O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 13
A escrava Ada




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No vasto reino de Calendria, em uma das ruas mais movimentadas da capital onde é comum ver o tráfego de carroceiros e ambulantes, caminhava um homem de cabelos pretos, alto e forte, usando vestes limpas que por si só já o diferenciava da grande maioria. Uma calça preta, botas, camisa de manga longa e dois anéis dourados na mão direita, além da aliança no anelar esquerdo. Atrás dele, estava uma mulher com um grande volume de cabelo preto contido em um pano de prato surrado, usando um vestido cheio de remendos, expressões sofridas e algumas marcas pelo rosto e corpo. Diferentemente do homem que andava de mãos livres, ela carregava várias sacolas de palha repletas de verduras, frutas, pães, carnes e temperos.

—Vamos, sua imprestável! Minha irmã está esperando e o almoço está atrasado por sua culpa! – bradou o homem irritado.

—Sim, senhor Hallas. – respondeu temerosa, não ousando encará-lo e apertando o passo com cuidado para não derrubar nada.

Era possível notar que a mulher mancava, mas o vestido velho escondia o motivo por trás disso.

—E é bom que saiba, Ada. Se você errar alguma coisa na comida, qualquer coisa mesmo, vai receber uma punição da qual nunca se esquecerá.

—Sim, senhor Hallas. – disse ainda mais temerosa.

—Tsc. Emberlana suja! – resmungou ele.

Quando chegaram a uma casa amarela na esquina de uma estreita rua de pedra, o homem abriu a porta e Ada entrou logo depois dele. O primeiro cômodo era uma sala de estar em tons escuros de azul, onde duas pessoas estavam sentadas em um sofá bordô, enquanto uma terceira repousava na poltrona de mesma cor defronte. A escrava emberlana passou por todos eles carregando as sacolas e seguiu direto pelo corredor rumo a cozinha, com uma justificável pressa. Já o homem sorriu, dizendo em um tom bem mais gentil:

—Não vai demorar nada, minha irmã. Você comerá uma comida tão boa quanto a do nosso pai.

Das duas pessoas que estavam acomodadas no sofá, uma era Heler. Seus olhos castanhos, iguais aos do homem, seu irmão e anfitrião, estavam recheados da mais pura indignação. Entretanto, ao contrário do que se esperaria, ela parecia comedida.

—Por que não vai ajudar aquela mulher, Heron? – questionou a garota.

—E por que eu faria isso? – retrucou o irmão em tom de desprezo.

Na poltrona, uma mulher loira, rosto fino, muito magra e com um nariz arrebitado revirou os olhos, claramente desgostosa diante do que acabara de ouvir.

—Ada sabe perfeitamente bem como cumprir suas obrigações. – disse ela, lançando um olhar severo a Heler – E não deveria insinuar que seu irmão, meu marido, se misture com os porcos.

A segunda pessoa sentada no sofá era um homem alto, de ombros largos sobre os quais repousava um manto ligeiramente encardido, bugigangas presas na cintura, dentre elas alguns canivetes, cabelos grisalhos, olhos castanho-claros e expressões severas, que estavam especialmente acentuadas naquele momento.

—Eu não esperava que o pequeno Heron tivesse se tornado esse homem tão competente. – disse Nicolas sarcástico – E que mulher adorável você escolheu como esposa.

—Mais uma palavra e eu te coloco pra fora, mercador. – advertiu Heron.

—Aproveita e me expulsa também, maninho.— replicou Heler com um sorriso debochado.

Nicolas não abaixou a cabeça, nem tampouco desviou o olhar daquele que estava de pé o encarando cheio de descaso. O clima de tensão foi parcialmente rompido quando um garoto passou do lado de fora e jogou um jornal pela janela da sala de estar. Heron o apanhou, sentando-se ao lado do mercador sem se preocupar em esbarrar nele. Assim que desenrolou, viu na primeira página os seguintes dizeres: “A Cidade Sombria e a esperança tola dos traidores”.

—Vejam só! Os emberlanos daquele lugar imundo que chamam de cidade tentaram mais uma vez atacar o pilar do Leste. Se eles querem tanto assim que a Escuridão do Sul entre, por que não pulam no mar de uma vez e nadam até se juntarem aos mortos de Valtara?

—Ninguém entende a cabeça dessa gente maluca, querido. A insanidade deles é tão grande quanto a do regicida.

—Olha, Wenka... – começou Heler com falso tom de doçura – Seu pai é tenente da guarda de Calendria, não?

—Sim! – respondeu a loira cheia de ego – Ele é um dos melhores militares e dono de muitas terras.

Nicolas arqueou uma das sobrancelhas, incrédulo sobre o que acabara de ouvir. Porém, manteve-se quieto por saber aonde a garota queria chegar.

—Eu perguntei porque dias atrás um garoto emberlano me roubou na estrada perto da vila. Queria saber se por acaso ele foi capturado para que eu possa pegar meus pertences de volta.

—Hum... Posso perguntar ao meu pai, cunhadinha. – disse a loira com uma disposição que viria a ser explicada em seguida – Aí você pode assistir ele sendo punido como merece. – sorriu – Esses malditos ratos estão loucos se pensam que vão se meter com a minha família.

Heler sorriu de volta, demonstrando sua enorme capacidade de atuação.

Uma hora mais tarde, o cheiro do almoço já permeava toda a residência e abria o apetite. Assim que chegaram na cozinha e se sentaram à mesa, Ada serviu um por um, começando pelo seu senhor Heron até chegar em Nicolas. Tudo estava realmente impecável, exceto pelas mãos da mulher emberlana, onde alguns de seus dedos tinham sido enrolados por pedaços de pano para cobrir os cortes, algo que não passou desapercebido pelo mercador. Ela apenas aguardava de pé qualquer ordem a alguns metros de onde todos almoçavam. Quase não houveram conversas, exceto pelos comentários maldosos de Wenka a respeito dos subordinados de seu pai.

Mais tarde, enquanto Heler tomava banho e a dona da casa ficava observando a vida alheia pela janela da sala de estar, o mercador seguiu até a cozinha para pegar um copo d’água. Chegando lá, se deparou com Heron tapando a boca de Ada, ao mesmo tempo em que acertava suas pernas expostas pelo vestido suspenso com um chicote.

—Muito sal! Eu disse! Eu te avisei! – rosnava para ela, que estava de olhos fechados e chorando.

Nicolas rapidamente foi até ele, o segurou pelo colarinho e o jogou contra a parede, rosnando tal como o outro há pouco fizera:

—Seu pai não criou um monstro! Seu filho de uma puta! Onde você aprendeu a ser esse lixo?

—Me solta! – vociferou Heron, acertando uma joelhada na barriga do mercador que foi ao chão.

Heler chegou a cozinha de cabelos molhados e um pente na mão. Ao se dar conta da situação, ficou perplexa e não sabia se ajudava Ada ou Nicolas, acabando por ir ao socorro da emberlana que estava no chão, tremendo e chorando.

—Você não sabe nada sobre mim, seu vendedor de porcarias imundo! – e cuspiu no outro.

—O que está acontecendo aqui? – questionou Wenka em alta voz ao chegar na cozinha.

Nicolas puxou a perna de Heron e o derrubou, então subiu em cima dele apoiando o joelho em seu peito e começou a lhe desferir vários socos. A loira gritou horrorizada, ao passo em que Heler ignorava a tudo para rasgar a manga da camisa e usar como faixa nos tornozelos de Ada.

—Larga o meu marido! Heler, manda seu amigo parar! – apelou a mulher desesperada.

—Você sabia disso? – indagou a garota, ainda ignorando o que acontecia atrás de si.

—Sabia de que? Seu irmão está sendo espancado!!!

—Tudo bem, senhor Nicolas, acho que já deu. – após dizer isso, o mercador parou e saiu de cima de um ensanguentado Heron, bufando de raiva – Responde, Wenka! Você sabia? – perguntou incisiva, apontando para Ada.

—Tanto faz! É só uma escrava! Ele precisa extravasar! – gritou a loira histérica.

Heler ajudou Ada a se levantar, andou até a mesa e apanhou um prato, quebrando ele na cabeça de Wenka que desmaiou em seguida. Depois andou até Heron, se abaixou e o olhou. A garota estava repleta de lágrimas, mas sua expressão não era de fragilidade... Era de decepção.

—Não vou contar isso ao nosso pai. Ele não merece saber que tem um monstro como filho. – enquanto falava, seu atordoado irmão apenas tossia e a encarava – Continue procurando emberlanos para escravizar. Seja um legítimo filho da puta de Calendria! Quero ver se vai ser assim tão macho quando o rei deles retornar. Você... – soluçou, mas se manteve firme – Você me dá pena!

O mercador e a garota levaram Ada até o lado de fora após se certificarem de que nenhum guarda passava por ali. Haviam apenas curiosos, alarmados diante da gritaria de antes. A mulher emberlana subiu na carroça e Heler a acompanhou, enquanto o Nicolas rapidamente se posicionava e comandava os cavalos para saírem dali com urgência.

Naquela tarde, quando chegaram a rua principal que dava acesso aos grandes portões da capital, o homem avistou quatro guardas na entrada. Notou que somente uma das torres possuía vigia e que este observava o exterior. Assim que o veículo se aproximou, um dos guardas deu ordem de parada.

—Vamos inspecionar sua carroça, senhor. – anunciou o militar que tinha um brasão com uma flor esculpida no peito da armadura, mas não carregava manto algum.

Sem saída, tudo o que podia fazer era torcer para que sua sorte fosse muito grande a ponto daquele sujeito não estranhar aquelas que estavam lá atrás. Assim que ergueu o pano e viu o que havia no interior, o guarda franziu o cenho e perguntou:

—Quem são vocês? Para onde estão indo?

—Heler, senhor. E essa é Emerine, minha irmã. – sorriu – Estamos indo para a Vila dos Aires.

—Hum... – ele olhou para um dos tornozelos desprotegidos de Ada – Você! Como conseguiu esses ferimentos?

—Vejamos... – intrometeu-se uma mulher baixinha, chegando por detrás do militar. Sua voz soava melodiosa, seus olhos fitando as duas no interior do veículo eram pequenos e puxados, assim como tinha espirais decorando seus cabelos prateados – Então este é o motivo de congestionarem os portões?

—Lady Yeshi! – saudou o guarda com absoluto respeito, curvando-se ligeiramente – Eu sinto muito pelo transtorno. Acontece que por medidas de segurança, nós precisamos...

—Precisam deixar de ser tão paranoicos! – repreendeu a chefe dos Yeshi – Se essas belas moças são o problema, eu me encarregarei delas. Agora parem de bloquear o caminho, é uma ordem!

—Sim, senhora!!!

Nicolas respirou aliviado, deixando para raciocinar a respeito depois de cruzar os portões. Heler e Ada estavam tremendo, esta última muito mais. Não demorou para que a carruagem vermelha de Lady Hina Yeshi ficasse lado a lado. Pela janelinha, a mulher olhou para o mercador e gesticulou com o dedo indicador para que a seguissem.

Em uma estrada a se perder de vista em meio ao estepe, durante uma tarde nublada de primavera, dois veículos puxados cada qual por dois cavalos seguiam um atrás do outro. Não havia nada nas proximidades além da vegetação, nem sequer alguém em qualquer direção. De repente, a carruagem perdeu a velocidade até parar, obrigado Nicolas a fazer o mesmo. Lady Yeshi desembarcou após seu cocheiro abrir a porta.

—Obrigada. – agradeceu já se precipitando em direção ao mercador – Diga a elas para virem até aqui, meu rapaz.

—O que a senhora pretende? – ele indagou inflexível.

—Nada de ruim, eu garanto. Concorda que tive a oportunidade perfeita para prejudica-los se eu quisesse? Vamos, meu rapaz. Tenho uma longa viagem para fazer. – alegou impaciente.

—Vocês duas... Pra fora! – ordenou o homem, que também desceu da carroça.

Heler e Ada se apresentaram com olhares desconfiados. A primeira o tempo todo ajudava a outra, que em algum momento após saírem de Calendria tirou dos cabelos grandes e pretos o pano sujo e os soltou. Hina abriu um sorriso ao vê-las:

—Você é emberlana, não? – indagou a Ada – Qualquer um percebe só de ver.

—Se vai começar com o seu preconceito, é melhor seguir viagem. – cortou Heler com rispidez.

—Por Nymira! Não! – protestou Hina – Não quis dizer nesse sentido, menina! Mas olha só pra ela, está toda machucada! O que deu em vocês para tentarem cruzar os portões repletos de guardas nessas condições? Seus tontos!

—E por onde mais sairíamos, senhora? – questionou Nicolas – Seria uma questão de tempo até começarem a nos procurar.

—Existem mercenários capazes de entrar e sair de Calendria por outros meios. Achei que um mercador como você soubesse disso, meu jovem.

—Não está mais aqui o homem que confia tesouros a mercenários. Além do mais, esses mercenários também são calendrinos que odeiam emberlanos como ela. O que me faz pensar... Quais são suas intenções, senhora? Por que justamente alguém do seu nível nos ajudou?

A mulher baixinha abriu um sorriso enigmático, dando as mãos que, diga-se de passagem, estavam cobertas por luvas pretas de aspecto caro.

—Porque eu assim o quis. – respondeu tombando ligeiramente a cabeça com um ar levemente insolente – Não posso libertar todos os emberlanos das crueldades as quais estão submetidos, mas posso ajudar aqui e ali.

Ada, no entanto, mancou até conseguir se curvar diante de Hina, para a perplexidade de Heler e Nicolas.

—Serei eternamente grata, minha senhora. – disse a emberlana prostrada.

—Levante-se, vamos! – pediu a mulher, estendendo a mão enluvada para ajuda-la – Grata pelo que, menina? Meu reino escravizou você e o seu povo, não seja boba! – repreendeu, sorrindo levemente em seguida – Você é tão bonita, mas está terrivelmente marcada por dentro e por fora. Que Nymira possa reparar o mal que Calendria lhe causou.

O mercador e a garota assistiam a tudo intrigados, se entreolhando algumas vezes. Ada, enfraquecida, assentiu com a cabeça e voltou a se aproximar de Heler. Lady Yeshi, por sua vez, lançou um olhar para o cocheiro que foi rápido em entender e tão logo abriu a porta da carruagem. Antes de adentrar, ela olhou para os três e disse:

—Aurora pode ser um bom lugar para ir a essa altura. E não voltem a Calendria, nenhum de vocês! Não preciso dizer o quanto isso seria estúpido. – deu as costas, mas rapidamente tornou a fita-los – Ah! Já ia me esquecendo. Você, filha de Heitor Hallas... Mande lembranças ao rapaz. – outra vez sorriu de maneira indecifrável, adentrando ao veículo e partindo.

—Como ela...

—Não temos tempo, Heler. Você e Ada, subam logo! – ordenou Nicolas, subindo apressadamente no banco dianteiro da carroça.

Ao contrário da carruagem já distante, o mercador deu meia volta e retornou pela mesma estrada até certo ponto, porém virou à sua direita, indo em direção as longínquas Cordilheiras do Oeste.

Após uma hora de viagem, Ada adormeceu em meio aos panos e bugigangas no fundo da carroça, enquanto Heler sentou-se ao lado do condutor ranzinza que parecia realmente empenhado em se afastar das principais rotas calendrinas.

—Ela sabe quem sou eu. – refletiu a garota cismada.

—Ela sabe sobre todos nós, inclusive Gabriel. – explanou ele sem perder o foco do trajeto – E eu estou indo justamente para o destino sugerido por ela. Se for uma armadilha, estaremos caindo nela como idiotas.

—Como é possível que ela saiba tanto? Será que foi ela que mandou os militares atrás dele? Talvez saiba onde ele está preso, mas eu não quis perguntar, fiquei com medo de ferrar com tudo.

—Fez bem. De qualquer forma, deu na mesma, porque a velhota já sabia. E por que isso de ir para Aurora... – ele arregalou os olhos e a encarou – Porra, tá na cara! O pirralho tá lá!

Ao se dar conta, a garota fechou os punhos e não escondeu o ar de esperança em seu rosto.

—Mas se ele estiver lá, senhor Nicolas... Então talvez não seja ela a pessoa por trás da captura dele. Não importa! Não importa! Só vamos logo para Aurora perguntar isso diretamente para aquele idiota! – disse animada, porém logo cobriu a boca e olhou para trás, ficando aliviada por não ter acordado Ada – Ela deve ter vivido um inferno que eu não consigo e não quero imaginar.

—Todos eles, garota. Todos eles... Sabe, eu não gosto do Rei Negro e acho que ele foi um belo filho da puta psicopata... Mas isso não me faz odiar os emberlanos. Ser calendrino não torna meu pau maior que o deles.

—Fico feliz por você não se lembrar que está falando com uma mulher. – disse Heler sarcástica.

—Ér... Desculpa, escapou. – pediu em tom de voz baixo, recebendo silêncio em troca. Confuso, olhou para Heler e viu que ela estava com uma expressão sonhadora – Tá apaixonada pelo moleque?

—Não, não. – respondeu sem pestanejar – Não é isso que sinto em relação a ele. Gabriel Eichen foi meu amigo e protetor. Eu diria que é como um padrinho que eu nunca tive, sabe.

—Nunca vou entender como você consegue enxergar o Eichen naquele garoto. – admitiu o mercador, focando na estrada.

Heler nada disse, apenas sorriu enquanto se lembrava das palavras de Gabriel antes de partir da Vila dos Farrapos: “Se quer tanto assim me ajudar, eu aceito.” Ela pegou um cantil d’água perto dos pés de Ada e bebeu dois goles. “Mentiroso. Você nunca aceita ajuda.” E sorriu ainda mais.


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