Coração Satélite escrita por Ayelee


Capítulo 10
Capítulo 9


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal, tudo bem?
Este capítulo está um pouco mais longo que o de costume. E mais intenso também. Espero que gostem. Não deixem de dar suas opiniões.

Ponte dos Ingleses: http://www.twitpic.com/407xie

Trilha Sonora:

You and me Lifehouse
Across the Universe The Beatles

Boa leitura!

P.S.: O que acharam da imagem da "Ponte dos Ingleses"? É um lugar realmente muito lindo aqui de Fortaleza. Quem vier conhecer a cidade, não pode deixar de ir lá.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/96962/chapter/10

Roger PDV

Londres – UK

Acordei mais uma vez com ressaca. O dia estava frio e chuvoso, mas como um autêntico londrino, não posso dizer que isso me incomoda mais. Para mim é apenas um pequeno contratempo.

Depois de contar para meus amigos sobre a garota da carta, eles não me deixaram mais em paz, sempre inventando as suposições mais fantásticas sobre quem ela poderia ser e por causa disso, acabei embarcando na onda deles e não conseguia parar de pensar em formas de responder a tal carta. Ensaiei algumas vezes até que, ontem, após uma saída com Jim, ele me encheu de teorias que justificavam por que eu deveria respondê-la. Então ao chegar em casa da noitada, bêbado feito um gambá, me enchi de inspiração para finalmente escrever para a garota do envelope azul. Até comecei a rabiscar uns versos de uma música, mas caí no sono antes de terminar a segunda estrofe.

Tinha uma reunião com minha auxiliar esta manhã sobre o início das gravações do meu novo filme, que será em grande parte aqui em Londres, o que irá facilitar muito minha vida nos próximos meses, especialmente porque precisarei ganhar peso, e isso é muito fácil de conseguir morando com minha mãe.

Caminhei distraidamente com meu roteiro na mão até uma pequena confeitaria que fica a uns 600 metros de minha casa. Carl, o proprietário do local me conhece desde pequeno, por isso nem preciso dizer o que é meu pedido, apenas lhe cumprimento ao chegar, peço “o de sempre” e me sento em meu local favorito lendo o roteiro enquanto tomo meu café torradas.

Não conseguia lembrar exatamente o que havia escrito no cartão para a garota do envelope azul, apenas lembro que tirei uma foto muito louca dos meus pés calçados naquele par de tênis Adidas preto que quase tinha vida própria, de tanto que eu o usava. Entre meus pés estava a garrafa de cerveja vazia, ao fundo aparecia parte da janela do meu quarto, com cortinas azul escuro, parte da minha mão esquerda com um cigarro e uma fumaça que deixou a foto meio acinzentada. “Mas o que diabos eu estava pensando quando tirei aquela foto sem noção?” Pensei sorrindo para o nada, ainda me esforçando para lembrar o que havia escrito. Mas nada me veio à memória, apenas que imprimi a foto imediatamente e escrevi no verso, exatamente como a garota havia feito.

Mas envelope já estava lacrado, não tinha mais como voltar atrás. Senti que era justo responder à altura, embora fosse difícil criar algum mistério sobre mim, já que minha vida era diariamente escrutinizada publicamente em jornais e revistas. Ela, assim como outras fãs, talvez soubesse mais sobre mim do que eu mesmo. “Isso é muito frustrante. Talvez seja melhor mudar de posicionamento diante da invasão desses veículos de comunicação na minha vida. Conversarei sobre isso com Sarah depois.”

Terminei meu café-da-manhã e saí caminhando novamente me encolhendo dentro de minha capa impermeável sob a fria chuva que caía naquela manhã, com o roteiro e o envelope – também azul, achei que seria divertido criar um padrão – bem escondidos dentro de meu casaco, protegidos da chuva.

Ao me deparar com uma caixa de correio na rua hesitei por alguns segundos, e lancei a carta para seu destino. Senti aquele frio na barriga típico de quando se está prestes a embarcar em uma montanha russa no escuro. Por mais que minha vida fosse uma loucura, e cada dia algo inusitado me surpreendesse, essa pequena travessura estava me causando muita ansiedade, não via a hora de receber uma resposta com mais alguma pecinha para desvendar esse quebra-cabeça.

Agora só precisava aguardar cerca de duas semanas para finalmente ver o resultado dessa brincadeira.

***

Ally PDV

Fortaleza – Brasil

O silêncio dentro do carro de Davi parecia gritar, desde que saímos do local onde o pneu havia furado até nos aproximarmos da entrada de meu apartamento. Eu não movi minha cabeça nem um milímetro em direção ao banco de motorista, onde Davi guiava pensativo e silencioso. Não precisei olhar para ele para perceber sua inquietação, pude observar várias vezes em minha visão periférica que ele me fitava a cada parada em semáforos.

Eu poderia estar incomodada com aquele silêncio constrangedor, mas só conseguia pensar que qualquer conversa que pudéssemos ter, seria muito pior do que o silêncio. Isso me acalmou e apenas mergulhei em meus pensamentos sobre os últimos acontecimentos no M Bar. Não consegui ignorar o sentimento que invadiu meu coração desde que esbarrei no gato do rock n’ roll: eu queria muito um namorado. Não que estivesse desesperada para ter um. Mas havia muito tempo desde que eu havia me envolvido de verdade com alguém, a vida de solteira estava se tornando repetitiva, eu precisava de uma mudança.

Ao estacionar em frente à guarita do meu prédio, relaxei os ombros, que inconscientemente estavam contraídos de tensão e, antes que eu me libertasse do cinto de segurança e puxasse a maçaneta da porta do carro para sair, Davi saltou do carro, deu a volta e parou diante de minha porta, abrindo-a e oferecendo a mão para que eu descesse. Fiquei admirada com a atitude dele, mas apenas agradeci timidamente, olhando para o chão e desci do carro segurando sua mão.

Sem que eu esperasse, Davi posicionou-se diante de mim, apoiando as mãos no carro, com seus braços fortes formando uma espécie de gaiola ao meu redor, de um modo que eu não tinha a menor possibilidade de escapar. Meu coração disparou. Desviei o olhar do seu, meu corpo tremia incontrolavelmente. Eu era incapaz de formular qualquer pensamento coerente, muito menos de proferir qualquer palavra.

- Ally, nós precisamos conversar. – Falou decidido. Por baixo dos meus longos cílios fitei-o e não pude deixar de notar a expressão tensa em seu rosto, testa franzida, boca contraída, pressionando os lábios, mas o que mais o denunciou foi seu olhar de incerteza, implorando para que eu não negasse seu pedido sincero.

Vê-lo tão nervoso quanto eu acabou me deixando um pouco mais calma, mas não aplacou minha vontade de sair correndo dali. Eu sabia que Davi estava fazendo um esforço fora do comum para tomar aquela atitude. Ele estava passando por cima de seu ego enorme – o que era um fato inédito – porque tinha consciência das injustiças que havia cometido contra mim, era o que eu havia constatado depois dos argumentos de sua irmã, das minhas amigas e especialmente após aquela conversa que flagrei na sorveteria alguns dias atrás.

Mesmo assim, eu não estava preparada para todo aquele drama. Não depois dessa noite louca e frustrante. Eu precisava de descanso, físico e mental.

Olhei dentro de seus olhos, sorri timidamente confortando-o e respondi baixinho:

- Eu sei. – Percebi seu corpo relaxando um pouco aliviado. – Mas não acho que agora seja o momento certo.

Seu rosto agora estava muito próximo do meu, eu podia sentir o perfume do seu hálito quente acariciando meus lábios, o olhar intenso fixo no meu rosto. Tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Nunca estive tão próxima do que foi meu objeto de desejo por tantos anos. No fundo eu ainda o queria, e senti-lo tão vulnerável diante de mim acordou o sentimento que eu estava mantendo encarcerado nas partes mais remotas do meu coração.

Eu me condenava e me sentia uma boba, fraca por não conseguir me livrar daquele amor depois de tudo que aconteceu entre nós. Mas o cansaço e meu senso de justiça falaram mais alto. Davi precisava amargar um pouco mais a incerteza, a ansiedade de não saber o que o esperava, o medo da rejeição, assim como eu experimentei tantas vezes.

Ele ficou calado, esperando que eu quebrasse o silêncio com alguma explicação.

- Estou cansada Davi. – Recostei-me na lateral do carro, afastando-me de seu corpo o máximo que pude.

- Mas isso não pode continuar assim. Eu, eu... Você não sabe o quanto eu esperei para poder falar com você. Primeiro por vergonha, depois por que eu simplesmente não sabia o que dizer... mas agora eu sei exatamente o que dizer. Você tem que me ouvir! – Exclamou exasperado, segurando meus braços firmemente.

- Seja lá o que você quer dizer para mim, você pode falar depois.  – Respondi tentando me desvencilhar de suas mãos fortes. Lágrimas começavam a se formar dentro dos meus olhos e eu precisava escapar dele imediatamente, antes que elas denunciassem minha fraqueza.

- Preciso ir. Nos falamos outra hora, sem pressa, sem estresse, sem sono. Boa noite, Davi, obrigada pela carona.

- Não Ally, por favor, espera! – Ele estava desesperado, como se corresse o risco de perder a coragem de dizer o que quer que fosse me dizer.

Aproximei-me lentamente, e afirmei sem tirar os olhos dos seus, para que ele pudesse confiar no que eu dizia:

- Outra hora, certo? – E encostei meus lábios suavemente em sua bochecha, dando-lhe um beijo estalado, como uma garantia de minha promessa.

Afastei-me lentamente entrando em meu condomínio, e só depois de alguns passos virei-me para checar se já havia partido, mas ele continuava lá parado, com a boca semi-aberta, passando a mão no local onde eu havia beijado, ainda perplexo com minha atitude.

Sorri de contentamento e subi para meu apartamento. Estava morta de cansaço, precisava recuperar o sono. Para minha sorte, nem todo o drama do final da noite conseguiu impedir que eu mergulhasse em um sono ferrado logo que repousei sobre minha cama.

(...)

Os dias que sucederam meu encontro inusitado foram preenchidos com muito trabalho. Mais uma vez isolei-me em meu apartamento concentrando-me nas traduções que precisava finalizar para receber logo meu dinheiro e assim engordar minha poupança para levar adiante o projeto de montar um escritório. Estava ficando obcecada com essa idéia e ver o retorno financeiro me proporcionava uma incrível sensação de dever cumprido misturada com orgulho e auto-realização. Aos poucos eu estava me estabelecendo no mercado, meu nome se firmava e eu até já tinha clientes fixos que me indicavam como uma profissional séria e comprometida.

Se continuasse nesse ritmo, dentro de um ano eu já poderia alugar um espaço e contratar alguém para me ajudar a lidar com o volume de pedidos e com as questões administrativas. Infelizmente durante esse período eu precisaria maneirar um pouco nos planos de viajar, pois todo o dinheiro que estava entrando seria investido em meu futuro escritório.

Sempre que eu pensava em viagem acabava inevitavelmente lembrando de Roger. Da sorte que tive em vê-lo pessoalmente. Das mínimas chances que eu teria de encontrá-lo novamente em Londres ou em qualquer outro lugar do mundo. Essa idéia de certa forma me confortava, pois sabia que esse tipo de coisa só acontece uma vez na vida de uma pessoa.

Pensei no cartão bobo que mandei para ninguém, pois estava quase certa de que não chegaria em suas mãos. Já fazia quase duas semanas que eu havia enviado e até então nenhuma resposta, nem dele nem dos Correios dizendo que o endereço não existe, nem mesmo de alguém dizendo que não sabia que diabos eu estava falando naquele cartão e que a mensagem foi enviada para o endereço errado.

Mas assim como minha conversa com Davi, evitei pensar sobre isso o máximo que pude. No entanto, Davi parecia estar determinado a colocar os pingos no “is” comigo. Ao longo da semana que sucedeu nosso encontro, ele me ligou diariamente, enviou mensagens e até mandou recado por sua irmã Daisy. Algumas vezes não atendi, outras insisti que estava muito ocupada e precisava cumprir os prazos que havia prometido aos meus clientes, mas chegou um momento onde não havia mais desculpas para não atendê-lo.

Na sexta-feira pela manhã, eu estava na loja de informática comprando um novo cartucho para a impressora, uma resma de papel A4 e outros acessórios quando meu celular tocou. Pedi licença ao vendedor que me atendia e reservei-me em um canto mais tranqüilo para atender a ligação.

- Alô?

- Ally, é o Davi. Você pode falar?

Ops, por essa eu não esperava! Respirei fundo e me preparei para o que ele iria dizer.

- Oi Davi, tudo bem? –Respondi apressadamente.

- Nós precisamos conversar. Você sabe disso. – Ficou em silêncio por alguns segundos, ouvi um suspiro no telefone e então ele continuou:

 - Será que você poderia arranjar um tempinho na sua agenda para me encontrar? 

Senti uma pontada no coração, eu não queria maltratá-lo, só estava feito uma boba fugindo desse encontro porque tinha medo de mim mesma. Morria de medo de acabar desabafando tudo que sentia por ele e me humilhar mais do que já havia me humilhado, aceitando sua forma de me tratar a vida inteira. Mas concordava que essa situação não poderia continuar, então respirei fundo e decretei minha sentença:

- Errr... Tudo bem... qual o seu plano? – respondi passando a bola para ele.

- Para mim não importa o lugar nem a hora, eu só quero poder conversar com você em paz.

- Certo. Eu conheço um lugar bem tranqüilo, no final da tarde é bastante agradável. Podemos tomar um sorvete enquanto conversamos.

- Ok. Vou sair mais cedo do trabalho e te pego às quatro.

- Combinado.

Sorri aliviada. Ele parecia tão cordial, equilibrado. Não fez objeções nem fez questão que prevalecesse sua vontade, como costumava fazer. Era bom ver essas mudanças sutis acontecendo diante dos meus olhos, mas ao mesmo tempo eu não queria mais motivos para gostar de Davi. Pelo contrário, eu estava tentando me apegar ao último fio de raiva que eu ainda sentia dele. Mas estava sendo muito difícil e doloroso.

Corri para casa com as compras e decidi não trabalhar durante o restante do dia. Eu queria estar com a cabeça tranqüila para expressar tudo o que eu pensava e sentia sobre nosso relacionamento, não no sentido de relacionamento de verdade, porque afinal o mais próximo que chegamos um do outro foi na noite passada. Porém mesmo sem termos um envolvimento verdadeiramente ‘homem-mulher’, já passamos por diversas fases ao longo de nossa ‘amizade’, se é que posso chamar de amizade.

Creio que sei mais ou menos o que esperar de Davi nessa conversa que temi por tanto tempo, no entanto havia muito a ser dito e eu não conseguia mais guardar esses questionamentos, ressentimentos, e toda a confusão de sentimentos que habitava dentro de mim. Quando guardamos uma aflição em nosso coração, ela toma proporções enormes a ponto de nos sufocar. Acabamos por enxergar o sentimento através de uma lente de aumento, como uma criança diante de um adulto. Só depois que abrimos o coração e compartilhamos aquele sentimento com alguém é que somos capazes de ver a real dimensão daquele sentimento, nós crescemos diante do problema e nos tornamos fortes o suficiente para enfrentar o que nos aflige. Por mais complicado que possa parecer, ele acaba por ser aliviado.

Estava me sentindo serena e assim passei o dia até que a tarde chegou e às quatro horas o interfone tocou, informando que Davi me aguardava na portaria.

Desci rapidamente e o encontrei em pé, encostado na porta do passageiro com os braços cruzados. Ele estava lindo, de bermuda xadrez em uma variação de tons de cinza e azul, camisa pólo branca e tênis de skatista.

Ao me ver ele abriu um grande sorriso. Não sei se exatamente por ter me visto ou por que eu estivesse especialmente vestida. Na verdade acho que o sorriso foi pela terrível coincidência, que me deixou completamente desconcertada. Tenho certeza que corei da cabeça aos pés.

Eu estava vestindo um short xadrez exatamente com as mesmas cores de sua bermuda e uma camiseta regata branca e estava calçada em meu All Star vermelho. Parecíamos um daqueles casais que vão à praia usando biquíni e sunga de banho com a mesma estampa.

- Olá menina. – Davi sorriu novamente, desta vez analisando meu rosto vermelho de vergonha.

- Oi... – Foi só o que consegui dizer antes de cair na gargalhada. Em seguida, entre risadas continuei – Espera um pouquinho, vou subir e trocar de roupa.

- Nada disso. Você está linda. Acho que essa coincidência pode ser um bom sinal. – Me encarou com um sorriso torto e deu um beijo em minha bochecha.

Entramos no carro e Davi deu partida, descendo a avenida movimentada.

- Para onde estamos indo afinal?

- Ponte dos Ingleses. – Sorri cruzando as pernas no assento de passageiro. – Sabe como chegar lá, não é?

- Sei, sei... Algum motivo especial para ter escolhido esse lugar? Ninguém nunca vai lá. – Perguntou distraidamente, tentando disfarçar o interesse.

- Não, nada de especial além da paisagem linda e do pôr-do-sol de tirar o fôlego. É um lugar tranqüilo. – Respondi vagamente.

Permanecemos calados durante maior parte do trajeto até chegar ao local determinado. De fato havia poucas pessoas caminhando no local, turistas em sua maioria, maravilhados com a simplicidade da arquitetura do casario antigo com suas fachadas coloridas, ruas de paralelepípedos estreitas e ao final de uma travessa que dava para um largo à beira-mar, que ficava alguns metros acima do nível da água, erguido sobre as rochas esverdeadas cobertas de limo.

Davi estacionou na pequena rua perpendicular e caminhamos lado a lado até a entrada da ponte. Me diverti observando a expressão curiosa de Davi que estudava cada particularidade do local como se nunca tivesse ido lá.

- Faz tempo que não vem aqui, não é? – Perguntei despertando-o de sua contemplação.

- Sim, que estranho. Não mudou muita coisa, mas parece tão diferente. Lembrei da época em que a cidade inteira vinha para cá todo fim-de-semana.

- Sempre gostei daqui, mas só venho quando encontro uma companhia, não é muito seguro para uma garota vir sozinha.

Ele me olhou com uma expressão de interrogação, com um traço de sorriso no canto da boca. Imediatamente percebi que meu comentário pareceu insinuar algo diferente do que eu quis dizer.

- Não, err... quer dizer, não é o que você deve estar pensando... – Gaguejei confusa, mexendo nas pontas do meu cabelo, que estava preso em uma trança embutida, para evitar que o vento bagunçasse tudo.

- Entendi Alicia.

Nos sentamos em uma espécie de deck que ficava bem no meio da passagem, ao final da ponte. O sol ainda estava um pouco alto, por isso ficamos de costas para o poente até que a claridade estivesse mais branda.

- Então... – Davi voltou-se para mim, buscando em meu olhar alguma espécie de consentimento para tocar no assunto delicado o qual nos levou até ali.

- Então, aqui estamos, pode falar. – Sorri incentivando-o a prosseguir.

- Ally, eu... eu sei que... quer dizer. Antes de tudo, eu queria me desculpar por todas aquelas besteiras que falei para você naquele dia. Alguma coisa, que até então eu não sabia o quê, tomou conta de mim e eu simplesmente não consegui controlar as palavras que saíam da minha boca. Eu sinto muito mesmo.

- Tudo bem, mas quero que saiba que você me magoou muito. Não só naquele dia... Quer dizer, existem muitas coisas que nunca foram ditas, você sabe... – Me enrolei toda ao falar, desviando o olhar dos olhos de Davi.

É como se houvesse um acordo velado através do qual não precisávamos falar diretamente o que se passava em nossos corações, pois ambos já sabíamos do que se tratava.

- Eu entendo... e sinto muito mesmo. Pelo meu comportamento ao longo dos anos. Você é uma garota incrível, eu sempre soube disso.  – Ergueu a mão direita em direção ao meu rosto, e pegando uma mecha de cabelo que se soltou da minha trança, prendeu-a por trás de minha orelha. Tocando levemente minha bochecha com a ponta dos dedos.

Uma onda de arrepio invadiu minha pele, tive que segurar firme para não tremer diante dele. Fechei os olhos inconscientemente, mas ao perceber o que fiz rapidamente disfarcei piscando várias vezes. Fiquei quieta esperando que ele prosseguisse.

- Sei que muitas vezes brinquei com seus sentimentos, e para isso não há desculpa. Só posso esperar que algum dia você esqueça o que fiz e que isso não a incomode mais. Eu sou um bruto, não é novidade. Às vezes não consigo me expressar direito. – Pigarreou e continuou:

- Naquele dia, você estava tão bem, tive uma sensação estranha de que estava, de certa forma ‘perdendo você’. Parece ridículo... Mas naquele momento eu meio que entrei em pânico, sei lá... estava acostumado com a idéia de você gostando de mim. E você sempre foi tão doce, tão meiga, dedicada... eu não queria perder isso.

Perplexa com a facilidade com que as palavras saíam em cascata da boca de Davi, eu simplesmente não conseguia pensar com clareza, aquele não era o Davi que eu conhecia, como ele amadureceu da noite pro dia?

“Então ele tem medo de me perder? Ele gostava de mim também? Então por que sempre fez questão de me magoar?”

- Eu não consigo entender que tipo de sentimento era esse que você tinha por mim... sempre achei que era indiferença, mas depois passei a achar que era desprezo, pois você não media esforços para me deixar mal e me afastar. – Repliquei em voz baixa, como se estivesse pensando alto.

- Eu também não entendia... por isso não sabia como lidar com isso. Sua presença me incomodava por que eu nunca soube como reagir à forma especial que você me tratava.

-Por quê? O que eu fiz de errado?

- Você sempre me tratou diferente dos outros caras da turma. Pô, o Max é meu melhor amigo. Nós somos homens, existe uma espécie de código de conduta...

- Sei... – Deduzi o que ele estava querendo dizer, mas deixei que ele prosseguisse em sua explicação. Tinha que aproveitar aquele momento para saber tudo que se passava na cabeça dele, para finalmente entender como ele funcionava.

- Eu não podia gostar de você... imagina o que seu irmão iria pensar? Sabendo como eu sou, o tipo de lugar eu freqüentava e o tipo de garotas com quem eu costumava sair? – Encolheu os ombros envergonhado, - Eu não mereço você. E tentei da forma mais estúpida mantê-la longe de mim. Mas muitas vezes eu me traí, e talvez nesses momentos tenha lhe dado algum tipo de esperança...

Era fascinante assisti-lo tirando todas as camadas através das quais ele se mostrou para mim, mas era mais incrível ainda finalmente perceber o impacto que eu causava nele. Esse tempo todo eu não sofri sozinha. Pode parecer egoísta de minha parte ficar satisfeita com essa descoberta, mas o que realmente tocou meu coração foi poder ver que de alguma forma nós sempre estivemos ligados.

Sentia-me aliviada e começava a perceber um novo sentimento crescendo dentro de mim em relação ao Davi. Confiança, ternura, cumplicidade. Agora nós compartilhávamos algo que era somente nosso. Aos poucos, aquela figura que eu coloquei em um patamar inalcançável, voluntariamente se dispôs a escalar para baixo o abismo que existia entre nós.

Observei-o com admiração, sorrindo com os olhos e então coloquei suas mãos entre as minhas e falei confiante:

- Eu estava com receio de vir conversar com você. Não sabia o que me esperava. Meu coração já estava dolorido o suficiente para ser machucado novamente. Mas agora vejo que foi a melhor coisa que poderia ter feito. Obrigada por ter sido tão sincero. Você me surpreendeu.

E dizendo isso comecei a me levantar e caminhar em direção ao parapeito da ponte, para assistir ao pôr do sol, que já estava quase chegando à linha do horizonte, prestes a mergulhar no mar.

Percebi Davi se aproximando atrás de mim e me desceu um frio na barriga; senti seu braço envolvendo minha cintura e seu corpo se apoiando no parapeito ao meu lado. Com a outra mão ele puxou meu queixo em direção ao seu rosto para me beijar, mas em um ataque de pânico, virei para o pôr-do-sol, fugindo de seu beijo.

- O que foi isso? Pensei que a gente tinha se entendido. – Davi esbravejou afastando-se de mim. O Davi antigo voltou à tona em um átimo de segundo. Fique surpresa mas procurei manter uma expressão tranqüila, não queria quebrar o equilíbrio daquele momento que até então estava indo muito bem.

- Nos entendemos sim. Mas pelo visto alguma coisa ainda precisa ser esclarecida...

- Mas eu pensei que você gostasse de mim, que queria ficar comigo. - Davi inquiriu confuso, visivelmente incomodado com o resultado de nossa conversa.

- Eu queria...antes... Agora já não sei mais o que sinto por você. Sem dúvida lhe quero muito bem, especialmente agora que você se abriu comigo. Mesmo assim, preciso repensar, procurar compreender este novo sentimento que está surgindo. Espero que compreenda. Preciso de um tempo. – Mirei fundo em seus olhos, implorando que entendesse minha posição.

- Sinceramente não sei o que há mais para se pensar, tudo que tinha de ser dito foi dito.  Eu quero você. É isso que importa.

Eu já estava começando a ficar nervosa, nossa conversa estava fugindo do controle e eu não queria que outra cena se repetisse. Decidi por um fim no assunto e ir embora.

- Não é assim que as coisas funcionam Davi. Incrível como durante muito tempo isso foi tudo o que eu queria ouvir. Agora já não importa mais. Está escurecendo, é melhor irmos embora. Por favor, me leva pra casa.

Contrariado, Davi caminhou ao meu lado até o carro, respirando tão alto que eu conseguia ouvir o som do ar saindo por seu nariz. Entrou rápido sem ao menos abrir a porta para mim, e quando sentei no banco do passageiro e fechei a porta, ele saiu cantando pneu.

“Droga!Será que isso nunca vai ter fim?”

Estava reunindo todas as minhas forças para não chorar na frente dele. Eu não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza em minha decisão. O que estava feito, estava feito. Assisti as luzes dos carros passando rapidamente pela janela, e em poucos minutos eu já estava em casa.

Antes de descer do carro ainda olhei para o rosto de Davi, que se contorcia em uma carranca enfurecida, me despedi mas não ouvi resposta.

Ao chegar em casa, acendi as luzes e me deparei com um pequeno bolo de correspondências sobre a mesa de jantar. Como era de costume desde que havia enviado o cartão para Roger, corri para checar se havia alguma resposta para mim.

E lá estava o envelope azul. “Minha carta voltou ao destinatário!” Suspirei aliviada, não era o que eu esperava, mas pelo menos era o fim da ansiedade que vinha me consumindo durante as últimas semanas.

***


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ainnn nossa esse capítulo foi sofrido,viu? Ainda mais quando recebi uma ligação do meu “Davi” em pleno Valentine’s Day (Dia dos Namorados fora do Brasil).O diálogo de Ally com Davi foi tenso, mas muito esclarecedor, espero sinceramente que tenham gostado!Beijos