O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 6
A Floresta Lazúli




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A noite se aproximava e embora não comesse há um bom tempo, tinha conseguido encontrar um enorme lago para saciar sua sede. Não teve medo de beber ou permitir que Julith o fizesse, pois do outro lado havia um cervo comprovando que aquela água era boa. Enquanto bebia e molhava rosto, viu seu próprio reflexo nas águas escuras e teve uma ideia melhor do quanto estava acabado, sujo, ferido e faminto. Quando esfregou perto da boca, sentiu uma fisgada e se lembrou que outrora tinham lhe chutado ali. Viu que teve sorte de não ter perdido pelo menos três dentes. Alabas com certeza deve ter tratado sua mandíbula enquanto estava inconsciente, mas nunca teria a chance de perguntar, pois ele se foi. “Pensar nisso vai me fazer baixar a guarda, não posso ficar distraído nesse lugar”.

Alguns peixes nadaram próximo de onde ele estava. Sem fazer movimentos bruscos, se afastou do lago para apanhar sua espada e retornou com muita cautela. O garoto tentou por várias vezes espetar qualquer um daqueles peixes, sem obter sucesso. Exausto, jogou-se no chão de pedrinhas às margens e tombou a cabeça para trás. Foi quando viu a odeleira ali, repleta de frutos. Animado, foi até a árvore apanhar as melhores que conseguia e começou a comer vorazmente, se dando conta da fome avassaladora que sentia. Sem se demorar, presenteou a égua Julith com as frutas e ficou feliz em saber que o animal as apreciava.

—Seu dono se foi... Agora somos só nós dois. – conversou enquanto a alimentava na palma da mão – Seja gentil comigo, porque eu não sei cavalgar como ele. Ei, pare de lamber minha mão! – queixou-se rindo e acariciando a cabeça do animal que parecia gostar ao ficar tão quieta – Preciso tomar um banho. Vigie meus pertences, Julith.

O céu já estava escuro, mas limpo e a lua iluminava o lugar. Gabriel tentou não entrar demais no lago por temer alguma criatura desconhecida que pudesse viver ali, não sabia de fato. Nu, ele banhava-se ao mesmo tempo em que fitava todas as direções, com medo de ser encontrado pelos inimigos de Calendria. Ele mergulhou todo o corpo por alguns segundos e então emergiu, sacudindo a cabeça e abrindo os olhos. Atrás de Julith, havia alguém. Ficou completamente arrepiado e outra vez aquela sensação intensa de medo o dominou. Viu de relance que sua roupa, botas e a espada embainhada não estavam tão longe dele, então começou a andar lentamente em direção aos objetos, sem para tanto perder de vista aquela figura que ele ainda não conseguia distinguir.

—Fique onde está! – advertiu, apontando-lhe o indicador.

—Sim. – respondeu e a voz era feminina.

O medo se mesclou a vergonha por estar nu diante de uma garota que se revelou imensuravelmente bela. Ele parou por um instante, atônito diante de tanta formosura e delicadeza, mas logo voltou a se mover e apanhou as roupas, vestindo-as o mais rápido que conseguia e encarando várias vezes a misteriosa figura de cabelos brancos como a neve, longos até a cintura e com suaves ondulações.

—Não tente nenhuma gracinha! Eu não estou brincando! – fez outra advertência ao cogitar a ideia de que ela poderia ser uma nobre de Calendria e que a floresta possivelmente estaria repleta de soldados.

—Não tentarei. – como era delicada e doce sua voz.

Quando se recompôs, quase se esquecendo que não tinha uma camisa para vestir, Gabriel andou cuidadosamente até a garota, mantendo sempre a mão no punho da espada. Ao chegar perto, teve a certeza de que nunca tinha visto uma mulher como ela. Além dos cabelos brancos e da pele alva, seus olhos eram azuis e cristalinos, suas feições inacreditavelmente perfeitas, usava um vestido de tecido fino que era deveras harmonioso com seu corpo, o qual evitou olhar demais para não ser desrespeitoso; porém o pouco que viu tirou-lhe o fôlego. “Como pode existir alguém assim? Não! Foco, cara! Não seja burro!”

—Quem é você? – perguntou ele.

—Leeta. E o seu, humano?

“Humano? Então ela realmente não é humana. Seria uma sereia?” Olhou para as pernas ocultas pelo vestido, tendo muita dificuldade em tornar a olhar o rosto dela outra vez. “Ou talvez uma elfa. Em se tratando desse mundo, qualquer coisa é possível”.

—Eu me chamo... – parou por um segundo – Tral.

—É bom conhece-lo, Tral. Você é de Calendria?

—Sou. Sou sim.

Mentir foi a melhor opção que encontrou, afinal, seu verdadeiro nome só causava problemas e aquilo poderia ser uma armadilha.

—E o que um calendrino faz tão longe de casa? – embora ainda delicada, Leeta assumiu um ar de seriedade assustador e seus olhos começaram a brilhar como se abrigassem estrelas em seu interior.

—Espera! – assustado, o garoto sacou a espada e nesse instante foi arremessado para trás por uma onda invisível de choque.

Leeta tinha feito algo similar ao que fizera Alabas. Ela mantinha a palma da mão direita estendida como se fosse uma arma. Já ele teve dificuldade de se levantar, percebendo que a espada estava fora de alcance.

—Calendrinos não são bem-vindos aqui! – anunciou ela com imponência, mantendo-se de queixo erguido – A Floresta Lazúli... Vos rejeita!

Nesse momento, todas as árvores em volta ficaram iluminadas por um azul celeste. Vários pontinhos de luz emergiam das folhas e subiam sem peso como poeira. Os galhos ficaram agitados, como se fortes ventos estivessem soprando, o que não era o caso. Julith começou a relinchar, visivelmente incomodada. O garoto estava perplexo, olhando em todas as direções e também aquela que lhe falava.

—Não vim fazer mal a você ou... A vocês... – ficou confuso se deveria falar com a floresta, pois esta realmente demonstrava estar viva – Estou a procura do reino de Aurora. Preciso encontrar os elfos!

—Você os encontrou. – disse ela, gesticulando como se puxasse algo com ambas as mãos.

O corpo do garoto foi trazido até próximo de Leeta, que o pressionou contra o chão apenas estendendo a palma da afável mão.

—Alabas... Disse... – tentou falar, mas estava sufocado – Aurora... Por favor!

E a pressão desapareceu. Ligeiramente ofegante, ele olhou para frente e viu os pés dela abraçados por sandálias feitas a mão com muito capricho.

—Droga... É sempre assim... Todo mundo me esculacha... – resmungou enquanto se levantava.

—O senhor Alabas te enviou? – indagou uma Leeta desconfiada – Onde ele está, calendrino?

—Ele morreu... – disse olhando nos olhos dela – Morreu para me proteger do maldito Decarlo.

—Lamento que ele tenha partido. – os olhos da elfa perderam o brilho e se tornaram outra vez cristalinos - Você disse que é de Calendria. Então por que alguém como Decarlo, das duas espadas, te perseguiria? – questionou com severidade, claramente insatisfeita pela mentira que lhe foi contada.

—Eu não disse a verdade. Meu nome é... Gabriel. E eu obviamente não sou de Calendria. Desculpe por isso, Leeta.

A floresta pareceu se acalmar, pois embora ainda estivesse iluminada, seus galhos não mais se agitaram. Graças a isso, Julith se acalmou. Já a elfa o olhou com inconfundível surpresa, boquiaberta, algo que por um instante fez com que o garoto se lembrasse de Heler.

—Você veio. Você finalmente veio. É uma honra para mim recebe-lo e peço que perdoe minha falta de modos, milorde.

—Espera, o que?!

Sempre que pensava estar perto de entender aquele mundo, algo acontecia e ele voltava a estaca zero. Milorde? Nunca sequer sonhou em ser chamado assim, tampouco desejou qualquer tratamento dado aos nobres. Sentiu-se desconfortável sobre isso, mas aliviado porque a poderosa elfa não o via como inimigo.

—Deixe-me recuperar sua espada, milorde. – disse ela gesticulando como se puxasse algo com uma das mãos.

—Quer, por favor, parar de me chamar... – sentiu a lâmina passando perto da orelha esquerda e se arrepiou ao pensar no que teria acontecido caso tivesse se movido - ...assim? Eu... Você está tentando me matar? – questionou enquanto apanhava a espada parada no ar e a guardava na bainha.

—De maneira alguma. Outra vez peço perdão pela minha falta de modos, não quis assustá-lo.

Ele a fitou de olhos semicerrados, mas Leeta não parecia emitir qualquer nota de maldade no seu jeito ou na sua fala.

—Tudo bem... Não precisa ser tão formal comigo. Ahn... Como disse que se chama essa floresta? – tentou puxar assunto.

—Floresta Lazúli, a benção dada através de Nymira aos elfos. – respondeu quase como se cantasse uma melodia.

Era difícil não se perder na voz ou na beleza daquela elfa, porém Gabriel resistia ao máximo. Odiaria desrespeitá-la. Ao mesmo tempo, pôde contemplar mais calmamente todas aquelas árvores e a maravilha azulada que eram suas folhas. Nunca tinha visto algo tão mágico e que lhe acalmasse o coração. Foi a primeira vez que se sentiu sortudo de estar naquele mundo.

—Ouvi falar sobre Nymira. O que é? – perguntou com simplicidade.

—É a árvore primordial em Valtara. Vejo que também é verdade o que foi dito, pois o milorde não sabe nada deste mundo.

—Tá, antes de tudo, posso te pedir um favor?

—O que desejar, milorde. – sorriu e isso quase o desmontou.

—Ahn... O que era mesmo? Ah, tá. Pode parar de ser tão formal comigo e começar a me chamar de você ou de Gabriel?

—Mas mil... – interrompeu-se, cobrindo as bochechas com ambas as mãos e suspirando – Como desejar, Gabriel.

—Obrigado. – dessa vez foi ele a sorrir – Onde estávamos? Ah! O que é Valtara?

—Valtara é o continente do sul, assim como Eastgreen a leste, Moroeste a oeste e Nefrasar a norte. – apontou na direção de cada um dos pontos cardeais.

—Então... Se Valtara é o continente do sul, significa que a tal Escuridão está lá?

—A Escuridão do Sul engoliu Valtara em 2332 após Nymira. Desde então, tudo sobre aquele continente se tornou um absoluto mistério. Até mesmo o paradeiro de Nymira permanece um mistério.

Embora obtivesse tantas respostas, novos questionamentos surgiam em sua cabeça e se não controlasse sua voraz curiosidade, aquela conversa duraria por horas ou até a paciência de Leeta acabar. A primeira hipótese pareceu a mais provável.

— Olha, Leeta... A forma como falou antes, é como se estivesse me esperando.

—E estava. – confirmou sorridente, tombando ligeiramente a cabeça para o lado – Todos em Aurora estavam a sua espera, Gabriel. E se entendi bem, você estava nos procurando.

Julith tornou a relinchar e a ficar bastante inquieta, enquanto uma criatura se aproximava vindo de trás das árvores. Um imponente tigre branco com listras negras caminhou em direção a elfa, ignorando o cavalo e também um Gabriel em guarda, pronto para tentar proteger a elfa.

—Cuidado, Leeta!

Ela riu divertida e ele a encarou confuso, então engoliu em seco quando o tigre ficou entre eles e se roçou na sua domadora, que o acariciou na cabeça.

—Esse é Kaar. Ele não fará mal a você ou a Julith. – garantiu a elfa, olhando para a égua que a encarava de volta – Venham comigo, vou guia-los à nossa cidade.

Abismado com aquele tigre enorme, o garoto guardou a espada novamente e foi até Julith, montando nela com um pouco mais de facilidade do que antes. Para isso, se lembrou de como fazia Alabas. Por outro lado, Leeta montou em Kaar com uma graciosidade ímpar, acariciando-o sempre que podia e a julgar pelo rosto do felino, estava realmente satisfeito em ser mimado.

—Sigam-me, por favor.

Eles adentraram o interior da floresta que parecia interessada em conduzi-los pelo caminho certo, já que a luz azulada ficava mais forte de maneira a desenhar uma passagem por onde Kaar percorria cheio de segurança. Não estavam muito rápido, por isso o garoto conseguiu ficar próximo o bastante para conversar com Leeta:

—Tudo isso aqui é o reino de Aurora?

—Sim. – respondeu ela rindo – Fico feliz que um dos meus passeios pelas fronteiras tenha acarretado em te encontrar. Acho que dessa vez a bronca dos meus pais será menor.

Ele começou a admirá-la mais abertamente durante o trajeto, desviando o olhar sempre que ela porventura o encarava. Não queria que percebesse, tampouco desejava deixa-la desconfortável. Gabriel jamais se imaginou conversando com uma elfa ou que esses seres existissem, logo estava feliz por finalmente ter uma oportunidade tão única e mágica. Pelo visto, aquele mundo tinha muito para lhe mostrar e surpreender, fosse para o bem ou para o mal. Ao garoto, entretanto, desfrutar dos encantos da floresta, de Kaar e Leeta soava como uma recompensa depois de dias tão difíceis. Sem falar em Julith, é claro, que mesmo diante das mais adversas situações, não o abandonou. Cuidaria dela não só pelo vínculo que começava a crescer entre ele e o animal, mas também em respeito a Alabas.

“Por que ele me pediu perdão? O que quis dizer com sangue ser pago com sangue? Ele falou algo sobre o Rei Negro saber empunhar uma espada e eu não. Com toda certeza o conheceu de perto, já que era militar em Calendria. Tudo acerca do outro Gabriel é muito nebuloso. Heler o tem como um amigo, mas Calendria o abomina. Só que Heler também é uma calendrina, como todos da vila, afinal, no passado foram atacados por emberlanos e salvos por ele. E se aqueles miseráveis que me torturaram o chamam de regicida, significa que ele tomou o trono à força. Quem reinava antes dele? Muitas perguntas, poucas respostas. Minha cabeça vai explodir!”

Eles cruzaram uma pequena ponte elevada de madeira que corta um riacho, cujo parapeito estava naturalmente decorado com rosas trepadeiras. Adiante, várias árvores de troncos largos e gigantescos bloqueavam completamente a visão, obrigando a estrada a fazer várias curvas as quais Kaar e Julith percorreram andando. O ar fresco e o aroma de flores predominava, inebriando o garoto que brincou em pensamento sobre estar no paraíso.


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