O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 14
O peso do pecado




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Os reinos de Calendria e Aurora ficavam realmente bem próximos um do outro. Em menos de um dia a cavalo, era possível se locomover entre a floresta Lazúli e as muralhas da capital calendrina. Apesar disso, esses dois povos não se davam muito bem, sobretudo porque os elfos outrora tinham se aliado ao antigo reino de Emberlyn.

—Quem é mais idiota? Aquela velha ou a gente? – debochou Nicolas.

—Acha que os elfos serão hostis? – perguntou Heler apreensiva.

—Vejamos. Somos calendrinos, estamos com uma emberlana ferida e você está procurando pelo Rei Negro renascido. Ah, eles não tem motivos para serem hostis... – completou sarcástico.

—Não vou falar sobre Gabriel Eichen, eu juro! – zangou-se fazendo bico – Para de implicar comigo, poxa! Me sinto uma idiota quando fala assim.

—Mas você é uma idiota. – deu de ombros enquanto comandava os cavalos para pararem – Por um lado, pode estar indo atrás do maior psicopata que Eastgreen já conheceu. Por outro lado, pode estar indo atrás de um garoto que supostamente veio de outro mundo, o qual você só conheceu brevemente.

—Imbecil! – resmungou e depois franziu o cenho – Por que parou?

—Os cavalos precisam descansar. O terreno ficará cada vez mais íngreme conforme nos aproximamos das Cordilheiras do Oeste. É um trajeto mais longo do que o normal, porém não queremos ser vistos pelos filhos da puta da capital. O pai daquela vadia que o seu irmão chama de esposa é tenente, então com certeza já tem gente atrás de nós.

—Mas aquela mulher nos ajudou. E ela parece ser bem influente.

—Lady Yeshi é muito influente. Só fica abaixo de Merlin. Ela e os outros chefes das grandes casas dominam sobre Calendria, Heler. – explicou enquanto desembarcava e seguia em direção a uma grande rocha – Mas naquele inferno, é cobra mordendo cobra. Tem muita gente agindo por debaixo dos panos, não podemos nos arriscar. – e desapareceu.

Heler foi para o fundo da carroça e se sentou ao lado de Ada, que mantinha as pernas esticadas e as mãos sobre o colo.

—Está melhor?

—Estou sim, senhora.

—Não me chame de senhora. – pediu a garota com um sorriso – Sinto muito por tudo o que o meu irmão te fez. Nosso pai não nos educou assim e ainda não acredito que ele tenha se tornado esse cretino.

A mulher de cabelos pretos e ainda mais compridos que os de Heler não se atrevia a encará-la, mas ficava nítido em seu rosto toda a carga de sofrimento que estava suportando há muito tempo.

—Como foi que você acabou na casa deles?

Ada desviou o olhar para ainda mais longe, recolhendo as pernas devagar e as abraçando, ligeiramente trêmula.

—Desculpa. Se não quiser falar sobre isso, tudo bem.

—Eu... – começou, olhando para a outra durante alguns segundos e tão logo tornando a desviar o olhar – Eu era pequena quando o rei ordenou a reconstrução de Nova Emberlyn. Achávamos que finalmente poderíamos viver de maneira digna... Mas aí... Ele se foi. E com ele, a nossa esperança de liberdade. As grandes famílias Ostrade e Di Blanco ordenaram a captura de muitos emberlanos para os escravizarem em Calendria. Eles chegaram em Nova Emberlyn cheios de violência, mataram alguns, capturaram outros, inclusive eu. Eles me separaram dos meus pais e nunca mais ouvi falar deles.

—Eles também mudaram o nome de Nova Emberlyn... – complementou Heler com pesar.

—“Cidade Sombria”. Qual é a verdadeira Cidade Sombria? – indagou Ada quase chorando, porém cerrando os dentes de raiva – Por que eles nos tratam assim? O que fizemos pra eles? Malditos sejam! – então rapidamente se recompôs – Desculpe, senhora. Foi atrevimento meu, afinal você também é calendrina, embora tenha sido tão gentil.

Heler abraçou Ada, enterrando os dedos em seus volumosos e despenteados cabelos. Depois repousou as mãos nos ombros da emberlana, olhando com sinceridade em seus olhos.

—Só Heler, por favor! E embora eu também seja calendrina, nunca concordei com toda essa insanidade. E mesmo que ele seja um ignorante, o Nicolas também não apoia a maneira como nosso povo trata vocês.

—Eu sei. – ela sorriu pela primeira vez – Nunca vi um calendrino tão bravo por ver uma escrava sendo castigada. Olha, Heler... Desculpe minha intromissão, mas queria te perguntar uma coisa.

—Pergunte o que quiser. – disse gentilmente, jogando-se ao lado de Ada.

—Vocês falaram algo sobre ir atrás do Rei Negro. O que isso quer dizer?

Dessa vez foi Heler quem desviou o olhar, pensando em como explicar tudo aquilo. Fosse como fosse, soava um verdadeiro absurdo. Contudo, não achava justo mentir ou esconder nada de alguém que tinha sofrido tanto por causa da queda de seu rei.

—Acreditamos que... Bom, só eu acredito que há uma possibilidade dele estar... como posso dizer? Vivo...

Ada arregalou os olhos, então sacudiu a cabeça e se ajeitou melhor sobre a madeira.

—Como assim vivo? Ele morreu quando o mago Merlin...

—Sim! – interrompeu Heler impaciente – Eu sei, Ada. Mas há alguns dias, eu conheci um garoto com o mesmo nome e os mesmos olhos. É uma história muito confusa e absurda, por isso não sei como te explicar. No passado, Gabriel Eichen salvou minha vila, meu pai e eu. Também salvou o idiota do meu irmão, mas isso não vem ao caso. Eu me lembro dele, dos olhos, da voz, da sensação de proteção sempre que estava por perto. E acontece que quando eu encontrei esse garoto, senti exatamente o mesmo.

—Não me dê falsas esperanças, eu te peço. – apelou ela com os olhos marejados.

—Eu acredito no meu coração, Ada. E assim que o encontrarmos, você vai entender do que estou falando. Segundo o que aquela mulher nos disse mais cedo, é possível que o encontremos em Aurora.

Sob o céu parcialmente nublado em mais uma noite naquela região, onde a brisa estava mais intensa, duas espadas colidiram uma contra a outra. Elindora, de tamanho médio, inscrições élficas nos dois lados da lâmina e empunhadura dourada, confrontava outra que não tinha nada de especial, exceto talvez pela flor de calêndula gravada acima do punho.

—Mantenha-se firme, amigo! Tente concentrar sua aura nos pés, braços e na espada. – instruiu o rei elfo.

Gabriel se esforçou para obedecer, porém seus olhos de coloração intensa revelavam que o brilho esverdeado continuava uniforme ao redor de todo o seu corpo. Aos poucos, foi sendo empurrado para trás, até que a aura de Yliel sofreu um pico num centésimo de segundo, suficiente para arremessa-lo de costas no terreno íngreme do barranco. E do alto, no pé da estrada estreita, Leeta acompanhava a tudo desejando interferir para ajudar o rapaz de alguma forma, contudo sabia que isso não o ajudaria de fato. Estava angustiada.

—Desculpe, Gabriel. – disse o elfo se aproximando do rapaz e o ajudando a se levantar – Minha deficiência no domínio absoluto da minha aura está te machucando.

—Não se desculpe, senhor. – respondeu enquanto batia nas vestes élficas que usava, cuja cor azul já tinha se perdido diante do marrom de terra. Sua aura havia se apagado – Eu preciso melhorar e se pegar leve comigo, nunca vou conseguir.

O rei sorriu satisfeito e se colocou outra vez em posição de guarda. Era bonito de se ver, pois ele empunhava Elindora com apenas uma mão, mantendo as pernas flexionadas e separadas, um pé após o outro. Não tremia, não pendia para qualquer lado e seus movimentos pareciam sempre muito precisos, além de ágeis. Gabriel, por outro lado, replicava a postura aprendida com Aelin e não se dava ao luxo de empunhar a espada com apenas uma mão.

O rapaz tornou a ficar rodeado pelo brilho esverdeado ao que conseguia enxergar e viu Yliel refulgir em dourado na mesma hora. Confiante, partiu para cima de Elindora num movimento de cima para baixo até novamente colidir ambas as lâminas, resultando em um tinido alto. Ele se esforçava para mover a aura em qualquer direção, porém não conseguia. Apesar de senti-la como parte de seu corpo, sua mente não era capaz de dar qualquer comando como fazia para as mãos e as pernas.

—Precisa prender seus pés no chão. Depender tanto dos músculos não vai ajuda-lo sempre, sobretudo diante de alguém com um bom domínio de aura. Você precisa sentir essa necessidade nos pés, como já faz inconscientemente ao caminhar. Precisa sentir nos braços e na espada, como se fosse algo natural. Torne tudo isso em algo natural, mantenha-se de pé!

Elindora começou a emanar uma aura ainda mais poderosa. Leeta e Yliel só conseguiam ver o brilho nas inscrições élficas, porém Gabriel enxergava algo parecido com raios de sol partindo da lâmina. Ele sentiu também que estava mais difícil conter a lendária espada, mesmo que a sua a forçasse de cima para baixo; na verdade, tinha a sensação de ser o exato oposto.

—Papai! Precisa se controlar! – apelou Leeta apreensiva, porém ele não lhe deu ouvidos.

—Não precisa, não! – retrucou Gabriel que se esforçava até para falar – Eu vou conseguir, senhor!

—Não é uma competição de forças, amigo! Se concentre. É fácil quando estamos em meditação, porém você não terá esse privilégio no calor da batalha! Terá que dominá-la sobre pressão!

Outra vez sentiu seus pés sendo empurrados para trás, porém aos poucos sua aura foi se concentrando ao redor deles. Percebendo que já não conseguia empurrá-lo tão facilmente, Yliel foi aumentando a intensidade e permitindo que Elindora drenasse um pouco mais da sua própria aura. Com isso, mais uma vez o rapaz foi arremessado contra o terreno íngreme do barranco.

Ainda na alvorada, enquanto Leeta dormia no interior da carruagem e Gabriel no chão de grama no pé da montanha, Yliel que adormecera por poucas horas estava observando na direção da floresta Lazúli. Ele sabia que poderia descansar, pois Troh e Umi lhes protegeriam, todavia estava pensativo demais para tal. Foi então que a floresta começou a brilhar intensamente, se apagando e novamente refulgindo, isso repetidas vezes. Ele ficou absolutamente sério e se apressou em acordar os jovens.

—Depressa! Acordem!

—O que foi, papai? – questionou a elfa manhosa, mas ao sair da carruagem, se deu conta do porquê – Eles estão lá!

—Sim! – confirmou o rei, começando a sacudir Gabriel – Amigo! Vamos, levante!

E ele se levantou completamente confuso, esfregando os olhos até conseguir perceber o estranho fenômeno na floresta Lazúli.

—O que isso significa, senhor?

—Devemos voltar. Entre na carruagem, no caminho eu te explico. Não esqueça sua espada.

A carroça do mercador estava parada no meio da floresta com ninguém a bordo. O brilho azulado que ia e vinha se refletia nos olhos dos dois cavalos presos ao veículo. Eles estavam inquietos, sentindo-se amedrontados diante de um tigre branco de listras negras que usava uma armadura dourada e mesmo sem ela, já seria notavelmente maior que os outros sete felinos em volta.

Sentados ao redor do tronco de uma árvore, os três viajantes olhavam para as várias pontas de flechas que estavam apontadas para os seus rostos. Cerca de dez elfos arqueiros cercavam Heler, Nicolas e Ada.

—Vocês ignoraram os avisos para retrocederem e invadiram Aurora. – disse um elfo jovem de olhos verdes e cabelos prateados, caminhando atrás dos arqueiros – Calendrinos não são bem-vindos aqui!

—Nós viemos em paz. Estamos apenas procurando... – dizia o mercador, quando ficou dividido sobre como poderia explicar a motivação para estarem ali.

—Estamos procurando um rapaz chamado Gabriel. – intrometeu-se Heler, não dando a mínima para a cautela que Nicolas tentava manter.

—Não há nenhum Gabriel em Aurora. – disse o elfo estreitando os olhos – E ainda que houvesse, é muita ousadia a de vocês procurarem seus inimigos em um território que não lhes pertence.

—Ele não é nosso inimigo! – apelou a garota – É nosso amigo! Por favor, deixa a gente falar com ele. Isso vai provar que estamos falando a verdade!

—Príncipe Sael, o humano carrega pequenas lâminas em sua cintura. E a garota também. – revelou um dos arqueiros.

—Remova tudo. – ordenou o príncipe.

Nicolas gesticulou negativamente com a cabeça para Heler, claramente dizendo para que ela não fizesse nada. Assim que foram desarmados, Sael deu um passo à frente e os soldados recuaram um passo para trás.

—Se insistirem em perturbar a paz do nosso reino, mandarei prendê-los nas masmorras do palácio. – advertiu inflexível.

—Então manda! Manda prender a gente! – alterou-se a garota.

—Heler! Cala a boca! – bradou Nicolas.

—Não vou me calar! Ele quer prender a gente por nada!

—Estamos no território deles!

—Já basta! – interrompeu Sael com veemência – Serão escoltados para fora da floresta. Considerem isso uma gentileza, pois eu poderia tomar vossa atitude como uma declaração de guerra.

—Guerra? Que guerra? Eu só quero falar com o Gabriel! – replicou ela se precipitando para frente, mas sendo puxada pra trás pelo mercador.

—Perdoe a garota, senhor. Ela não sabe como se portar.

—E você sabe, né, senhor Nicolas? Esse elfo fica dizendo o que bem entende e você abana o rabinho pra ele!

Ada mantinha-se observadora. Não queria se intrometer e tinha receio de que pudesse piorar a situação que já não era das melhores. Porém, viu os olhos verdes do príncipe elfo repousarem em suas pernas e tão logo em seu rosto.

—Apenas cale a boca e faça o que eu estou dizendo. Isso aqui não é brincadeira! – rosnou o mercador.

—Você! – disse Sael para Ada – Eles te fizeram isso? – indagou apontando para as pernas dela.

—Não, senhor. – respondeu com a voz trêmula.

—Foi o meu irmão. – disse Heler sem pensar.

—Puta que me pariu... – murmurou Nicolas escondendo o rosto com as mãos na mais pura indignação – Estamos fodidos.

—De onde você é? – perguntou Sael com severidade e uma expressão de raiva crescente em seu rosto.

Ada hesitou, olhando para os outros dois sentados ao seu lado. Enquanto Heler parecia ter entendido o tamanho da besteira que fez, a julgar pela sua expressão arrependida, Nicolas assentia com a cabeça, como que dizendo “não tem jeito, pode falar”.

—Nova Emberlyn, senhor.

Todos os arqueiros se entreolharam na mesma hora. O príncipe elfo arregalou os olhos e cerrou os dentes, então estendeu a mão aos seus soldados e um deles lhe entregou o arco e uma flecha.

—Espera! Não é isso que está pensando! – apelou o mercador desesperado, enquanto assistia Sael puxar a flecha para trás e mirá-la contra Heler – Espere! Por favor!

—Você teve a audácia de invadir Aurora trazendo consigo uma emberlana escravizada. Sua afronta será severamente punida. Seus amigos levarão seu corpo de volta a Calendria para que sirva de exemplo do que acontece quando tentam manchar a floresta Lazúli com seus pecados.

A garota estava perplexa, meneando negativamente com a cabeça diante da acusação injusta. Ela olhou para os lados, fitando Nicolas e Ada. Ele apelava desesperadamente, ao ponto de uma veia saltar no alto de sua cabeça próximo aos cabelos grisalhos. Já Ada suplicava para que nada fosse feito, gesticulando com as mãos repetidas vezes como quem pede para parar.

Sael tinha o coração da garota na mira do seu arco. Quando viu o mercador se interpondo entre ele e seu alvo, olhou para os soldados e estes rapidamente agarraram o homem, que se debateu de todas as formas.

—Tirem a emberlana também.

E os elfos obedeceram.

Heler sentiu o coração disparar a tal ponto que parecia estar em sua garganta. Diante dos seus olhos, uma flecha mortal estava apontada. Contudo, não conseguia se mover, não conseguia reagir, nem parecia a garota valente que sempre foi. Acontece que no fundo do seu coração, se sentia culpada por todo o sofrimento que Ada viveu, pois sangue do seu sangue tinha sido responsável pelas atrocidades que a marcariam pelo resto da vida. Embora soubesse que jamais faria tais coisas, um lado seu parecia disposto a pagar pelos crimes de Heron, lado este que sussurrava; você não é digna de encará-lo, pois no fim também é calendrina.

—HELER, ESQUEÇA O QUE EU DISSE! SE MEXE! SAI DAÍ! O QUE ESTÁ FAZENDO? HELEEEEEEEER!

A flecha foi disparada. Seu destino... O vulnerável coração de Heler. Em volta, o mercador gritou e Ada também. A floresta Lazúli brilhou intensamente e uma ventania poderosa forçou o projétil para fora de sua trajetória. Foram segundos de um silêncio perturbador, até todos se darem conta da pessoa responsável por intervir. Sua delicada mão estava estendida e seus cabelos brancos esvoaçavam, bem como um ar rigoroso pairava sobre seus olhos verdes.

—Mãe?!

A rainha Erilla estava entre eles. E uma expressão atipicamente séria dominava suas belas feições.


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