Coração Satélite escrita por Ayelee


Capítulo 21
Capítulo 20


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal! Tudo bem? Mais um capítulo saindo do forno para vocês! Tem Ally x Roger que dá até para enjoar... hehe. Espero que gostem, não deixem de comentar!
Beijos, boa leitura!



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 O condomínio estava silencioso. Eventualmente ouviam-se as vozes das pessoas que retornavam do show que estava rolando na praça central de Beberibe. A chuva continuava intensa, com ventos fortes vindo da praia. Estava sem sono, não conseguia parar de pensar no que poderia acontecer se Davi resolvesse voltar para casa pela praia naquela chuva.

Peguei um banco alto e sentei diante da janela, olhando fixamente para o portão de entrada do condomínio em busca de alguma movimentação no local. Nada. Comecei a divagar sobre meu futuro com o Davi. Tentava imaginar em que pé estaria nosso relacionamento em cinco, dez, quinze anos. Não conseguia me visualizar ao lado dele, como um casal maduro, seriamente comprometido um com outro, casando, planejando filhos. Como eu poderia ter um filho com o Davi quando ele próprio parecia nunca deixar de se comportar como uma criança mimada?

Adormeci com o rosto repousando sobre os braços cruzados em cima do parapeito da varanda.  Cochilei e acordei várias vezes até que desisti de esperar na janela e fui me deitar no quarto, me rendendo ao sono.

Sonhei que estava de malas prontas para viajar, faria especialização em alguma faculdade fora do país. Não sei exatamente onde, mas lembro bem da sensação de euforia somada a ansiedade e medo. Eu me despedia de minha mãe, de Max e das minhas amigas no aeroporto. Eles estavam felizes por mim. Lembro-me da expressão de preocupação no rosto de minha mãe, de orgulho e excitação no rosto de Helena, Anita e Daisy e de “se deu bem, não foi, maninha?” no rosto do meu irmão. Eu me sentia feliz por iniciar uma nova etapa em minha vida, confiante como nunca estive.

O sonho era muito real, parecia uma premonição.

Na manhã seguinte, tomei café e fiquei trancada no quarto com os fones no ouvido, tentando ignorar o barulho irritante do Carnaval. A ideia daquele sonho ficou rondando minha cabeça por muito tempo, até esqueci de me preocupar com Davi, que  ainda não havia aparecido. Seria uma viagem a mudança que estou precisando? As únicas emoções que tenho tido na vida ultimamente são os altos e baixos do meu relacionamento com o Davi. E eu sempre quis fazer ter uma experiência prolongada no exterior, para sedimentar meus conhecimentos na língua inglesa. Uma especialização seria a desculpa perfeita para finalmente pôr isso em prática.

Por outro lado, não posso fazer todos esses planos excluindo o Davi. Ele é parte da minha vida agora. Como ficaria nosso namoro? Não consigo confiar nele nem a quinhentos metros de distância, quem dirá a milhares de quilômetros. Seria um grande desafio desenvolver a confiança estando tão longe. E a saudade... amor é algo para ser cultivado diariamente... Como manter o sentimento vivo dentro de si, sem poder tocar, olhar nos olhos, sentir o cheiro da pessoa que a gente ama? Será que nosso amor sobreviveria a um longo período de afastamento? Nunca precisei lidar com uma situação parecida, não faço a menor ideia de como me sentiria. Não sei se o Davi concordaria, pior, como reagiria se eu decidisse me mudar por um tempo?

De repente me ocorreu algo que a Helena me falou na última vez que nos encontramos, antes do Carnaval. “Ally, você vai me prometer que não vai passar por cima dos seus planos e sentimentos, nem pelo Davi nem por ninguém.”

 Sacudi a cabeça confusa com a onda de sentimentos que essas ideia gerou no meu coração. Podia sentir que algo estava mudando dentro de mim.  

“Preciso refletir seriamente sobre esse assunto. Melhor ainda, preciso consultar minhas amigas. E esse Carnaval que não acaba...”

Grandes decisões são acompanhadas de incertezas, erros, acertos e, consequentemente, amadurecimento. Então o que tiver de ser, será.

Ouvi um burburinho vindo da sala, imediatamente pensei que Davi finalmente havia chegado. Troquei de roupa rapidamente e corri para encontrá-lo, mas ao invés do meu namorado, dei de cara com seus pais: Sr. Luís e D. Isabel. Mal consegui disfarçar minha aflição. Bateu um pânico quando percebi que o Davi não estava em casa e eu não tinha como explicar sua ausência.

- Bom dia, Ally, tudo bem, querida?

- Oi, D. Isabel, tudo bem sim... Vocês acabaram de chegar?

- Sim, viemos da Caponga para ver como estão as coisas por aqui. É tão pertinho, dá para ir e voltar no mesmo dia.

Cumprimentei o Sr. Luís e convidei-os para sentar e tomar café. Estava tão surpresa que nem percebi a presença da Natália. Não sabia se ela tinha dito alguma coisa para os pais de Davi. Procurei agir naturalmente, como se tivesse acabado de acordar, mesmo já sendo perto da hora do almoço.

- Ah, Natália, bom dia! Já tomou café?

- Alô Ally, já tá quase na hora do almoço! – Respondeu com ar de ‘mais-do-que-óbvio’.

Sentei à mesa com meus sogros e lhes servi um cafezinho enquanto procurava algum assunto neutro, que não fosse relacionado ao Davi.

- Então, vocês pretendem passar a noite conosco? Amanhã ainda é terça-feira, podem ficar o dia com a gente e aproveitar um pouco.

- Não minha filha, isso aqui é uma bagunça, não dá certo para nós. Preferimos a calmaria da Caponga, pelo menos lá nós ficamos dentro da casa com o pessoal, sem sermos incomodados por essa barulheira toda. – Disse o Sr. Luís, com um ar bem humorado.

Eu gostava do Sr. Luís, sempre me senti mais à vontade perto dele do que da D. Isabel. Ela é uma senhora muito conservadora, machista, e de mente limitada. Por isso o Davi era mimado. Na casa dele, sempre prevalecia sua vontade, enquanto a Daisy tinha que se contentar com o que determinassem para ela. Ela não se incomoda com isso, acha até normal, para falar a verdade. Mas tendo tido uma criação completamente diferente, nunca consegui me acostumar com essa dinâmica da família deles.

- Ah, o senhor tem toda razão... eu também prefiro a calmaria. Quer dizer, aqui é muito bom, mas é realmente muito agitado.

- Mas vocês jovens adoram essas coisas, não? Eu sei que o Davi adora. Por falar nele, cadê esse preguiçoso, ainda está dormindo?

“Agora me ferrei! Como vou explicar para os pais dele que ele foi levar um amigo bêbado para casa pela praia ontem à noite, em plena chuva e não voltou até agora?”

 - Ele está na casa do Henrique amigo dele. – Respondi na maior naturalidade.

- Não gosto daquele rapaz... E por que ele está na casa do Henrique? Você não quis ir com ele?

- É que... lá tem muita gente, é muito barulho, não conheço ninguém. Preferi ficar por aqui com nossa turma.

D. Isabel me olhou com incredulidade, como se eu tivesse falado uma heresia.

- Que tipo de namorada deixa o namorado ficar sozinho por aí em pleno Carnaval, especialmente quando seu namorado é um rapaz bonito como o Davi? Minha filha, nós mulheres temos que marcar colado. Se alguma moça chegar se oferecendo para ele, e ele tiver bebido um pouco mais... não vai se responsabilizar pelas consequências. A culpa é sua por não ficar ao lado dele em todas as horas, mesmo não gostando.

O Sr. Luís mexeu a cabeça negativamente, olhando para o chão, mortificado. Fiquei com vergonha por ele e sorri-lhe em solidariedade.

Não acreditei no que acabara de ouvir. Respeito muito os pais do Davi, mas estava difícil engolir aquela conversa. O que essa mulher pensa que eu sou? Aliás, o que ela pensa que o filho dela é? O último czar da Rússia?

Corei de raiva e fiquei quieta por um instante até que eu conseguisse falar sem tremer a voz. Procurei compreender o lado dela como mãe. Ela sempre foi muito protetora em relação ao Davi, e acha que a função de uma namorada é fazer por ele tudo o que ela faz. Ok, eu entendo a posição dela. Mas não sou obrigada a concordar, muito menos aceitar que ela exija que eu me faça de boba e esteja à disposição do filhinho dela como uma criada, por que ele é precioso demais.

Respirei fundo e respondi, procurando ser o mais delicada possível.

- D. Isabel, eu sou o tipo de namorada que apoia as decisões do namorado mesmo quando discordo delas; que o acompanha nos carnavais da vida, mesmo não sendo minha diversão ideal; que muitas vezes sacrifica a própria vontade para manter a paz no relacionamento e principalmente, que perdoa as inúmeras mancadas do namorado, mesmo sabendo que estou coberta de razão, pelo único motivo de que eu gosto demais dele. Mas em troca disso eu espero o mínimo de entendimento de que minha paciência tem limites e que as atitudes dele têm consequências. Se uma garota se oferecer para ele e ele não resistir e fizer besteira, a culpa é única e exclusivamente dele, por não ser capaz de respeitar a pessoa com quem se comprometeu e não ser honesto o suficiente para admitir que não existe mais sentimento. Por que quem ama não trai. Se ele sentir o desejo de estar com outra garota, é por que ele não gosta de mim o suficiente.

- Isabel, você não devia interferir no namoro dos outros. Deixe que a Ally e o Davi se resolvam do jeito deles.

- Eu sei... – E virando-se para mim novamente, acrescentou:

-  Ally, minha filha, estou falando isso para o bem de vocês. Acho que você é uma menina ótima para o Davi, mas você sabe como ele é, vocês se conhecem desde criança.

- Eu sei, D. Isabel. Eu entendo...

Quando fechei a boca, ouvimos uma batida na porta. Dei um sobressalto, e me direcionei imediatamente para a porta, rezando para que fosse o Davi. Ele tinha que aparecer para acabar com minha aflição e me tirar dessa situação embaraçosa com seus pais.

 Pelo tamborilar de dedos na madeira da porta, soube logo que era ele. Aliviada, abri a porta rapidamente para avisar que seus pais estavam aqui.

- Ai meu Deus, o que aconteceu com você? – Sussurrei assustada ao ver seu rosto machucado, com cortes nos lábios e no supercílio, a roupa rasgada e suada.

- Desculpa, amor! - Ele falou em um tom de voz mais alto. – É uma longa história, deixa eu parar um pouco, to morto!

- Shhhh..., seus pais estão aqui! Você precisa dar um jeito nesses machucados e nessa roupa, eles vão ficar loucos se virem você nesse estado.

- Meus pais??? Que diabos eles estão fazendo aqui?

- Não sei... vieram nos visitar, eu acho.

- Nada disso. Vieram nos monitorar, isso sim. Conheço minha mãe.

Eu não quis dizer nada para não inflamá-lo contra a própria mãe.

- É melhor você ir logo se lavar e limpar o rosto, antes que seus pais o vejam.  Veja se consegue uma camisa emprestada de alguém lá embaixo.

Beijei-lhe rapidamente e voltei para a sala tentando bolar uma desculpa esfarrapada.

- Eram os vizinhos atrás do Davi. Incrível como ele conhece todo mundo nesse condomínio.

- Ah sim, a vida inteira as crianças passaram as férias aqui. Alguns vizinhos são realmente muito próximos, quase família. – Emendou o Sr. Luís.

Cerca de vinte minutos se passaram até que o Davi finalmente voltou. Sua aparência estava melhor, mas os cortes nos lábios e no supercílio eram perceptíveis. Eu estava morrendo para saber o que havia acontecido com ele, mas não queria conversar na frente do Sr. Luís e da D. Isabel.

- Aê, olha s[ó quem resolveu aparecer! – Cumprimentou os pais animado.

- Meu filho, o que foi isso no seu rosto? – D. Isabel me lançou um olhar recriminatório, como se fosse culpa minha o Davi estar machucado.

“Por que a senhora não vai embora, dona Encrenca?”

- Ah, nada demais, eu estava dançando na beira da piscina, escorreguei e bati o rosto no cano de inox da escada. Mas tá tudo bem, já botei gelo e tals. Vocês vão almoçar aqui com a gente?

- Ai meu filho, você não toma jeito né? Tem que ter cuidado rapaz, se tivesse acontecido algo mais grave, quem iria lhe levar para o hospital? Seus amigos bêbados?

“Ai. Outra alfinetada. Acho que ela deve ter um boneco vodu meu em casa.”

- Mãe, deixa de drama, eu estou bem, não está vendo?

- Estou, mas você precisa tomar mais cuidado...

- Tá certo, vou tomar mais cuidado.

O restante da tarde transcorreu tranquilamente – se é que se pode chamar de ‘tranquilo’ quando sua sogra não perde uma oportunidade de criticar tudo que você faz. Não tive oportunidade de ficar um minuto sequer a sós com o Davi para saber o que realmente havia acontecido com ele; por que é claro que eu não engoli aquela conversa fiada que ele contou para os pais.

Depois que os pais dele nos deixaram pudemos conversar em paz e ele então me explicou o que realmente havia acontecido. Davi esperou a chuva passar para poder voltar para casa, mas como a chuva não passou, ele acabou adormecendo por lá. Esta manhã, o Henrique, obviamente bêbado, desentendeu-se e acabou sendo grosseiro com a namorada na frente de todos na casa. O irmão dela não gostou nada e começaram uma briga feia. Davi e mais outros amigos acabaram se metendo para separar a briga, e foi assim que ele ganhou os machucados no rosto e a roupa rasgada.

Estava com a cabeça cheia depois da visita inesperada dos meus sogros e dessa loucura toda que aconteceu com o Davi. Saímos para jantar em um pequeno restaurante ao lado do condomínio. Carina e Léo nos acompanharam, ninguém estava afim de oba oba, nem mesmo o Davi. Voltamos cedo para o apartamento e fomos para nosso quarto nos preparar para dormir. Ficamos deitados abraçados conversando bobagem. Desde cedo eu havia decidido voltar para Fortaleza no dia seguinte, a qualquer custo. Não aguentava mais todo dia um drama diferente, todo dia um stress. Queria voltar para a paz da minha vidinha cotidiana.

Davi não gostou da ideia, argumentou, ficou com raiva, questionou com quem eu voltaria, ficou emburrado e não quis mais tocar no assunto. Fiquei quieta também, para não perturbar nosso finalzinho de noite. Eu pretendia reunir toda minha coragem e pegar um ônibus de volta para Fortaleza, mesmo estando ciente dos riscos. Viajar sozinha, com a mochila cheia de coisa além do meu notebook, minha ferramenta de trabalho, meu tudo, realmente era um perigo. Mas eu estava disposta a correr o risco. Não aguentaria mais um dia nesse pesadelo de Carnaval.

Quando já estava em um estágio de cansaço quase adormecendo, lembrei que havia marcado um encontro com o Roger no MSN hoje à tarde.

- Droga! – Murmurei chateada.

- Hã? – Davi balbuciou, adormecido.

- Nada, nada. Boa noite, amor.

- Boa noite. – Me beijou e repousou a cabeça sobre meu peito.

“Mas que droga!” Perdi a oportunidade de falar com ele novamente. Tudo culpa da minha sogra intrometida! Espero que ele não pense que não me importo com ele. Queria tanto conversar mais, descobrir mais sobre ele. Roger é um cara tão fácil de lidar, leva tudo numa boa, com bom humor. Gosto de pessoas assim. Ele é leve. Essa é a palavra.

Amanhã quando chegar em casa vou escrever imediatamente para ele, pedindo desculpa e explicando o acontecido. Não, melhor não entrar em detalhes. Espero que ele entenda e não fique chateado comigo.

Cheguei em casa antes de meio dia. Tive a sorte de conseguir uma carona com um casal de vizinhos que estavam de saída quando me viram na entrada do condomínio discutindo com Davi se deveria ou não ir de ônibus. Ele estava determinado a não me deixar, estava considerando até me trazer para Fortaleza e depois voltar para o Morro Branco. O que seria um absurdo, completo desperdício de tempo e combustível.

A cidade ainda estava um pouco deserta, mas muitas pessoas já haviam retornado, para trabalhar. O silêncio dentro do meu apartamento era como o paraíso. Minha mãe e Max ainda não haviam retornado do Carnaval, então eu tinha basicamente um dia e meio de paz e solidão, só para mim.

A primeira coisa que fiz foi me jogar no sofá e fiquei lá deitada olhando para o teto por longos minutos, até me dar conta de que eu precisaria fazer alguma coisa para almoçar. Preparei um espaguete rápido e liguei o notebook para ver se havia alguma mensagem do Roger no MSN. Nada.

Mas quando abri meu email, lá estava uma mensagem de Blue Envelope. Foi enviada ontem. Meu coração saltou dentro do peito. É uma ansiedade gostosa, que fica ainda mais prazerosa ao ver as palavras gentis do Roger. Eu queria ouvi-las saindo de sua própria boca, mas para isso eu teria que falar também e, acho que não estou preparada.

“Oi Ally, tudo bem?

Você não apareceu... : ( 

Eu entendo, você não está no interior frio da Inglaterra, não tem por quê ficar trancada em um apartamento. Estou curioso, será que o Carnaval finalmente lhe seduziu? Você sabe sambar? Cuidado com os bêbados nas ruas, eles adoram garotas lindas e tímidas...

Ok, parei. Eu não deveria fazer essas brincadeiras, você mal me conhece, pode se chatear. Por favor, não me leva a mal tá?

Eu realmente estava ansioso para falar mais com você hoje, pois na quarta vou viajar para os EUA. Nah, nada de diversão, são algumas reuniões com produtores e tal. Acho que fico lá até a próxima semana. Essas viagens são meio corridas, sabe? Passo o dia na rua encontrando pessoas entediantes. Então estou torcendo para que você apareça no chat amanhã para a gente poder conversar antes de eu partir para a terra da falsidade (Hollywood).

Bem, amanhã estarei esperando você por aqui no mesmo horário, certo?

Beijos,

R. Peter

O email me deu bastante material para pensar. Primeiro de tudo: ele ficou me esperando! Será mesmo? Será que não falou isso só para fazer charme? Na dúvida, eu acredito, ele nunca me deu motivos para duvidar.

Ele também me avisou que vai viajar. Isso mostra que se importa, certo? E eu já estou com saudades. Pelo menos ele não vai desaparecer e me deixar a ver navios, cheia de dúvidas.

E as brincadeiras, ah eu adoro as brincadeiras do Roger! E ainda mais o medo que ele tem de ser mal interpretado. A preocupação que ele tem em ferir meus sentimentos. Desde o início sempre nos comunicamos através de pequenos enigmas e comentários provocantes. Parece que existe uma sintonia exclusiva na qual nós dois navegamos e nos conectamos. Sinto que algo especial está se formando, uma amizade impossível. É possível existir uma ‘amizade impossível’? É impossível por que é provável que nunca nos encontremos pessoalmente. Mas não deixa de ser amizade, fazemos companhia um ao outro, nos entendemos, desejamos o bem um do outro. Pouco a pouco Roger está se instalando sob minha pele, está fazendo com que eu me acostume a sua existência na minha vida. Isso é bom? Ainda não sei.

Ele vai para Los Angeles, provavelmente encontrará sua noiva, Cathy Seymour. Talvez por isso não vai ter tempo para conversar comigo. Faz sentido. O que mais eu poderia esperar? É a noiva dele. Eles devem ficar bastante tempo sem se ver por que estão sempre viajando e se desencontrando. Não consigo entender como um relacionamento assim dá certo. É mais ou menos o que aconteceria comigo e o Davi caso eu decidisse ir morar fora. Nos veríamos no máximo duas vezes por ano, por alguns poucos dias.

Tratei de responder logo o email para que ele pudesse ler o mais rápido possível. Mandei uma mensagem curta, avisando que estaria esperando no MSN esta tarde e que explicaria por que não apareci. 

Depois pus as roupas sujas para lavar, guardei as roupas limpas e tomei uma ducha. No celular, tinha uma mensagem não lida. Era do Davi:

“Oi gatinha, tá fazendo o quê? Só queria dizer que tô me comportando e que já tô com saudade. Um cheiro!”

Por incrível que pareça, eu não estava nem um pouco preocupada. Na verdade eu queria esquecer esse Carnaval, que me causou mais aborrecimentos do que qualquer outra coisa. Se o Davi tiver que aprontar alguma – apesar do que a mãe dele insinuou - não será minha vigilância constante que irá impedir.

Decidi fazer uma coisa que há muito tempo não fazia. Peguei meu violão e fiquei o restante da tarde improvisando alguns acordes, tocando as melodias de algumas das minhas músicas favoritas. Mas uma delas, “You Picked Me” da banda A Fine Frenzy, ficou na minha cabeça por um longo tempo. Não sosseguei enquanto não aprendi a tocá-la do início ao fim. Ao finalzinho da tarde, larguei o violão em cima da cama e fui entrar no MSN para esperar pelo Roger, mas quando acessei, ele já estava online.

[Blue Envelope está convidando você para uma conversa com vídeo]

    Blue Envelope diz:

    Ah, aí está você!

    Ally Curtis diz:

    Oi, estou aqui! Tudo bem?

    Blue Envelope diz:

   Agora está... :) Pensei que iria viajar sem falar com você. Vi seu email hoje à tarde,  fiquei mais tranquilo. Então, aconteceu algo ou você resolveu curtir o Carnaval?

    Ally Curtis diz:

   Hehe, desculpa não ter aparecido. O dia ontem foi cheio, mas nada divertido. Recebi umas visitas meio inconvenientes, me ocuparam o dia inteiro.

    Blue Envelope diz:

   Tem um jeito de você se desculpar por ter me causado tamanho desapontamento...

(Roger sorriu torto e começou a digitar algo que, pelo tempo que demorou, parecia uma resenha)

   Você bem que podia ligar o áudio da webcam. Por favor, eu vou viajar, vai ser uma coisa boa viajar lembrando do som da sua voz...

Pô, isso é golpe baixo! Ele quer me matar de vergonha! Por outro lado, ligando o áudio, também vou poder ouvir a voz dele, então eu também saio ganhando. Acho que o sacrifício compensa.

   Ally Curtis diz:

   Ok, você venceu.Pedido concedido. Me sinto como uma criança aprendendo a falar, mas tudo bem...

[Áudio ativado]

   Alicia Curtis falando. Câmbio.

[Roger abriu um sorriso lindo, seus olhos brilhavam na penumbra do quarto]

   Roger:

   Prazer, Alicia Curtis. Meu nome é Roger Peterson. Você não está feliz por conseguir quebrar esse bloqueio? Nem doeu! A propósito, sua voz é linda. Câmbio.

   Ally:

   Estou sim, mas não fique convencido.

Tratei logo de mudar de assunto, por que eu já estava constrangida o suficiente, minha voz saía como um suspiro, como se estivesse revelando um segredo precioso.

   Então, está animado para sua viagem?

    Roger:

    Hum, por um lado sim... vou negociar algumas coisas bacanas para minha carreira. Por outro, vou passar a maior parte do tempo saltando de uma reunião para outra, falando com aquelas pessoas entediantes. Não vou ter tempo de curtir, é uma viagem de trabalho, na verdade.

    Ally:

   Sei como é... mas pelo menos você vai dar um tempo do frio da Inglaterra.

    Roger:

    É verdade, esse é o lado bom! Mas é meio chato interromper as gravações, ter que sair do set. Quebra um pouco o ritmo de trabalho...

Só isso? Encontrar com a namorada não é bom? Eu queria mencionar a Cathy Seymour, mas tinha receio de abusar da liberdade que ele me deu. Achei melhor ficar quieta.

    Ally:

    Hum, acho que entendo... foi como o Carnaval para mim.

    Roger:

    Haha, então você é meio workaholic, quer trabalhar enquanto todos ao se redor se divertem!

    Ally:

   Mais ou menos. Quando não estou me divertindo, prefiro fazer algo produtivo. É melhor do que ficar no canto mal humorada, atrapalhando a diversão alheia.

    Roger:

   É um gesto generoso da sua parte. Você trabalha com traduções? Quantos idiomas você fala?

    Ally:

    Sim, faço traduções de textos: trabalhos acadêmicos, documentos, e tradução literária – minha favorita. Minha formação é Letras Português/Inglês, com formação em Edição. Falo minha língua e inglês apenas. Nada muito impressionante...

   Roger:

   E você acha pouco? Grande parte das pessoas no mundo inteiro não fala direito nem a própria língua.

    Ally:

   É verdade. Mas ainda quero aprender francês e alemão.

    Roger:

   Algum razão especial para essa escolha?

    Ally:

   Grandes teóricos, grandes filósofos e grandes escritores publicaram suas obras nessas duas línguas. Quão mais próxima do idioma original, mais fidedigna é a tradução. Por enquanto meu foco são autores ingleses e americanos, mas quero expandir minhas possibilidades.

    Roger:

   Você já experimentou viver em outro país, estudando outros idiomas? Seu inglês muito bom.

    Ally:

    Engraçado você mencionar isso... andei pensando nesse assunto recentemente... Já viajei para a Inglaterra – na época que encontrei você – mas fui apenas a passeio, nunca fui para estudar. Estou com a ideia fixa de fazer uma pós-graduação em inglês, em algum lugar do mundo. Ainda não estudei as possibilidades.

Nossa, parece que ele lê meus pensamentos! Volta e meia comenta exatamente sobre algo que eu tenho pensado ou que estou sentindo. Acho que Roger é aquele tipo de pessoa observadora, sensível, com uma aguçada capacidade de perceber as nuances da personalidade das pessoas, compreendê-las e adivinhar suas mais íntimas aspirações. Às vezes parecia um pouco assustador, mas no fundo, era uma qualidade que eu admirava bastante.

    Roger:

   Já pensou em vir para a Inglaterra?

Disse isso com um pequeno sorriso no canto da boca, e com um brilho no olhar. Por um segundo pensei que estivesse fazendo um convite disfarçado, mas expulsei essa ideia sem cabimento da minha cabeça.

     Ally:

    É uma opção. Nada melhor do que estudar sobre um assunto em sua principal fonte. Mas preciso ver uma série de fatores. Preciso ser aceita na universidade, ver os custos de estadia, dos estudos em si, possibilidade de trabalho, etc. Mas só há quatro opções: Inglaterra, Canadá, Austrália e Estados Unidos.

     Roger:

    Canadá é quase Pólo Norte. Austrália é quase um deserto. Estados Unidos é tudo artificial. Eu voto na Inglaterra, terra dos Beatles, de Shakespeare e do Harry Potter.

Caí na risada, ele estava levando a sério mesmo a coisa toda. E Eu nem ao menos tenho o dinheiro para a passagem.

            Ally:

        Argumentos válido... mas eu percebi a apelação, Beatles e Shakespeare, já me convenceu 80%.

      Roger:

     E o que seria os outros 20%?

Sorri timidamente. Não tinha como dizer que a possibilidade de encontrá-lo pessoalmente era um fator muito tentador, uma motivação a mais. Mas não podia ignorar a realidade de que é muito mais economicamente viável ir para o Canadá ou Estados Unidos. Não sabia que resposta ele queria ouvir, então improvisei algo que não fosse ofensivo.

     Ally:

    O sotaque britânico.

     Roger:

    Você não gostaria de morar na mesma cidade que eu? Eu poderia te apresentar meu amigos, te levar para tomar umas cervejas nos tradicionais pubs ingleses. Seria bom para você conhecer a cultura inglesa através de um legítimo inglês! Hehe, acho que estou forçando a barra...

     Ally:

    Ok, ok, a oferta é bastante tentadora, mas agora voltando para o mundo real, nada disso é certo, é apenas um projeto sem data definida. Ainda preciso trabalhar um bocado para conseguir juntar dinheiro para isso.

     Roger:

    Bom, eu vou continuar torcendo para que dê certo, e que você escolha vir morar em Londres. E pode contar com minha típica hospitalidade britânica. Prometo ajudar no que for preciso!

Meu Deus, ele estava realmente levando a coisa a sério! Mas acho que ele viveu tempo suficiente nesse mundo de celebridade, riqueza, onde tudo cai em suas mãos de modo fácil, sem muito esforço, que não deve lembrar que não é tão simples assim. Me iludir com essa possibilidade era quase uma estrada certa para a decepção.

            Ally:

            Obrigada pelo incentivo, Roger. Significa muito para mim.

        Roger:

      Então, o que você pretende fazer nesse fim de semana pós-Carnaval?

        Ally:

      Estou organizando o aniversário surpresa de uma das minhas melhores amigas. Fora isso, acho que vou fazer o de sempre, praia, cinema, bar...

        Roger:

      Parece uma boa programação. Eu vou estar extremamente entediado, lembrando que você está curtindo a praia com suas amigas e vou morrer de inveja. Preciso ir arrumar minhas malas agora. Não vejo a hora de retornar e poder falar com você novamente. Cuide-se, divirta-se e pense na minha proposta com carinho.

Ele não pode estar falando sério. Não pode! Roger, você mal me conhece, como pode querer que eu vá morar em Londres para que possamos sair para encher a cara em um pub qualquer? Alguém tem que ter bom senso aqui, e pelo visto, esse alguém sou eu.

            Ally:

            Tá, tudo bem... boa viagem, boa sorte nos negócios e até a volta!

Roger sorriu, beijou a palma da mão e soprou na minha direção. Repeti o gesto e a muito contragosto desliguei a webcam. Esse homem é viciante! Por que ele tem que ser assim tão perfeito e tão impossível? Não, ele não é perfeito, mas tem as qualidades que eu mais prezo, isso para mim é o principal. A beleza é um adicional, mas ele tem esse grande, enorme, inaceitável defeito: é famoso. Se, nos meus sonhos mais loucos, algum dia ele se interessasse por mim - romanticamente, quero dizer – sua fama seria um grande obstáculo para nós.

Não consigo me imaginar no lugar dessas pessoas que têm cada passo de seus dias sendo monitorado, registrado por fotógrafos inconvenientes, desrespeitosos e grosseiros. Acho que Roger lida muito bem com isso, mas dá para perceber o quanto ele fica chateado com a invasão. Eu não conseguiria ser como a Cathy Seymour, que sai de casa preparada para ser fotografada, como se cada ida ao supermercado fosse uma sessão de fotografia de revista. Para mim, isso não é vida.

 Joguei-me em minha cama e fiquei um bom tempo refletindo sobre nossa conversa, sobre cada gesto, cada palavra e reação dele enquanto falávamos. Será que ele está se apegando tanto quanto eu? Por que está sendo difícil disfarçar o quanto quero falar mais, descobrir mais sobre ele, observá-lo sendo ele mesmo. Em algum momento precisarei colocar um freio nisso, caso contrário, as consequências podem ser desastrosas, pelo menos para mim – a corda sempre rói do lado mais fraco.

O pior de tudo é não ter com quem falar sobre o assunto. Não posso simplesmente sair contando para minhas amigas que estou conversando por webcam com Roger Peterson! Preciso preservá-lo de qualquer exposição negativa. Qualquer coisa mal interpretada pode se transformar em um verdadeiro pesadelo para ele – e para mim também. Só agora percebi o quanto ele confiava em mim, o poder que colocou em minhas mãos. Se eu fosse uma pessoa aproveitadora, poderia usar isso como uma forma de ganhar fama, ou tirar dinheiro dele. Mas parece que ele enxerga além e sabe com quem está lidando. E eu agradeço a Deus por ser essa pessoa em quem ele está depositando tamanha confiança.

Adormeci e acho que sonhei com Roger. Acordei sorrindo. Ouvi um burburinho vindo da sala. Sabia que era minha mãe e Max retornando de viagem. Planejava conversar com minha mãe sobre a ideia da pós-graduação. Mas agora não era o momento.


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Notas finais do capítulo

Quem quer uma sogrinha a la D. Isabel de presente de Halloween? *-* Hahaha, ninguém merece!
Espero que tenham gostado do cap. Em breve tem mais. Não deixem de comentar, e agradeço muito se ajudarem a divulgar a fic!
Beijão, queridos!