O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 11
Escolhas




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Não tinha conseguido dormir a noite. Seus pensamentos borbulhavam como água fervente, fosse pela vida na Terra cada vez mais distante ou pelos crescentes problemas naquele mundo. Encontrar Merlin já não era uma boa ideia, pois se o mago fosse hostil como Walther e os outros, ir até ele seria o mesmo que cortejar a morte. Se? Não tinha um se. Merlin foi o responsável pela queda do Rei Negro e ver alguém com o mesmo nome, carregando na alma seu antigo inimigo... era óbvio o que aconteceria. E o que dizer sobre essa realidade? Carregava dentro de si a alma de alguém assustador, que lhe deixava perturbado só de olhá-lo nos olhos. Ah, aqueles olhos tão cheios de maldade, de ira, ardendo como chamas, um grande lago de sangue.

“É perigoso que continue treinando com Aelin.” As palavras do rei ecoavam em sua mente. Era terrível saber que inconscientemente acabou representando um perigo a elfa e aos outros. Terrível, sim... A ideia de porventura ter machucado a família de Leeta. Ora, também poderia ter colocado em risco Heler, o senhor Heitor e o senhor Nicolas. Só que parando para pensar, quando ainda estava com eles, a outra alma ainda permanecia adormecida.

“Se aquele desgraçado do Decarlo não tivesse feito aquilo comigo, nada disso estaria acontecendo.”

Quando o sol raiou sobre o palácio, Leeta entrou cuidadosamente no quarto e percebeu na hora que o garoto estava adormecido. Ela logo entendeu que diante da carga que estava sobre ele e depois do que aconteceu, com certeza tinha passado a noite em claro. A elfa cuidou em fechar as cortinas através de gestos delicados com as mãos, movendo-as sem para tanto tocá-las, tendo por mesmo princípio o que fizera quando eles se conheceram na Floresta Lazúli. Então fechou a porta com cuidado.

—Está dormindo. – contou ela durante o café da manhã.

—Entendo. – disse o rei, que não precisou pensar muito para saber o porquê de tanto cansaço.

—Sylie, querida. Por favor, peça a todos que evitem fazer barulho próximo ao quarto de Gabriel. – solicitou gentilmente a rainha enquanto passava um pouco de mel sobre a fatia de pão.

—Agora mesmo, majestade. – respondeu a elfa, se retirando.

—Amanhã, vou leva-lo para treinar nas Cordilheiras do Oeste. É o lugar perfeito para que possamos fazer isso sem preocupações.

—Ainda que sejam terras próximas, tem certeza sobre andar por aí com ele para além das fronteiras de Aurora, querido? Os humanos de Calendria podem estar procurando nos arredores.

—Eles com certeza já sabem que Gabriel está conosco, minha rainha. Alabas o estava trazendo e o humano das duas espadas por pouco não o capturou. É questão de tempo para que tentem alguma coisa, mas para o bem deles, é melhor que tal tentativa seja inteligente. – disse Yliel estreitando os olhos – E não podemos fazer isso em Aurora. Se estivermos próximo do palácio ou da cidade, arriscaríamos quem estivesse por perto. Já a nossa querida floresta sofreria muitos danos, seria injusto e um total desrespeito com Nymira.

—Papai... – tentou Leeta em voz baixinha e uma carinha pidona.

—Sim, pequena? – sorriu Yliel, tomando a fatia de pão das mãos da rainha e recebendo um tapa dela como punição.

—Eu queria acompanhar vocês. – ao perceber as reações de Aelin, Sael, Erilla e do rei, Leeta rapidamente começou a pedir calma com gestos apressados de mãos – Espera! Eu sei! Eu sei que é arriscado, papai! Mas eu me conformaria em olhar de longe, sabe. Eu... Poderia ficar perto da carruagem, assistindo de um lugar mais alto. Por favor... Eu vou ficar bem...

Yliel levou uma das mãos ao rosto, sentindo-se pressionado a tomar uma difícil decisão. Geralmente não permitiria, porém sempre sentiu dificuldade em negar algo para Leeta, porque embora tivesse o péssimo hábito de andar pelo reino sozinha, ainda assim era uma filha obediente, dedicada e prestativa, além de amorosa.

—Está bem. Pedirei para pararem a carruagem em um terreno elevado. – suspirou, arrancando risinhos satisfeitos da rainha Erilla.

—Eu também quero ir. – disse Sael.

—Nesse caso, vamos todos. – animou-se Aelin.

—Negativo! – se impôs o pai – Sua mãe vai ficar e cuidar do reino, enquanto vocês cuidarão dela. Existe a possibilidade dos calendrinos virem enquanto estivermos fora. Se isso acontecer, já sabem o que fazer.

—A floresta. – respondeu Sael.

—A floresta. – confirmou o pai, satisfeito.

Naquele mesmo dia, quando a lua minguante surgiu no céu sobre o palácio, Gabriel caminhou até os jardins vestindo roupas élficas em tons de azul. Ele observou os vestígios do que tinha acontecido durante seu treino com Aelin; a grama amassada era o que tinha sobrado, pois todo o resto foi devidamente consertado e colocado de volta no lugar.

—Não é culpa sua. – disse Leeta baixinho logo atrás dele.

—Que susto, Leeta! Não te ouvi chegando. – admitiu tentando um sorriso, mas falhando miseravelmente.

—Me ouviria se não estivesse tão absorto em pensamentos. – provocou, girando como uma bailarina e ficando diante do garoto – Precisa parar de pensar tanto.

—Eu bem que queria. Desde que cheguei nesse mundo, nada tem acontecido do jeito que eu quero. Me sinto em um barco sem velas no meio do oceano, completamente à deriva.

—Que tal procurar os remos? – brincou a elfa, levando a canhota aos cabelos alvos para afastá-los e revelar uma de suas orelhas pontudas – Amanhã, meu pai te levará para treinar nas Cordilheiras do Oeste. Ele está determinado a te ajudar, Gabriel.

—Eu sei e me sinto culpado por isso.

—Culpado?

—Estou causando transtornos ao rei e a todos vocês. Mas... Se eu sair de Aurora do jeito que estou agora, vou morrer. Sei que é egoísta pensar em mim e jogar em vocês os meus problemas. Talvez se eu fosse ele... Se eu fosse poderoso como o outro eu...

—Ele era realmente muito poderoso pelo que dizem. Porém, como isso o livrou de tanta desgraça? Não é nosso poder que dita quem somos, são as nossas escolhas, Gabriel. – ela ergueu ambas as mãos de maneira majestosa, ao passo em que as folhas secas do jardim começaram a levitar e a girar ao redor deles de maneira harmoniosa – Poder e ser andam juntos, mas um não define o outro.

Ele sorriu mediante as palavras que escutara, erguendo uma das mãos para o alto e apanhando uma das folhas secas. Ela abaixou as mãos e seus olhos azuis se fixaram nos verdes do garoto.

—Se sair de Aurora do jeito que está, sim, você morrerá. Aqueles que estão te perseguindo, fazem isso pelas escolhas da sua vida passada. Além disso, nós estávamos te esperando, então como pode fazer de si mesmo um fardo? Você é o nosso vigia. E sem o vigia, estaremos perdidos contra o grande mal que espreita do sul.

—Tsc. Estão me superestimando.

—Você está se subestimando. Sabe o que aconteceu ontem nesse jardim?

Ele olhou da grama amassada para a elfa, claramente interessado em saber, muito embora tivesse teimado em não perguntar por constrangimento.

—Me diga... Me diga, Leeta. Você viu tudo o que aconteceu?

—Desde o início. Vocês estavam treinando e minha irmã começou a te ensinar sobre a aura. Você deveria medir a sua, porém instantes depois se descontrolou. Em volta do seu corpo, uma densa energia emanou provocando fortes ventos. Minha irmã tentou ir até você para te despertar, mas acabou arremessada nos braços do meu pai que acabava de chegar às pressas ao lado da minha mãe e Sael. Houve barulho e uma pressão esmagadora sobre os nossos corpos, até que ele, meu pai, interviu e controlou sua aura, mas isso demandou tempo e muito esforço.

Gabriel suspirou, fechando os olhos por alguns poucos segundos.

—Eu vi uma chama no meu interior que ia ficando cada vez maior, não parava de crescer. Não ouvi, nem senti o vento, só conseguia ouvi-la crepitando cada vez mais perto. Tenho certeza que tudo isso é culpa dele.

—É bem possível. O que sabemos sobre a aura é que está atrelada a energia vital, que por sua vez tem uma forte relação com a alma. E através disso, com muita dedicação, é possível se conseguir certos feitos. – explicou a elfa ao mesmo tempo em que fazia seus cabelos brancos levitarem de um jeito gracioso.

—Então eu herdei a aura dele, com a diferença que eu não sei controlar?

—Acredito que as coisas ficarão mais claras à medida que você for descobrindo do que é capaz. Por ora, para de ser tão duro consigo mesmo, foque no seu treinamento com o rei que, vale ressaltar, não será nada fácil. Aceite de uma vez que é bem-vindo em Aurora. Os Eichen estão diretamente conectados aos emberlanos, que por sua vez são nossos amigos. Embora aqueles que vivem na Cidade Sombria e os que foram escravizados em Calendria não nos vejam com bons olhos, chegará o dia em que entenderão.

—O que eles entenderão?

—Que Aurora não os ajudou porque durante esses vinte anos, estávamos esperando por você. Quando o Rei Negro caiu, meu pai quis invadir Calendria e impedir que mais catástrofes acontecessem. Ele só não o fez porque minha mãe recebeu a profecia. Nessa situação, decidiu manter segredo para evitar que os inimigos também ficassem a sua espera.

—Mas eles sabiam, Leeta. Eles sabiam que eu tinha chegado a este mundo. Se seu pai guardou esse segredo, como Walther Di Blanco descobriu?

A expressão serena desapareceu do rosto da elfa, sendo substituída por uma de preocupação.

—Esse segredo ficou confinado dentro da família real. Por favor, não duvide de nós.

—Não! Espera, eu... Não foi isso! – apelou ele por ter sido mal interpretado – Não estou desconfiando de vocês. Só o que não entendo é como Walther descobriu! Será que foi através de Merlin? Ele matou o outro eu, não? E dizem ser muito poderoso. Não entendo sobre magia, nem nada disso. – estava falando tão rápido que só parou quando sentiu as mãos de Leeta em seus ombros. Isso o acalmou.

—Não sabemos como o humano calendrino descobriu. E se o grande mago Merlin estiver por trás destes acontecimentos, logo ficará claro. Por ora, respire. Atormentar-se hoje não o ajudará no amanhã.

Ela deu um passo para trás e olhou para o céu com poucas nuvens, insuficientes para cobrir uma bonita lua minguante. E ele, por sua vez, apenas a observou, percebendo que isso o acalmava.

Pela manhã, logo após o café, Gabriel foi até o quarto buscar sua espada e a pendurou no cinto que compunha seus trajes élficos, hoje em tons cinzentos. Conforme tinha sido orientado pela rainha, deveria se encontrar com o rei Yliel nas grandes portas de entrada do palácio e para lá seguiu. Ao chegar, viu uma carruagem bem diferente daquela em que viajara ao lado do mercador Nicolas. Um coche em tom perolado, com contornos dourados que se estendiam até o primeiro eixo de rodas grandes, bem como ao eixo dianteiro de rodas pequenas. Dois tigres estavam parados, aguardando para puxar o veículo. E caminhando imponentemente em volta deles, uma terceira fera; era aquele que tinha visto no dia em que chegou ao palácio, branco e de listras negras como Kaar, porém coberto por uma armadura dourada. Sobre a cabeça deste Yliel acariciou e nisto, Gabriel compreendeu que aquele era de fato o tigre do rei.

O garoto sorriu para a rainha, para Aelin e Sael, embora este por alguma razão não tivesse retribuído, meramente acenando com a cabeça. Contudo, procurou por Leeta e não a encontrou até seus olhos perpassarem pela porta aberta. No interior do coche, ela já os aguardava. Ele sentiu um frio na barriga ao entender que a elfa também iria.

—Vamos, amigo. – pediu Yliel com a canhota sobre o ombro do garoto, enquanto que com a destra indicava a porta da carruagem.

—Se esforce, humano. – disse Aelin inflexível, como se o advertisse para não cometer os erros que tinha cometido durante seu breve treinamento nos jardins.

—Manterei meus pés firmes. – respondeu ele, arrancando um riso sutil dela.

Quando os tigres puxaram o veículo e este começou a se mover suavemente sobre o gramado por entre as muretas de pedra, o garoto notou que havia um conforto consideravelmente maior do que experimentou na carroça do mercador. E isso era óbvio, afinal, estava viajando no veículo da realeza élfica, por sua vez conduzidos não por cavalos, mas pelos grandes e bonitos felinos de pelos amarelos e listras alaranjadas. “Isso é surreal.” Tinha voltado a apreciar os detalhes daquele mundo e até foi capaz de sorrir enquanto olhava pela janela. Leeta e o pai se entreolharam, satisfeitos ao perceberem que o rapaz estava se sentindo à vontade.

—Gosta do nosso reino, amigo?

—É o lugar mais bonito que já estive. – respondeu sem pestanejar, até que olhou para frente e não viu ninguém. Se lembrou de onde Nicolas ficava para conduzir a carroça e franziu o cenho – Senhor, onde está a pessoa que conduz os tigres?

—Não há necessidade que alguém os conduza. – respondeu o elfo simplesmente – Eu pedi a Troh e a Umi que nos levassem até a Cordilheira do Oeste. – completou com naturalidade.

—Ahn... – o garoto sacudiu a cabeça, tentando processar aquilo – Troh e Umi são os... tigres? Aqueles ali na frente?

—Sim. – respondeu Leeta sorrindo, que diferentemente do pai, entendia a estranheza de Gabriel diante da situação – Assim como Kaar e todos os outros, Troh e Umi estão conectados a nós. Às vezes precisamos pedir, depende do quanto estamos ligados um ao outro. Kaar já não fica mais confuso quando eu simplesmente desejo ir a algum lugar, ele sente meu coração.

Boquiaberto, o garoto tornou a olhar pela janela e deixou escapar um breve riso.

—Vocês não param de me surpreender.

Yliel fez menção de dizer algo, mas imediatamente se conteve. Ele considerou que falar aquilo poderia arrancar a expressão de encanto e felicidade do seu considerado amigo humano. Porém, não conseguia deixar de fita-lo e se lembrar... Se lembrar daqueles dias, na companhia do então rei Hectaliel Luyah, seu pai, e também de um homem de cabelos negros, que caiam sobre os ombros largos e tinha do lado esquerdo do rosto uma cicatriz que cruzava da sobrancelha até a bochecha. “Acabou de falar igual a ele, amigo. Suas almas estão cada vez mais entrelaçadas, eu vejo. Que o destino conduza melhor suas escolhas dessa vez, último vigia de Emberlyn.”


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