Ser ou não ser escrita por Eica


Capítulo 2
Capítulo 2




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            Pensei em ligar para Nikki, mas ela acreditaria em mim? Eu precisava arriscar. Ela era minha única esperança. Peguei meu celular de cima da cama e quase cometi o erro de discar para ela. Preferi mandar uma mensagem, pois ela não reconheceria minha voz. Mandei-lhe uma mensagem dizendo que precisava vê-la naquele momento com muita urgência. Que era caso de vida ou morte. Sentei-me no pé da cama e aguardei que ela me respondesse.

            Quando a resposta veio, Nikki demonstrou-se muito assustada e eu frisei, noutra mensagem, que ela precisava vir em casa naquele instante. Ela me prometeu que viria. Agradeci-lhe e esperei.

            Durante minha espera agonizante, percebi que não havia ido ao banheiro. Minha bexiga estava super apertada. Fui até o banheiro, depois de muita reflexão. Com dificuldade, agachei o short e a calcinha e tive outra surpresa.

— Deus! Meu Deus!

            Aquela parte íntima não devia estar ali, mas ela saudou-me como se sempre estivesse comigo, como se já nos conhecêssemos. Que absurdo! Me sentei no vaso, recusando-me a fazer da forma como eu sabia que os homens faziam. Eu não era homem. Por que deveria usar o banheiro como eles?

            Após aquele momento constrangedor e terrível, saí do banheiro, fui até a garagem, abri o portão e deixei a porta aberta para que Nikki pudesse entrar. No quarto, tirei minhas roupas apertadas e me enrolei num lençol. Abri e fechei os olhos diversas vezes, tentando fazer com que aquele pesadelo acabasse.

            Senti um aperto no coração quando ouvi Nikki chamar. Mandei-lhe um sms dizendo que podia entrar na casa. Ouvi o portão se abrir. Corri até a sala, com minhas pernas parecendo marias-moles. Abri a porta e dei de cara com Nikki. Obviamente que ela se surpreendeu ao ver um homem abrir a porta de minha casa, coisa que nunca acontecera. Nem mencionarei o detalhe de um lençol estar enrolado ao meu corpo nu.

            Ela mostrou-se confusa. Olhou-me da cabeça aos pés.

— A Rafa está? — Indagou, incerta.

— De certa forma...

— Ela disse que era urgente... onde ela está?

            Agora ela parecia preocupada.

— Entra.

            Ela demonstrou receio, mas entrou. Fechei a porta atrás dela.

— E a Rafa?

— Você nunca me viu, não é? Nunca me viu em sua vida?

— Não. — Ela olhou à sua volta, obviamente que à minha procura. — Olha, eu... Não sei quem você é... A Rafaela parecia...

— Ontem eu me deitei na cama e quando acordei hoje de manhã, não era mais a mesma pessoa.

— Eu não te conheço. Pode ao menos falar o seu nome? E a Rafaela?

— Eu sou a Rafaela!

            Ela, com olhar cético e mais preocupado que nunca, passou por mim, tirando o celular do bolso do jeans.

— Não sei quem você é e se não me disser onde está a Rafaela eu vou chamar a polícia.

— Não! Nikki! Sou eu! — Disse, segurando-a com apenas uma mão, porque a outra precisava manter o lençol no lugar. — Por favor... eu sou a Rafaela! Hoje, agora a pouco, quando acordei, descobri que meu corpo mudou. Virei homem! Não está vendo?

            Por causa do desespero, comecei a chorar. Ela ficou olhando para mim, perplexa.

— Virei homem. Meu corpo se transformou! Não é brincadeira! Sou eu, mas esse corpo... essa voz... somos amigas há mais de sete anos. Trabalhamos numa livraria. Eu sei coisas sobre você. Segredos que você me contou. Pode me perguntar qualquer coisa que eu respondo. Por favor, pode perguntar.

            No fundo, Nikki ainda parecia assustada, mas permiti que ela andasse por toda a casa à minha procura. Deixei que visse que eu não havia roubado nada. Que estava tudo em ordem. Que meu celular estava ali. Que meus objetos pessoais estavam todos ali. Depois comecei a falar sobre vários momentos que passamos juntas. Sobre os segredos que confessávamos somente para nós duas. Falei sobre alguns detalhes de sua vida e da minha. Ela só começou a acreditar em mim quando percebeu que eu gesticulava como Rafaela e falava como Rafaela, afinal, eu era a Rafaela que ela conhecia.

— Mas... como?? — Questionou ela, se sentando no pé da cama ao meu lado.

            Balancei a cabeça.

— Não sei... não sei...

— Meu Deus...! É você mesmo, Rafa?

            Ela tocou em meu rosto. Enxuguei meus olhos e tentei me acalmar.

— Se você não falasse como você, jamais acreditaria que era você... é outra pessoa! Acalme-se, ‘tá bom? De alguma maneira, nós podemos dar um jeito.

— Pedir uma explicação a Deus adianta? Não. Se até agora Ele não apareceu para explicar, não vai explicar depois. Será que foi um teste para eu crer Nele? Tudo bem, Deus. Já creio em Você. Pode me fazer voltar ao normal agora.

— Acha que é assim que funciona?

— Poderia ser... Que horror! — Exclamei, agoniada. — Não consigo nem ouvir minha própria voz.

            Olhei para Nikki.

— Que chances eu tenho de sobreviver como homem? Essa transformação é temporária ou definitiva? Nem consigo me tocar. É estranho.

— Temporário ou não, não vai poder ficar trancada na sua casa. Você tem uma vida lá fora.

— Exatamente! — Exclamei, agora mais nervosa. — E o que faço com ela? E se...

            Naquele instante o celular de Nikki tocou, e pelas coisas que ela disse, certamente que fora Estela quem ligara, querendo saber o que aconteceu. Nikki disse à nossa chefe que eu passara mal e que ela precisou me levar ao hospital.

— E meu emprego? — Indaguei.

            Ficamos em silêncio.

— Depois a gente vê isso. — Disse ela, pondo-se de pé. — Antes vamos ter que te arranjar umas roupas masculinas. Não pode ficar andando pelada.

— Eu tenho um dinheiro guardado. — Lembrei-me. — Mas vai ter que levar o meu cartão com você.

            Fui até minha bolsa e tirei o cartão de dentro da minha carteira. Passei-o para ela.

— ‘Tá. Vou ao centro da cidade, pego uma camisa, um jeans, uma cueca e um tênis. Vai precisar de meias? Acho que sim, né?

— Mas o meu tamanho...

— Você é mais alta que o Alex, então... fazendo mais ou menos um cálculo, deve ser um número maior que o dele. Qualquer coisa eu troco a roupa lá na loja. Pode me esperar aqui?

— Claro. Obrigada, Nikki.

            Ela deu-me um abraço, quase me fazendo chorar.

— De nada. Acalme-se que a gente já resolve isso, tá?

            A espera foi um tormento. Quando Nikki chegou em casa, trazia uma camiseta preta, um jeans escuro, meias brancas e cinzas, três cuecas boxer e um tênis preto. A camiseta me serviu com perfeição, e as meias e estranhamente as cuecas, mas o jeans e o tênis não. O tênis estava pequeno e o jeans grande. Ao retornar, trouxe outro jeans, e o mesmo modelo do tênis. Serviram sem dificuldade.

            Eu me trocara dentro de meu quarto, enquanto Nikki me esperava na sala. Enquanto me vestia, analisei mais um pouco meu novo corpo. Minhas coxas eram grossas. Minhas pernas peludas. Os dedos de minhas mãos eram longos e meus pés muito grandes. Devia ter mais de um e setenta de altura, para não exagerar e dizer que eu estava muito mais alta.

            Fui para a sala. Nikki me sorriu.

— Ficou linda.

— A cueca é tão...

            Ela riu.

— E esse volume no jeans...!

            Nikki tornou a rir.

— Você é homem agora. O volume faz parte.

— Mas parece que é tão visível! É tão esquisito de ver.

            Ela aproximou-se de mim e ajeitou minha camiseta.

— Essa minha voz... é muito estranho, Nikki! Não parece que sou eu falando.

— Ah! Esquecemos de comprar um desodorante para você.

— Ham?

— Desodorante de homem. Não pode sair por aí cheirando a rosas.

            Suspirei. Ela deu-me outro sorriso de compaixão antes de avisar que estava com fome. Falei que tinha pão e iogurte. Preparamos a mesa da cozinha para o café da manhã que nenhuma das duas havia comido. Ela olhou-me muitas vezes. Às vezes ria. Às vezes dizia que não conseguia acreditar.

— Como está se sentindo?

— Horrível. Estou olhando e controlando um corpo que não me pertence.

— Agora pertence. É você. É seu corpo. E... Não me leve a mal, mas é um corpo muito bonito.

— É... Isso eu posso reconhecer. — Disse, embaraçada. — Realmente.

            Depois de comer um pedaço de pão com manteiga, indaguei-lhe sobre o meu serviço.

— A Estela não enxerga direito, então...

— Ficou louca? — Disparei, horrorizada.

— Ela mal enxerga a gente! — Persistiu. — Outro dia ela achou que a Fernanda era o Marcos. Sabemos que ela está quase cega. Mal vai te enxergar. Da livraria você não pode sair. Se ela achar que você abandonou o serviço, vai ter que te mandar embora, e só a Rafaela mulher vai poder resolver esses assuntos trabalhistas com o escritório de contabilidade.

— Mas... — questionei, nervosa. — E os dois? E o pessoal do segundo turno?

— A gente mal tem contato com o pessoal do segundo turno, já o Marcos e a Fernanda... — argumentou, reflexiva. — Vão ter que ficar sabendo.

            Ri, agitada.

— Eles não vão acreditar.

— Vão sim. É só explicarmos certinho.

            Durante nosso café da manhã, Nikki mandou mensagens a Marcos e Fernanda. Insistiu muito para os dois aparecerem em casa depois do serviço. Esperei que eles chegassem, muito nervosa, afinal, ambos eram meus amigos e ainda tinha Marcos. O que ele iria pensar quando me visse?

            Sentada no sofá, esfregando as mãos de nervosismo, sentindo as pernas trêmulas, ouvi o portão se abrir e Nikki chamando-os para dentro. Olhei para a direção da porta aberta. Fernanda foi a primeira pessoa a entrar. Cumprimentou-me com um aceno educado, como se eu fosse um desconhecido (e de fato era).

            Marcos e Nikki entraram logo depois. Marcos olhou para a sala.

— Então essa é a casa da Rafa? – Comentou.

— Sentem que o negócio pode demorar. — Aconselhou Nikki, indicando o sofá de dois lugares.

— O que aconteceu com a Rafa? — Indagou Fernanda.

— Ela não morreu, né? — Brincou Marcos.

            Até aquele momento, não haviam dado muita importância à minha presença até o momento em que Nikki mencionou a troca de sexo. Ambos imediatamente olharam para mim, boquiabertos.

— Espera...

— Sim, sou eu. — Confirmei, para Marcos.

            Contei detalhes de nosso almoço do dia anterior. Todos os detalhes. Também, com a ajuda de Nikki, contamos momentos entre nós quatro. Ficamos a tarde toda conversando até que eles acreditassem em nossa história maluca. Fui alvo de olhares perplexos. Fernanda até mesmo tocou-me para ver se eu era de verdade. Marcos não conseguiu parar de rir.

— A Rafa vai precisar de nossa ajuda. Vamos ter que ajudá-la nessa adaptação. Acha que podem fazer isso por ela?

            Fernanda olhou-me com comiseração.

— É claro. Não sei pelo que está passando agora, mas o que eu puder fazer, Rafa...

            Agradeci. Depois olhei para Marcos. Ele agora havia tapado a boca com as mãos. Continuava admirado.

— É bem estranho mesmo... Mas... Pode contar comigo.

            Não consegui agradecer a ele com palavras. Apenas com um sorriso aliviado, pois estava com vontade de chorar. Pelo menos não estaria sozinha nessa.

            Como qualquer outro ser humano, eu tinha necessidades. E o que antes era simples e nada traumatizante, tornou-se difícil e horrível. Eu precisei ir ao banheiro novamente, quando já estava sozinha em casa. O volume entre minhas pernas... Deus! O que dizer sobre isso? Entrei no banheiro e novamente me recusei a ficar de pé. Não ia encostar a mão...

            Depois de lavar minhas mãos, lembrei-me de minhas pernas peludas. Peguei meu creme para depilação e fiz uma limpezinha básica. Depois que minhas pernas ficaram lisas, levantei o braço direito e abaixei a manga da camiseta. Minhas axilas também precisavam ficar em ordem. Terminado o serviço, ergui minha camiseta. Meu peito mal tinha pelos.

            Olhei para meu umbigo. Era um umbigo bonito. Olhei para meus olhos verdes. Jamais sonhei em ter olhos verdes. Gostava dos meus olhos antigos. Este meu novo cabelo ultrapassava a altura dos ombros. Veja só! Eu parecia um metaleiro bonitão como o Marcos! Deus queira que eu não me apaixone por mim mesma!

            A noite foi muito complicada. Não conseguia pegar no sono. Tinha a questão de não sentir os meus seios e de, em compensação, sentir aquela coisa entre as pernas. Tocar-me era muito estranho. Ouvir minha voz... Pior ainda. Não. Era tudo muito estranho. Imaginei que, se dormisse, quem sabe voltaria ao normal. Então, tentei pegar no sono rapidamente.

            Dormi sem a camiseta, pois iria precisar dela para sair amanhã cedo. Também não vesti o jeans. Fiquei só de cueca mesmo. Quando o relógio despertou pela manhã, tive a desagradável surpresa de ainda estar com corpo de homem. Tudo bem. Vesti minha roupa nova, calcei meu tênis e me preparei para meu novo dia. Ficou combinado que eu iria me encontrar com o pessoal lá no shopping, alguns minutos antes do horário do serviço.

Com a ajuda deles, eu iria despistar a coitada da Estela. Eu estava muuuito descrente de que fosse dar certo, mas não custava nada tentar. Peguei meu carro, fui até o shopping e encontrei os três um pouco antes de uma das entradas. Marcos e eu entramos num banheiro masculino. As meninas tiveram de esperar do lado de fora.

— Você é um pouco menor que eu... por isso acho que vai caber. — Disse ele, confiante, tirando uma de suas camisetas da mochila.

            Peguei-a e quando fui entrar numa das cabines para me vestir, ele me chamou a atenção.

— Não tem peitos agora. Pode se trocar na minha frente.

            Encarei-o, envergonhada.

— Não sei se é uma boa ideia. Eu ainda não me sinto bem com esse corpo.

— Ah, vamos lá, Rafa. — Insistiu. — Somos homens. Dois homens. Vamos lá. Pode trocar.

            Enquanto ele fechava o zíper da mochila, eu, muito desconfortável, levantei minha camiseta. Tirei-a, sentindo-me exposta. Sentindo-me pelada demais.

— Que isso, mulher! — Exclamou ele, assustando-me. — Homens não raspam as axilas! Você é homem agora. Tem que agir como tal.

— Eu não quero ficar toda peluda! — Retorqui, vestindo sua camiseta e ignorando o fato de ela me servir quase com perfeição. Também ignorei o fato dela exalar o seu perfume divino.

— Você tem o corpo de um homem, por isso deve manter os pelos de um homem. Onde já se viu! Por que raspar as axilas?

— Você por um acaso gosta de mulher com pelo nas axilas? Acha atraente?

— Você é mulher por um acaso?

            Vacilei e não respondi. Ele balançou a cabeça e olhou para a camiseta.

— Veja só. Ficou bom, né?

— Ficou.

— Sei que seria melhor praticar em casa, mas no seu caso, não dá. Vou ter que te ajudar a andar e gesticular como homem. Seus gestos estão delicados demais.

            Levei as mãos atrás das costas, encabulada.

— Não relaxe os pulsos. Se tiver dúvida, coloque as mãos dentro dos bolsos, assim evita passar a ideia errada.

— Que ideia? De que sou gay?

            Ele riu e confirmou.

            Saímos do banheiro. As meninas ficaram muito contentes pela camiseta servir. Marcos lembrou-me de observar os homens para ver como eles andavam. Como se comportavam. Não estava tão preocupada com meu modo de andar, mas sim com Estela. Andei com eles, bastante nervosa. Observei Marcos andar para ver se conseguia imitá-lo. Chegamos à livraria. A porta estava meio aberta. Minhas pernas bambas me incomodaram. Nikki avisou, num sussurro, que Estela estava acabando de ligar os computadores.

— Bom dia, Estela. — Disseram os três, quase ao mesmo tempo.

— Bom dia.

            Estela não olhou para nós no início, até perceber que éramos quatro.

— E como foi lá, Nikki?

— Sinusite. — Olhei rapidamente para ela, admirada de ter pensado numa desculpa que nem mesmo eu teria pensado. — A Rafa com certeza está com sinusite. Todos os sintomas batem. O médico pediu para ela fazer uns exames para confirmar a suspeita.

— Nossa! Ouvi dizer que é muito doloroso.

            Estela virou o rosto na direção de Fernanda.

— Está melhor agora, Rafaela?

            Fiquei boquiaberta. Marcos prendeu o riso. Fernanda ficou surpresa pela confusão (como se já não tivesse acontecido antes) e Nikki ficou supersatisfeita. Senti um alívio enorme, especialmente quando Fernanda respondeu-a sem palavras, apenas fazendo um som com a garganta. Nikki intrometeu-se na conversa para que logo acabasse a curiosidade de Estela sobre o assunto.

            Fomos até a salinha dos fundos para bater o cartão de ponto. Neste primeiro dia, fiquei ao lado de Marcos, e ele passou-me outras dicas. Também me corrigiu, quando eu agia de forma delicada demais.

— É isso aí. É preferível deixar as mãos nos bolsos. Fique ereto.

            Levantei os ombros.

— Você repara nos homens bonitos? — Indagou, subitamente.

— Ham?

— Você repara nos homens bonitos?

— Ah, claro!

— Não faça mais isso. — Disse, com firmeza e seriedade.

— Certo. Eu preciso parecer homem, já que eu tenho a carcaça de um.

            Gargalhei com sua cara carrancuda.

— Vamos lá. Ande daqui até ali.

            Fiz o que me pediu, andando mais ou menos um metro e setenta, do jeito mais másculo que consegui, sem tirar as mãos dos bolsos.

— É, muito bom. Você leva jeito.

— Mas é difícil andar assim. Não é o jeito que eu ando. — Reclamei, voltando ao seu lado.

— Vai precisar se acostumar. Se reeducar. Acho que o problema maior será o movimento das suas mãos.

            Fiz uma careta de desolação.

— Por que eu? Por que me transformar em homem? Foi bruxaria de alguém?

            Pouca gente entrou na livraria. Era quinta-feira. O movimento maior começaria a partir de amanhã. Marcos pediu a Estela para almoçarmos juntos. Quando saíamos da livraria, ele mencionou algo que eu não havia pensado. Um nome. Ele disse que eu precisava de um nome masculino.

— Entre nós, podemos te chamar de Rafaela, mas tem as outras pessoas. Ou quer ser chamada de Rafael para facilitar?

— Nunca achei meu nome grande coisa.

— Que nome você acha bacana?

— Sei lá... minha cabeça está tão pesada de informação...

— A minha também...

            Enquanto caminhávamos sem destino pelo shopping, bastou aqueles minutos para eu ficar triste, pois eu tinha tolas esperanças de quem sabe, algum dia, ficar com ele, mas agora, presa a esta forma masculina para sempre, jamais poderá rolar qualquer coisa entre Marcos e eu. E isso entristece qualquer um, ainda mais quando se está usando uma camiseta do seu objeto de afeição que emana seu perfume esplendoroso. É como estar presa a uma máquina de tortura.

            Eu precisava de meu próprio uniforme com urgência. Falei para ele, inclusive, que precisava de sua ajuda para arranjar pelo menos umas três camisetas para poder trabalhar. Fomos à praça de alimentação. Pegamos os cardápios de um fast food de batatas belgas. Pedi um balde de frango, com batata frita e molho. Marcos e eu íamos dividir o balde.

            Sentamo-nos para comer numa mesa de frente para o fast food.

— Como você está? — Perguntou-me, após comer seu primeiro pedaço de frango.

— Horrível. — Disse, mergulhando duas batatas no catchup americano.

            Ele riu.

— É estranho conversar com você olhando para essa sua cara. Esse é o seu padrão de beleza? Digo, é esse rosto que você considera bonito?

— Está falando da minha cara?

— Estou.

— Como assim?

— Será que uma força sobre-humana percebeu que você considerava esse corpo, esse tipo de corpo, com esses olhos, esse cabelo, esse tom de pele, tudo, como a perfeição na Terra? E por isso fez você se tornar aquilo que mais considerava?

— Que teoria maluca.

— Maluco é você se transformar em homem. — Riu de mim.

            Concordei, dando de ombros. Durante nossa refeição, ele passou-me outras dicas, e como eu não podia mais ignorar, disse-lhe que precisava usar o banheiro. Ele perguntou se eu não precisava de companhia, de apoio moral. Disse que eu ficaria envergonhada se ele entrasse no banheiro comigo. Por isso fui sozinha (quase pagando mico de entrar no banheiro feminino).

            Voltei para a livraria. Precisei aguentar mais algumas horas de serviço. Logo após batermos o cartão, Marcos sugeriu que, na hora da saída, eu colocasse minha mochila em frente ao peito para esconder o fato de estar usando o uniforme. Funcionou. Quando o pessoal do segundo turno entrou na livraria, minha presença passou despercebida.

            Estava ao lado de Marcos, porém, a presença dele não foi ignorada por Ágata, que trabalhava no segundo turno. Ágata era simpática com todo mundo, demonstrando muita sinceridade quando reagia a conversas e situações. Gostava dela. Nunca me tratou mal, só a invejava pelo fato de seus singelos flertes a Marcos serem correspondidos.

— Como foi seu dia? Ótimo? Mais ou menos? — Indagou ela, depois de cumprimentá-lo.

— Talvez uma união dos dois.  — Respondeu ele, sorrindo.

            Ela virou-se para mim com um olhar indagador. Seus olhos brilhavam.

— Não vai me apresentar seu amigo, Marcos? Que mal-educado que você é.

— Ah! Esse é... Bernardo! — Respondeu ele, dando um tapa forte nas minhas costas.

            Cumprimentamo-nos com sorrisos.

— Bom, já vamos indo. Quero sair logo daqui. Trabalhei demais hoje.

— Ah, é? Tchau, bom dia, Ma.

— Bom dia.

            Ela costumava cumprimentar com beijos no rosto e surpreendentemente, beijou o meu na despedida como fez com Marcos. Andamos depressa até o corredor. Nikki e Fernanda nos esperavam perto da escada rolante.

— Ufa! — Exclamou ele, aliviado. — Não sabe o quanto meu cérebro trabalhou para achar um nome na velocidade da luz!

— Você conhece alguém chamado Bernardo? — Indaguei, curiosa.

— É um amigo do Facebook. Ah! E por falar em Facebook, você devia fazer um perfil para você.

            Não achei a ideia ruim. Inclusive, planejei fazer isso depois que voltasse para casa, mas antes de voltar, passei no mercado para comprar algumas coisas que faltavam no armário. Ao chegar em casa, dei-me conta de que precisava de outras roupas e de um chinelo novo. Entrei no banheiro enrolada numa toalha. Fui para debaixo do chuveiro, sentindo-me ainda muito estranha com aquele corpo e aquelas partes íntimas.

            Enquanto ponderava sobre tudo o que me acontecera, senti um pouco de felicidade ao recordar que meus amigos estavam dispostos a me ajudar no que eu precisasse. E quando comecei a pensar em Marcos, aquela coisa que eu tinha entre as pernas fez um movimento inesperado.

— Meu Deus! Que horrooor!

            Seria verdade ou mito que banho frio ajudava?


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