Umbrellas Secret escrita por Pedro_Almada


Capítulo 8
Um Ótimo Dia Para Trair Os Amigos




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Um Ótimo Dia Para Trair Os Amigos

 

21 de Setembro de 2000

 

            Para uma garota de apenas quatorze anos, Anne tinha certo talento para línguas estrangeiras. Seu hábito, desde cedo, em leitura, lhe proporcionara um interesse pelos idiomas, entre outros milhares de benefícios que um livro poderia trazer. Toda essa busca por conhecimento serviu para amadurecer a sua personalidade forte. Anne, em momentos de urgência, era ainda mais responsável que o próprio Loui. Ele, provavelmente, nunca conseguiria se dar bem com esse lance de pai viúvo.

            Anne sabia que, em determinado momento, aquela conversa pai-e-filha deveria acontecer. Mas ela se enganou. Foi Brigitte quem tomou essa função para si. Desde então, os atributos de mãe foram apossados pela irmã mais velha. Loui sempre foi grato por isso.

            - Mana, eu sei que você tem saído muito com Carl... Ele me parece um cara legal, mas... Paul disse para ter cuidado.

            - Eu sei me cuidar. – Anne assegurou – E, fique tranqüila, nós só vamos à biblioteca municipal estudar espanhol. Nada demais. Você sabia que ele é meio que um gênio na matemática.

            Bree arqueou as sobrancelhas.

            - Sério?

            - Precisa ver! Se ele não fosse uma negação em línguas estrangeiras, provavelmente estaria estudando no exterior. Talvez em uma escola britânica...

            - Essa parte dele eu não conhecia.

            - Como os dois eram antes da briga? Digo, Carl e Paul?

            Bree sentou-se na cama, ao lado da irmã. Fitou o céu negro pela janela, pensou uma ou duas vezes antes de responder.

            - Caramba... Acho que eram como nós.

            - Então precisam mesmo da nossa ajuda, Bree. Eu quero ajudar Carl. Não se preocupe, não é nenhuma paixãozinha de colegial. Eu simplesmente vejo algo de bom nele. Algo que Paul ainda não viu.

            - Tudo bem... Concordo, eles precisam se entender... Mas tome cuidado, maninha. Sabe, garotos nessa idade, eles querem, sabe, eles querem...

            - Ah! Eu já sei onde essa conversa vai dar – Anne deu uma gargalhada, cobrindo o rosto com o travesseiro – Não se preocupe, mana. Tenho preservativos sabor morango na minha bolsa de couro de cobra. Tenho até um adesivo anticoncepcional cobrindo a minha tatuagem de salamandra, bem aqui nas viril...

            - Anne! – Bree empurrou a irmã, também rendendo-se ao riso – ok, acho que entendi. Deixemos esse assunto de lado.

            A porta do quarto se abriu. Loui apareceu com o seu habitual macacão jeans e um boné preto. Estava com uma flanela branca jogada sobre o ombro e um copo coberto de sabão em uma das mãos.

            - Meninas, hora de dormir. Aula amanhã, não se esqueçam.

            - Tudo bem, pai.

            As duas se levantaram, beijaram o pai e se lançaram à cama.

            Loui tinha o velho hábito de colocar as filhas para dormir, apagar a luz e deixar apenas o corredor aceso, com a porta do quarto entreaberta. Queria se certificar, apenas, se suas filhas dormiriam bem.

            Anne e Brigitte, em comum acordo, decidiram dar esse gosto ao pai. Sabiam que Loui ainda não conseguia enxergar as filhas além da fronteira da infância, e, de certa forma, elas sabiam que tudo o que ele queria era ver suas filhas como dependentes em tempo integral de seus cuidados.

            Elas adormeceram rapidamente. Era uma noite agradável. Não havia nada que pudesse indicar presságio ruim.

 

***

 

            Anne girava o seu guarda-chuva entre os dedos, despreocupada, contando os passos enquanto cantarolava. Bree, ao seu lado, apreciava o canto, enquanto contada as aves pousadas nos fios de alta tensão.

            - Vai ensinar espanhol hoje? – perguntou Bree, tentando parecer indiferente.

            - Sim, vamos estudar na biblioteca da escola, dessa vez. Ele disse que é mais prático.

            - Que bom.

            - Além do mais, pelo menos assim você esquece de vez essa neurose. Eu e Carl somos amigos e, por mais que você tente distorcer isso, não vai conseguir. Não é como nos livros, em que a garota diz que são amigos, mas no fundo se amam. Eu simplesmente quero ajudar, e tudo o que eu te peço é que deixe de lado essas insinuações.

            - Ok, fica fria, maninha! – riu-se Bree – não está mais aqui quem falou.

            Desceram as escadas de mãos dadas, conversando sobre toda a sorte de assuntos, mas Anne estava atenta aos ruídos da cozinha, tentando localizar o pai. A única coisa que sentia era um agradável cheiro de torradas. Ao que parecia, Loui falhara mais uma vez na cozinha, e rebaixou-se a um café prático: torradas, geléia e suco natural.

            Sentaram-se a mesa e tomaram café. O pai já havia saído para trabalhar, deixando apenas o lanche e um bilhete cheio de ternura sobre a mesa. Bree leu em voz alta, rindo da parte em que o pai as chamava de “anjinhas”, como se, de fato, merecessem um título tão imaculado.

            - Vamos logo, “anjinho” – caçoou Anne – não quero me atrasar, tenho que conversar com a Sra. Pupkis.

 

            Não demoraram muito. A entrada do colégio estava apinhada de alunos, alguns indiferentes à presença de uma garota com um guarda-chuva vermelho, quando o sol sorria, ainda que discretamente, sobre as nuvens brancas.

            Brigitte e Anne se separaram ainda no pátio. A irmã mais nova tomou seu rumo diário em direção à biblioteca, seu espaço particularmente agradável. O único lugar onde, de certa forma, seus olhos eram, senão, um belo desafio.

            - Sra. Pupkis. – Anne foi logo dizendo assim que entrou – estou em estado de abstinência. Não leio um bom livro desde ontem, eu preciso...

            - Gosta de Shakespeare?

            Anne parou de falar ao ouvir o nome.

            - Não... Não vá me dizer que...

            Anne ouviu o som de algo pesado desabando, como um livro se chocando no balcão.

            - Em braile. – disse Pupkis, em tom orgulhoso – não foi nada fácil, devo dizer. Mas é a coisa mais linda que já li em muito tempo, querida. Quero compartilhar desse prazer com você.

            - Sra. Pupkis... Isso é bárbaro!

            - Eu sei. Agora pegue esse livro e suma daqui. Não quero te ver atrasada outra vez, ou a diretora vai me dar outra advertência.

            - Ok, ok, ok! – Anne não esperou, foi logo tateando o balcão e, assim que tocou o livro, meteu-o na mochila com gosto – obrigada, Alana.

            - Logo teremos mais desses. Aqui na escola.

            - Assim espero. – ela sorriu, despedindo-se com um aceno para o nada.

 

            No corredor, deparara-se com o mais recente amigo. Carl estava com uma expressão cansada, mas, acima de tudo, preocupada. Seus olhos denunciavam uma sombra de aflição e, embora Anne não pudesse ver esse sinal, percebeu-o em sua voz.

            - Ah, oi, Anne... – murmurou ele.

            Involuntariamente ela arqueou uma sobrancelha. A voz estava levemente trêmula, e havia uma certa força no som, obrigando a voz a ser discreta. Anne, no entanto, havia captado.

            - Você não está bem, está?

            Ele gaguejou várias vezes, mas não sabia o que dizer.

            - Está com algum problema?

            Carl lançou um olhar em direção ao fim do corredor. Dois rapazes encaravam Anne com um ar cômico. Depois fitaram Carl com urgência. Havia uma ordem ilegível naqueles olhos rebeldes.

            - Ah... Eu só quero saber se você vai estar ocupada hoje... Porque, se estiver, não precisamos estudar hoje, sabe. Podemos deixar para outro dia.

            - Não, tudo bem – ela respondeu, ainda intrigada – estou bem. Mas, se você quer desmarcar, tudo bem pra mi...

            - Não, não. – ele negou rápido demais – É que, às vezes, você não poderia ir, sabe? Não quero te atrasar.

            - Imagina. – ela sorriu, mas não conseguiu esconder sua preocupação – Carl, tem algo errado com você?

            - Por que você precisa ser tão legal? – ele bradou, enraivecido.

            Anne deu um salto, surpresa. O tom da voz ecoou no corredor, e olhares curiosos se voltaram em direção aos dois. Os mais interessados na discussão, no entanto, era a dupla de jovens no fim do corredor. Ainda havia a ordenança na expressão do garoto mais alto.

            - Olha, Anne... Desculpa, é que, depois das coisas que Paul disse... Você não acha que deveria se afastar?

            - Paul está preocupado com você, e só. Não vale a pena jogar fora uma amizade como a de vocês por tão pouco.

            As palavras dela, embora Anne não percebesse, haviam incomodado o rapaz.

            - Depois da aula, ok? – confirmou ela.

            Ele hesitou, mas, por fim, assentiu. Mas ainda havia alguma coisa em Carl, algo que o dividia. Ele parecia estar sofrendo.

 

            Naquele mesmo dia Anne e Carl ficaram o restante da tarde na biblioteca, dando continuidade aos estudos. Houve um longo período em que Carl abandonara sua expressão nervosa.

            O problema, no entanto, voltara com um corriqueiro manuseio de Anne. Ela colocou a bolsa sobre a mesa, despejando algumas coisas e tateando em busca de um apontador. Naquele momento Carl vislumbrou o metal frio de um chaveiro. Ele sabia. Aquela era a chave que Alana havia confiado à Anne. A chave da biblioteca.

            Não queria, nem poderia roubar de uma pessoa cega. Seria a coisa mais mesquinha a se fazer. Mas ele não podia evitar. Estava sendo pressionado por seus amigos, se é que poderiam ser considerados assim.

            Então ele se entregou. Sentiu-se patético, um verme, e não haveria outra forma de se sentir. Meteu a mão nas chaves, fazendo um barulho estridente. Enfiou-a no bolso rapidamente, enquanto, com a outra mão, pegava o apontador.

            - Aqui – ele murmurou, colocando o objeto na palma da mão de Anne.

            - Obrigada – ela sorriu, sinceramente agradecida. Aquele gesto rasgou o rapaz por dentro.

            Carl desejou se impedido naquele momento. Era a hora certa. Alguém apareceria bem ali, denunciaria o gesto desprezível do rapaz e, contemplado tamanha covardia, provavelmente Anne jamais iria ver o rapaz. Para Carl, no entanto, nada soava melhor. Mas, para sua infelicidade, ninguém apareceu. Ele continuou com a chave no bolso, saiu da biblioteca despediu-se de Anne com um grunhido indistinguível.

 

            Era quase uma da manhã. Uma picape velha estava estacionada atrás do colégio. Três jovens ocupavam os assentos. Um deles, o mais assustado, era ninguém menos do que Carl.

            - Faça! – murmurou um dos rapazes, o mais alto, provavelmente o líder do trio – não seja um maricas!

            - Você não fez isso tudo à toa, ou fez? – disse o outro, com um olhar severo.

            - Não... – Carl cogitou as chances de desistir. Mas, de alguma forma, estava preso àquilo – eu vou.

            Abriu a porta e, com um salto tenso, pousou no chão. Contemplou o céu negro, cheio de estrelas cálidas, desinteressadas. Sim, ele se sentia um completo lixo, e nenhum gesto de suposta valentia iria curar esse sentimento.

            Carl estava pronto para o próximo passo, quando, de supetão, deparou-se com um vulto bem a sua frente. Era Paul.

            - Eu sabia! – guinchou o rapaz – Você estava andando com Anne por causa deles!

            - Não seja idiota, Paul! Saia da minha frente!

            - Você quer entrar para os Bull’s? – chiou Paul, em completa indignação – quer entrar para essa maldita gangue? Você sabe quantas coisas eles já...

            - Cala a boca, idiota! – vociferou Carl – Eu não preciso dos seus sermões!

            Os outros dois rapazes saíram da picape, caminhando em direção a Paul, formando uma muralha entre os dois.

            - Hei, Carline... – caçoou o líder – essa é sua namorada?

            - Não, ele namora a ceguinha – zombou o segundo.

            Paul trincou os dentes, mas ficou perplexo ante a atitude de Carl. Ele não fez nada. Não se queixou.

            - Carl! Veja como falam de você! Ou de Anne!

            - Pode ir, Carline... Nós cuidamos da sua namorada.

            Carl estava imobilizado. Não queria ir. Temia pelo amigo. Sabia que os dois grandalhões espancariam o amigo, o amedrontariam até que convencessem Paul a não contar nada à polícia. Era assim que os Bulls faziam.

            - Vai, Carline! – ordenou o maior do grupo – ou eu bato em você também!

            Carl cerrou os punhos, mas estava incapacitado. Sem pensar demais, correu. Seus passos ecoaram pela rua, o som covarde de sua ação. Ele engoliu um choro amargo, esmagou o próprio orgulho.

            No fim da noite, vários livros foram queimados, a perna de Paul quebrada e a alma de Carl em completa desolação.


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