom na parte inferior dos olhos.


Coloquei a case com o laptop no assento do banco de passageiro e no banco traseiro uma bolsa com os presentinhos que trouxe para Daisy e Davi junto com algumas coisas interessantes que separei para mostra a Daisy, como os livros que comprei e algumas maquiagens que sei que ela adora.


Era bom pegar o carro novamente depois de um mês sem dirigir... só precisava prestar atenção no sentido das ruas, afinal na Inglaterra o trânsito é todo invertido.

Coloquei o CD que havia gravado com a seleção de músicas para a trilha sonora da viagem: muito David Guetta, The Fray, Jamiroquai e principalmente Mika. Para criar uma atmosfera parecida com o clima de Londres, ajustei a temperatura do ar-condicionado para 18°C, não tão frio, mas suficiente considerando os 29°C que faziam no exterior do carro.

Aumentei o volume quando a faixa ‘Relax, take it easy’ do Mika começou a tocar. Segui o caminho até a casa de Daisy cantando loucamente dentro do carro, sem me importar com os olhares de estranheza que as pessoas nos outros carros lançavam em minha direção.


O apartamento de Daisy estava silencioso quando cheguei. Ian, seu sobrinho de quatro anos estava dormindo no quarto dos avós e Daisy estava terminando de preparar a mesa para o almoço. Ainda não havia pedido a comida japonesa, pois queria garantir que os sushis estivessem frescos ao serem servidos.

Ouvi um burburinho vindo do hall de entrada do apartamento já reconhecendo a voz fanha de Anita, que tagarelava animadamente com Helena enquanto aguardavam a porta ser aberta.


Ofereci-me para finalizar a arrumação da mesa para que Daisy pudesse receber nossas amigas que acabavam de chegar. O grupo atravessou a ampla sala de estar em direção à mesa que ficava na sala de jantar, onde eu as esperava, com meu laptop e a sacola cheia de bugigangas.


- Kelhiiiiida! – Anita me cumprimentou com um forte abraço, como se não me visse há semanas.  – Afe, nós passamos tanto tempo juntaris que quase não consigo dormir noite passada, de tanta saudade que senti de vocês!


- Eu também senti falta de conversar com vocês antes de dormir – Sorri honestamente para Anita


- Ei, vamos parar com esses papos que me excluem, faz favor? – Daisy protestou


- Ok amigaris, como você conseguiu sobreviveris esse tempo todo sem suas consultoras para assuntos aleatórios?


- Eu estava quase sufocando o coitado do Luciano. Ele estava rezando pra vocês voltarem logo porque eu já estava pirando o cabeção.


- Ah... imagino – Pensei alto, sabendo que Daisy é perfeitamente capaz de levar alguém à loucura quando decide exigir ‘um pouco’ de atenção.


- Que bom que você trouxe seu laptop Alix – Helena apontou para o aparelho em cima da mesa – Eu trouxe meu pen drive, vou copiar suas fotos!


- Ótimo, também vou aproveitar para copiar suas fotos e da Anitz no laptop – Respondi enquanto cada uma de nós se acomodava nas cadeiras em torno da ampla mesa de jantar.


 - Day, eu trouxe algumas coisinhas que me lembraram você – Estendi a mão com um saquinho de tecido prateado lacrado com um laço de fita de cetim azul


- Ai que lindo, um presente! – Na mesma hora Helena e Anita entregaram para Daisy os presentes que elas próprias haviam trazido para nossa amiga


-Mais presentes! – Daisy ficava mais animada a cada embalagem que abria, seus olhos escuros pareciam de uma criança abrindo presentes de Natal.


Havíamos combinado de comprar para ela presentes que se complementassem, então eu dei um kit de maquiagem para viagem e um tapa-olhos para dormir com a foto dos olhos da modelo britânica Kate Moss. Helena trouxe um lindo par de brincos dourados que escolheu na feirinha de Camden Town e um baby doll que tinha a bandeira da Inglaterra estampada como se fossem vários carimbos espalhados por todo o tecido. Anita deu uma pulseira modernosa que era a cara da Daisy e um porta-retrato já com uma foto.

Era uma das fotos mais engraçadas que tiramos na viagem: o Eurotrio Feliz reunido e cada uma de nós segurando uma parte de uma imagem do rosto de Daisy impressa em papel A4 - que carregávamos para todo lugar da cidade - com o Big Ben ao fundo.


Como esperávamos, Daisy amou todos os presentes, especialmente a foto maluca com seu retrato em Londres.


A conversa fluiu facilmente enquanto mostrávamos objetos explicando onde os havíamos adquirido, qual a importância deles e passávamos fotos em slideshow na tela da TV, que estava conectada ao meu laptop. Estávamos tão envolvidas em meio a tanta novidade que não percebemos as horas passando. Quando lembramos de pedir os sushis já passava de uma e meia da tarde.


Depois de trinta minutos, a campainha tocou e corri para abrir a porta para receber nossa encomenda, antes que o barulho acordasse Ian, o que acabaria com nossa farra.


Quando abri a porta meus olhos repousaram na figura de Davi, vestindo uma camisa pólo azul claro e bermuda cáqui, com o antebraço apoiado na moldura da porta. Lindo, cheiroso e maravilhoso. Minha respiração ficou acelerada com a visita inesperada. Eu não havia me preparado para vê-lo hoje.

Ele também pareceu surpreso ao me ver – Daisy vai me pagar por isso - Seus olhos castanhos se estreitaram enquanto ele me analisava dos pés à cabeça, com uma expressão de aprovação. Ele mordeu o lábio inferior...


- Quer dizer que você já chegou? Pensei que você tinha se mudado de vez pra Inglaterra. Foi trazida à força? – Disparou sem ao menos me  cumprimentar, se dirigindo porta adentro. Típico Davi.

Ao passar por mim, seu tórax roçou na lateral do meu corpo, provocando uma onda de arrepios que se propagou até minha nuca. Eu tinha certeza de que ele havia feito isso de propósito, pois ele sabe o efeito que sua presença tem sobre mim, mas eu não podia evitar o que estava sentindo.
Estampei no rosto meu melhor sorriso e respondi com indiferença, esperando que meus olhos não me denunciassem.


- Pelo visto alguém além da Daisy sentiu minha falta. Eu trouxe uma lembrança de Londres para você – Atravessei a sala em busca do pacotinho com seu presente, enquanto ele cumprimentava Helena e Anita civilizadamente. Eu era a única que havia trazido algo para o Davi, isso ficou claro na expressão embaraçada que as duas fizeram quando estendi o saquinho com o presente para ele.


Corei ao perceber que mais uma vez estava fazendo papel de boba na frente do garoto que era minha paixão não-correspondida. “Muito bem Alicia, você acaba de destruir o pouquinho de dignidade que ainda tinha diante do Davi.” Pensei, censurando a mim mesma ao assisti-lo dar um sorriso de canto de boca e dizer um tímido “Obrigado” enquanto abria a embalagem, sem olhar para mim.

Era um copo de cerveja com desenhos dos principais monumentos de Londres. Não tinha como não agradar, afinal, era algo relacionado à coisa que ele mais adorava: cerveja.


- Massa, valeu Lice! – Só ele me chamava de ‘Lice’ e eu me derretia como manteiga na chapa quando ele falava assim – Vou nessa - Deu um tapinha no meu ombro e seguiu pelo corredor do apartamento e se trancou em seu quarto.


Quando ele deixou o ambiente, voltei a respirar normalmente, mas meus pensamentos estavam completamente desconexos, minha voz trêmula e, sem dúvida, minha cara de boba no modo ‘força total’.


Anita e Helena correram para mim saltitando e soltando o velho “Aêeee” e eu desesperada pedindo para elas falarem mais baixo.


- Shhhh... vocês querem acabar comigo suas saicows? – Nesse momento Daisy havia saído para atender a porta; agora era o sushi de verdade. De repente eu não estava mais com fome, meu estômago incapaz de processar qualquer alimento.


- Alix você não tinha mostrado para nós esse presente que comprou pro Davi! Como conseguiu fazer isso escondido? A gente estava junto quase cem por cento do tempo - Helena questionou sentando novamente à mesa.


"Oooops..."


- Foi em uma loja de souvenirs quando estávamos passeando próximo ao Palácio de Buckingham e vocês entraram em um restaurante para ir ao banheiro, lembra?


- Mas que safadinharis, escondeu de todas nós que tinha comprado um presente pro Daviris! – Anita completou.


- Eu queria justamente evitar que vocês ficassem tirando onda da minha cara, como estão fazendo agora – Repliquei um pouco magoada. Será que eu não conseguia pelo menos uma vez na vida não pagar mico na frente do Davi?


Daisy serviu os sushis e eu me ocupei de conversar enquanto elas devoravam a comida japonesa que pelo horário já não podia mais ser chamada de almoço. Já havíamos descrito todos os pontos turísticos que tínhamos visitado, contamos as roubadas que nos metemos, as pessoas que conhecemos ao longo da viagem, inclusive alguns brasileiros que saíram com a gente para algumas baladas.


- Olha aê, o Eurotrio Feliz interagindo em Londres! Adoooro minhas correspondentes internacionais! – Daisy começou a se empolgar com o assunto – Mas conta aí, não tinha nenhum deles pelo menos ‘pegável’?


- Que nadaris, eram dois casais de mineiros, todos gente boa, mas os rapazes não estavam disponíveis. Mesmo assim, a Allyris já estava ‘apx’ pelo barman do pub que ficava embaixo do alberguinho onde a gente estava hospedada – Anita piscou para mim, que imediatamente baixei a vista e senti o sangue esquentando minhas bochechas de vergonha.


Antes mesmo de levantar a vista, eu já havia percebido que Davi estava de volta à sala de jantar, senti o cheiro de seu perfume quando ele abriu a porta do quarto e o vento se encarregou de conduzi-lo até meu nariz. Eu poderia identificar o cheiro dele em meio a uma multidão.


Quando meu olhar cruzou com o dele, pude notar uma ponta de irritação que ele tratou de disfarçar com o sarcasmo usual, fazendo mais um de seus comentários ácidos:


- Menina por que você sempre fica correndo atrás desses gringos que não dão a mínima para você?


“Nossa, o que foi que eu fiz para despertar toda essa ira?” Fiquei repassando em minha memória os assuntos que conversamos, tentando descobrir se havíamos mencionado algo que pudesse tê-lo desapontado. Como sempre, tentei controlar a ansiedade que tomava conta de mim sempre que ele falava comigo. Medo de falar a coisa errada. Mas o clima da conversa estava tão leve que decidi manter o bom humor e não levar a sério a provocação dele.


- É mesmo Davi? E quantos gringos você conhece? Você fala com tanta propriedade que parece conhecer profundamente os interesses deles.


Davi pareceu confuso, mas manteve sua pose de dono da razão e continuou:


- Não conheço nenhum, mas todo mundo sabe o que eles querem quando vêm para o Brasil.


“Onde será que ele está querendo chegar?” As meninas pareciam expectadoras de reality shows assistindo nosso pequeno espetáculo, interessadas em ver como isso iria acabar.


- Bem, os gringos que vêm para cá não são os mesmos que a gente conhece quando vai para a terra deles.


- Eles não tratam as mulheres como elas merecem ser tratadas!


“Faz-me rir. Não acredito que isso está saindo da boca da pessoa que escolheu como hobby brincar com meus sentimentos sem a menor culpa.” Não consegui me segurar, levantei uma sobrancelha e com um sorriso de canto de boca disparei:


- E eu devo tomar a forma como você trata as mulheres como um modelo ideal? – Perguntei ironicamente. Eu sabia que Davi era um completo machista, desses que acham que homens podem fazer certas coisas e as mulheres não podem.


“Olha só como ele está incomodado! Qual o problema com esse cara? Um pouco de humildade não faz mal a ninguém, sabia?”


- Sim, porque não? – Indagou retoricamente, cheio de razão e visivelmente ofendido por eu pensar sobre ele sob tão baixo conceito. Mas em minha defesa - só posso falar pela minha própria experiência - e comigo ele nunca foi nenhum gentleman.


- Me desculpe baby, mas eu fico com os gringos mesmo.


Seus olhos me fuzilavam, cheios de questionamentos. Ele aproximou-se com seu corpo posicionado na minha frente, me encarando de cima, como se estivesse tentando me intimidar, completamente alheio à presença das outras pessoas na sala.


- Eles só querem se aproveitar de vocês! – Esbravejou mostrando que estava levando o assunto realmente a sério. Mas eu estava com o humor muito bom para levá-lo a sério, não queria discutir esse tipo de assunto com ele. Aonde isso iria parar?


- A questão é: E se eu também quiser me aproveitar deles?


Silêncio.


Por alguns segundos percorri o ambiente com os olhos e dei de cara com minhas três amigas boquiabertas, com olhos arregalados, completamente chocadas com o rumo que nosso feliz encontro estava tomando.


Definitivamente algo estava mudando em mim. Nunca, em sã consciência, passou pela minha cabeça rebater as implicâncias de Davi de forma tão direta e destemida, a ponto de desequilibrá-lo. Na verdade eu que sempre ficava atordoada com suas provocações, e costumava responder polidamente aos seus insultos, acreditando que era só o jeito dele de mostrar que tinha liberdade o suficiente para falar comigo como bem entendesse.


"De repente era até uma forma de gostar... As crianças não são assim? Implicam com aqueles que gostam? Talvez Davi fosse infantil nesse aspecto."


Não sei aonde a antiga ‘eu’ foi parar, mas não estou sentindo a menor falta dela.


- Muito bem Alicia. É assim que uma garota deve falar... Muito bem... – Perplexidade e decepção estampados em seu rosto. Davi não esperava esse tipo de pensamento vindo de mim.


Nunca tinha o visto tão transtornado... Porque ele se importa tanto? Por acaso me considera uma irmãzinha pura e inocente?


- Não consigo ver o que você tem a ver com isso...


“Boa, Ally, boa!” Cumprimentei a mim mesma. Estou começando a me divertir com essa discussão


- Está vendo? É por isso que ninguém quer namorar você! Porque você é uma garota chata, insuportável.


Um tapa na cara teria doído menos. A máscara de auto-confiança e segurança que eu havia criado para enfrentá-lo, aos poucos começava a se desfazer.


Senti como se uma faca estivesse atravessando meu peito. Meu coração estremeceu, minhas mãos ficaram dormentes. Se eu estivesse em pé, a essa hora eu estaria desabando no chão, minhas pernas estavam fracas. Ele me feriu como só ele sabe fazer. Não só afirmou que não me queria, mas generalizou a idéia.


- Quer dizer que você é o porta-voz do resto da humanidade? Será que a chata sou eu mesmo?


- Eu sou gente-fina, não é mesmo meninas?


Ele olhou na direção de Daisy, Helena e Anita que assistiam nosso disparate sem coragem de intervir, sob risco de levar uma patada minha ou do Davi. Todas encaravam as próprias mãos, tentando não participar do debate.


- É sim, dormindo você não faz mal a ninguém – Respondi com o pouco de humor que ainda me restava. Sua expressão de incredulidade seria cômica se eu não estivesse tão magoada e prestes a me desmanchar em lágrimas.


- Por que você não vai logo embora do país de uma vez?


Ele estava me massacrando. Será que estava fazendo isso de propósito? Será que estava contrariado por eu tê-lo desafiado? Segurei o choro, me esforçando para controlar o canto da boca que estava tremendo, pronto para demonstrar minha fraqueza e impotência diante dele.


- Garanto a você que não é por falta de vontade. Mas cuidado com o que você deseja, pode se tornar realidade...


Pisquei várias vezes tentando conter as lágrimas que se formavam nos cantos dos meus olhos.


- Você é muito atrevida. Homens não gostam de meninas assim. Desse jeito você vai ficar solteira pra sempre.


- Então você está preocupado com meu estado civil? Que consideração da sua parte! Mas que diferença isso faz na sua vida?


- Quem sabe com um homem do lado você melhore esses seus modos e aprende a tratar melhor as pessoas.


“Meu Deus, me tira daqui agora!” Implorei silenciosamente.


- Se a presença de um marido na vida das mulheres fosse garantia de eterna felicidade, todas as mulheres casadas estariam alegres e sorridentes por aí, cem por cento do tempo.


- Você não consegue ser agradável nem por um minuto? Olha só o jeito como você fala comigo!


Ok, já estávamos indo longe demais. Precisei reunir todas as minhas forças para encerrar essa conversa inútil que estava tomando um rumo inesperadamente desastroso. Exalei demoradamente e em um tom de voz mais baixo, falei pausadamente:


- Davi, preste bem atenção: eu sou como um espelho. Eu apenas reajo ao modo como sou tratada. É um reflexo de auto-preservação. Se você não gosta do que vê quando está diante de mim, talvez devesse repensar o seu modo de tratamento comigo. Ou melhor, não precisa mais me dirigir a palavra, já que para você eu sou tão desagradável.


E com essas palavras finais me levantei, peguei meu laptop e me dirigi para a porta, sem olhar para seu rosto. Estava com a voz embargada e não queria sucumbir ao choro e mostrar que estava fragilizada. Era a primeira vez que eu o enfrentava, estava completamente transtornada.
Não podia tolerar as acusações e ofensas que ele havia lançado contra mim gratuitamente.


Ele sabia o quanto estava me magoando, mas mesmo assim não parou de falar... Naquele momento comecei a enterrar o que sentia por Davi e certamente lhe dei muito o que pensar.


Ele ficou parado em pé no meio da sala, passando as mãos nos cabelos procurando se acalmar.


- Meninas, se vocês não se importam, preciso ir para casa. Minha cabeça está explodindo.

Ouvi os apelos das minhas amigas enquanto aguardava a chegada do elevador, mas estava tão entorpecida remoendo as palavras proferidas por Davi, que não abri a boca para agradecer ou dizer tchau, simplesmente penetrei na cabine do elevador – graças a Deus não tinha nenhuma pessoa lá dentro - e mal as portas fecharam não pude mais conter o choro que estava entalado. As lágrimas escorriam em correntezas, lavando a pouca maquiagem que havia no meu rosto, pingando sobre meu vestido estampado.

Entrei no carro batendo a porta com força e fiquei ali, sentada no banco de motorista por alguns minutos, repassando a discussão trágica com Davi inúmeras vezes em minha cabeça. O que está acontecendo comigo ultimamente? Não consigo manter minha boca fechada. Primeiro o xilique com o Roger – meu coração apertou com a lembrança – agora esse ataque de coragem que resultou no rompimento de relações com o único garoto de quem eu sabia gostar.

“Não, não vou assumir a culpa mais uma vez pelas grosserias do Davi. Chega. Preciso enxergá-lo pelo modo como ele se comporta comigo e não pelo que eu espero que ele seja.” De certa forma eu estava sentindo um alívio, pela primeira vez na vida eu estava sentindo raiva de verdade dele. Antes eu apenas ficava magoada, mas não era o suficiente para não querer vê-lo nunca mais, como estou sentindo agora.   

Girei a ignição do carro, liguei o ar-condicionado e coloquei meu CD da Gwen Stefani. Procurei a faixa específica de uma música que eu havia escolhido há algum tempo como trilha sonora da minha história com Davi. Nesse momento se encaixava perfeitamente.

Eu sempre tive essa mania estranha de querer embalar meus momentos tristes com uma música de fundo, como se estivesse em uma novela.

Quando os primeiros acordes da música começaram, senti um frio na barriga e a correnteza de lágrimas voltou a escorrer pelas minhas bochechas e eu dirigia para casa ao som de ‘Early Winter’, no repeat:


(Para visualizar o vídeo de 'Early Winter' > http://www.youtube.com/watch?v=0S7Qu5HMiCA&feature=artist )

“You, you know how to get me so low |Você, você sabe como me deixar pra baixo
My heart had a crash when we spoke | Meu coração parou quando conversamos
I can’t fix what you broke | Não posso consertar o que você quebrou
You, you always have a reason | Você, você sempre tem uma desculpa
Again and again this feeling | De novo e de novo essa sensação
Why do I give in? | Por quê eu sempre deixo passar?
And I always was, always was one | E eu sempre fui, sempre fui
For crying, I always was | Aquela que chora, sempre fui aquela
One for tears | Que derrama lágrimas
The sun’s getting cold, it’s snowing | O sol está esfriando, está nevando
It looks like an early winter | Parece um inverno precoce
For us | Para nós
Looks like an early winter for us | Parece um inverno precoce para nós
An early winter, oh I | Um inverno precoce, oh Eu
Need you to turn me over | Preciso que você me supere
It’s sad | É triste
The map of the world is on you | O mapa do mundo está em você
The moon gravitates around you | A lua gravita em torno de você
The seasons escape you | As estações lhe escapam
And I always was, always | E eu sempre fui, sempre
Was one for crying | Fui aquela que chora
Always was one for tears | Sempre fui aquela que derrama lágrimas
No I never was, never | Não eu nunca fui, nunca
Was one for lying | Fui aquela que mentia
You lied to me all these years | Você mentiu para mim todos esses anos
Why? Why do you act so stupid? | Por quê? Por quê você age tão estupidamente?
Why? You know that I’m always right | Por quê? Você sabe que estou sempre certa
It looks like an early winter | Parece um inverno precoce
For us | Para nós
It hurts and I can’t remember  | Machuca e eu não consigo lembrar
The sunlight | Da luz do sol
An early winter,for us | Um inverno precoce
And the leaves are changing colors | E as folhas estão mudando de cor
It hurts so much | Dói demais
And gets so much | E é demais
Starting over and over again | Recomeçando outra e outra vez”

Ao chegar em meu prédio, subi no elevador rezando para que ninguém estivesse em casa, pois não queria que vissem meu rosto inchado de tanto chorar. A chave da porta principal estava no esconderijo, sinal que todos haviam saído. Alívio.

Finalmente me tranquei em meu quarto, desliguei o celular e me joguei na cama olhando para o teto. Nem lembro quanto tempo fiquei ali parada, o fato é que em algum momento adormeci sem ao menos tirar os sapatos.

***


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Notas finais do capítulo

E então,o que acharam do arranca-rabo de Ally e Davi? :)Nem Freud explica a relação desses dois!
Me desculpem pelo longo capítulo. Precisava compensar o tempo sem postar não é? Rs..
Por favor deixem suas reviews ou comentários no tumblr, é muito importante para mim saber o que estão achando da história, o que esperam dos próximos capítulos.
Já estou trabalhando no Cap 4, então não vai haver atraso como dessa vez, prometo.
Obrigada de coração a todos que acompanham a fic, fiquei muito feliz quando vi a notificação de usuários que acompanham minha história! =)

Até a próxima!
Beijoris