Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 28
XXVII — Don't waste your time, or time will waste you




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“E como nós podemos vencer

Quando tolos podem ser reis?

Não desperdice o seu tempo

Ou o tempo desperdiçará você”

(Knights of Cydonia — Muse)

 ★

— Não, Ronnie. Não é uma boa ideia. 

— Oh… Tudo bem. 

— Mesmo? 

— Claro! Sem problemas. Mas, só de precaução, não me deixe sozinha numa sala com ele, porque senão a integridade física dele não estará garantida. 

Ronnie

Ela deu de ombros, sentando-se à mesa da cozinha. Ultimamente, Valerie já não se sentia mais tão confortável com a própria presença. Toda a situação, toda a quebra de rotina, fazia com que Valerie se sentisse em alerta em sua própria casa. 

Quando Valerie era uma estenotipista, o tribunal poderia vir a se tornar um local perigoso. Não era uma delegacia, obviamente, e os seguranças no fundo da sala traziam certa medida de conforto. E, de qualquer maneira, o que é que alguém – mesmo que alguém criminoso — iria atentar contra uma mera estenotipista?

Agora, sentir-se em pânico dentro da própria casa era algo absurdamente distinto. 

Valerie já amava a irmã normalmente. Mas, com toda aquela camada de proteção extra, Valerie seria capaz de chorar a qualquer instante. Ou matar e morrer por ela. Bem, dependeria do dia. 

— Tudo bem — Veronica ergueu as mãos em defensiva, abrindo um sorriso malicioso. — Foi só uma ideia e a vida é sua, é claro que eu não vou bater no Frank. 

— Acho bom mesmo. Enfim, e… Você entrou mesmo em contato com aquele soldado?

— Bom, primeiramente, ele não é mais soldado. Mas, sim, oras… Ele não teria dado o cartão para contato se não quisesse contato. 

Valerie sorriu e aquiesceu com apenas metade da atenção. A outra metade concentrou-se em colocar a toalha na mesa e servir os bolinhos de chuva. Tradição que incluía a mamãe, quando esta se dava ao trabalho de lembrar que ela era bem-vinda e amada pelas filhas.

Reprimindo um suspiro, Valerie se censurou pelo pensamento quase ao mesmo tempo em que o teve. Não era justo exigir que mamãe fizesse parte da vida delas como era antes. Valerie e Veronica já eram mulheres adultas, com vidas e afazeres próprios. Mamãe também era uma mulher adulta com vida e afazeres próprios.

Por um lado, era maravilhoso vê-la publicar os trabalhos de papai. Valerie sentiu que aquilo tinha lhe dado um novo propósito de vida, além de uma maneira de manter viva a memória de John Bowman. Por outro, sentia intensa saudade das conversas e dos momentos especiais que compartilhava com a mãe. 

A única pessoa que talvez entendesse seus sentimentos conflitantes com relação à Clara. A única pessoa que Valerie não conseguia ler. Victoria Bowman era, em simultâneo, a sua maior certeza e o seu maior mistério.

E não eram assim todas as mães?

— Acho que vai ser bom pra você — Valerie opinou. — Conversar com outra pessoa que não seja a sua irmã chata. Sabe, para variar um pouco. 

Veronica deu-lhe a língua, arrancando um sorriso de Valerie. Como uma criança, Veronica enfiou um bolinho inteiro na boca, ficando com bochechas de esquilo. Valerie sabia que ela fazia aquilo apenas para fazê-la sorrir, porém… 

E não eram assim todas as irmãs mais novas? 

— Tem toda razão — Veronica replicou após engolir o bolinho. — Mas, hum… Se não quer que investiguemos, o que vai fazer a respeito? Deixar como está?

Valerie negou com a cabeça, finalmente sentando-se à mesa. Seus olhos percorreram a sala de estar, identificando todos os pontos familiares – a estante, a poltrona, o telefone e o gramofone, as almofadas e os projetos de tricô iniciados e deixados de lado após algumas horas. Se fizesse algum esforço, Valerie conseguiria enxergar as partículas de poeira sob o gramofone. Não podia dizer que não sentia falta de utilizá-lo mas ainda não era chegada a hora. Ainda não.

— Eu nunca disse que não iria investigar, Ronrom… Mas, se for fazer isso, quero fazer do meu jeito. Mas isso não significa que eu não queira o seu apoio. 

Veronica pareceu satisfeita com a resposta. Já Valerie não teve outra opção além de começar a preparar-se psicologicamente para lidar com um conflito desde aquele minuto. Enquanto Valerie deixava a mente correr para a rota de fuga mais próxima, a mais nova afirmou num tom sério:

— Eu prometi que iria colar todos os caquinhos do seu coração, Valerie Bowman.

— E promessas jamais podem ser quebradas.

— Principalmente nessa família.

— Principalmente entre garotas.

Com um grunhido de aprovação, Veronica abraçou o recipiente com os bolinhos. Promessas jamais deveriam ser descumpridas, e Valerie ainda tinha uma porção delas a zelar. “Não desperdice o tempo ou o tempo desperdiçará você”.

•·················•·················•

Miami, Flórida — agosto de 1979

 

Prendendo os cabelos num coque, Valerie pegou-se desejando que fizesse frio, em qualquer momento, apenas para variar um pouco.

Com os fios ruivos domados pelo elástico de cabelo, Valerie também pegou-se perguntando se ela teria chegado cedo demais para o encontro com o senhor Gerard. Eles tinham combinado de encontrar-se ali uma vez por mês, porém Valerie não tinha nenhuma noção de horários e datas. O senhor Gerard tinha lhe dito que saberia quando eram os seus dias sem Frank – mesmo que aquilo fosse um tanto assustador –, mas caminhar no escuro não deixava de ser desagradável. 

Para não perder tempo, Valerie deixou os lírios de praxe sob a lápide, batendo a poeira mensal dos espaços entre as letras com um espanador. Sentando-se ao pé do túmulo, Valerie suspirou.

— Oi, pai… Você não vai acreditar, mas esse mês estou cheia de novidades. É sobre Veronica. E Frank. E eu também, mas não muito, se colocar as coisas numa balança.

O silêncio foi reconfortante. O farfalhar das folhas era suave, indicando que o verão já estava começando sua despedida com ar triunfal. Valerie girou sua pulseira, contribuindo com a sinfonia.

— Veronica entrou em contato com seu amigo de serviço, Ian… E eu penso que vai ser bom para ela. Aproximar-se por uma dor em comum. Você sabe como ela é difícil para se abrir. Nesse caso, penso ainda que muito dessa repressão com relação à dor de sua perda seja por minha culpa. Direta e indiretamente.

Valerie deu de ombros para si mesma. Após uma década, era relativamente mais fácil lidar com as perdas. Ela não era uma pessoa forte, era uma pessoa conformada. Sabe-se lá qual era a definição de força naqueles dias, contudo. Valerie sabia que não poderia encaixar-se em quaisquer que fosse.

— Veronica está determinada a descobrir o que há de errado com Frank. E a intenção dela é das melhores, mas… simplesmente não posso aceitar. Já permiti por tempo suficiente que todos cuidassem de mim. Já é passada a hora de viver por mim mesma, uma vez na vida. Voltar a ser a irmã mais velha.

O pingente de sol pareceu reluzir ainda mais à luz do sol. Valerie não sabia se deveria entender aquilo como um sinal ou permanecer em sua lógica teimosa. Um pouquinho de intuição cai bem, ela cedeu. 

— Acho que eu… Não quero mais estar com Frank, independentemente de ele estar escondendo algo ou não — Valerie despejou as palavras, sentindo o alívio imediato por pronunciá-las em voz alta. Ela não tinha se dado conta de que apenas pensar sobre aquilo causava-lhe arritmias. Quando o pior já tinha passado, Valerie não era mais capaz de refrear a língua. — Não parece certo. Eu detesto como isso soa dito fora da minha cabeça, mas é verdade que esse casamento não tem serventia. Para mim, ao menos, não mais.

Ela deixou os ombros caírem, baixando a cabeça para dar um descanso ao pescoço. 

— Sempre que me pergunto o porquê de estar ao lado de Frank, a resposta é… “não sei” — Valerie sussurrou. — Eu não sei e… Da forma como andam as coisas, também não encontro uma resposta para daqui um ano ou cinco. Sequer para o final deste ano.

Valerie arrancou um montinho de grama do chão, analisando-o até a raiz. Concluindo a linha de raciocínio, ela murmurou:

— Estou farta de me sentir culpada. Eu quero… Quero me sentir feliz de novo. Eu já me senti feliz uma vez na vida. Tenho certeza de que posso aprender a fazer isso de novo. Não é bem como andar de bicicleta, é? 

Ela riu baixinho, devolvendo a grama para o chão. 

— Meu coração sempre floresceu, mas agora parece terra infértil e seca… Isso não está nada certo, papai. Eu quero… Eu quero voltar a florescer. Quero dividir o meu amor, e não reprimi-lo… Para mim e para os outros… 

Valerie respirou fundo, olhando ao redor do local. Foi com imenso alívio que avistou o senhor Gerard e Kurt caminhando pelo jardim, com o tipo de paz que as pessoas encontram apenas em cemitérios. Ela apressou-se em levantar, sentindo a urgência dos minutos bater à porta. Trocando o peso dos pés, ela concluiu: 

— Sei o que devo fazer dessa vez. Só… Espero ter a coragem necessária para seguir em frente. Acho que… Que acabamos o nosso boletim mensal, papai. Hora de dizer adeus, por ora… Até a próxima. 

Com relutância, Valerie passou os dedos pelo segundo nome na lápide. Clarissa Ortiz, 1969-1969. Não ousava pronunciar o nome dela em voz alta. Não naquele dia. Ainda não.

Em quantas décadas ela seria capaz de enfim conseguir falar sobre Clara sem sentir que ela era uma âncora que a paralisava, quando uma vez tinha sido seu porto seguro? Como poderia lembrá-la sem a dor dilacerante? 

— Até a próxima, querida. 

Bem a tempo, humano e cachorro aproximaram-se dela e Kurt fez festa ao reconhecê-la, abanando o rabinho e o corpinho delgado que o acompanhava. Valerie não pode deixar de sorrir com aquilo – em algum momento, Kurt e Valerie tinham estado em clima de hostilidade, mas era impossível nutrir mágoas de um dachshund por tanto tempo. 

— Olá, vocês — Valerie sorriu, abaixando-se para acariciar a bolinha de pelos. — Senhor Gerard, é um prazer revê-lo… Devo dizer que estou surpresa por ter me encontrado! 

— Ah, senhora Ortiz, não há nenhum segredo nisso, na verdade — ele riu suavemente. — Quem me mantém informado de seus planos para o final de semana sem seu esposo é a sua irmã. 

Valerie gargalhou, incrédula com a simplicidade da questão. É claro, eles ainda eram vizinhos, era bem mais fácil para Veronica fazer uma breve visita ao vizinho. Ah, aquela pequena delinquente…! 

O senhor Gerard abriu um sorriso compassivo, concordando com a cabeça como se fosse capaz de ler os pensamentos dela. Daí, ele indicou o banco da conversa anterior e ambos tomaram seus lugares, com Kurt fazendo companhia para eles. Não muito disposto a conversar, no entanto, o dachshund apenas deitou-se aos pés do dono e suspirou. 

— A vida dele é tão difícil — Valerie riu, indicando o leal companheiro do vizinho com a cabeça. — Adoro quando eles suspiram desse jeito! 

— É mesmo bastante engraçado — o senhor Gerar sorriu e retirou o chapéu que usava. Mesmo já tendo saído de moda, de alguma forma a mera possibilidade de imaginá-lo sem um chapéu parecia inadequada. — Imagino que ainda queira ouvir o restante da história?

Valerie assentiu efusivamente, bem mais do que gostaria de deixar transpassar. Ultimamente, seu anseio juvenil de consumir história voltava forte como as correntes de uma maré. Retomar o hábito da leitura ainda era um alvo a ser alcançado, e custoso para sua nova rotina de trabalho. Valerie, no entanto, achava que aquela poderia ser sua grande oportunidade. 

— E você se recorda de onde tínhamos parado, garotinha? Devo confessar que minha memória anda um tanto enferrujada. 

— O senhor parou no exato momento em que iria me contar como você e Catherine saíram da França e vieram parar na Flórida — Valerie parafraseou, dolorosamente consciente de que tinha repassado a história em sua cabeça vez após vez. — Neste exato momento. 

— Então estava prestando atenção! 

Valerie aquiesceu, permitindo-se sorrir com orgulho da própria dedicação. Para ela, amar as pessoas por trás das histórias era tão inevitável quanto amar as histórias em si. E tudo aquilo graças ao pai dela… 

Não era exatamente de se surpreender que John Bowman continuasse a fazer maravilhas mesmo após tanto tempo de sua morte. 

— Muito bem… Para ser honesto, madame Ortiz, a resposta é menos surpreendente do que parece, mais uma vez. O que aconteceu para virmos até aqui foi a guerra. Ou, melhor dizendo, as consequências financeiras da guerra. Sem comentar em todos… Todos os traumas deixados pela ocupação e pelo serviço.

— Ah… — Valerie mordeu o lábio, ponderando todas suas opções de fala a seguir. Nada do que Valerie tinha passado sequer se aproximava do que o senhor Gerard tinha apenas mencionado por alto. Valerie perguntava-se quando a humanidade iria enfim se fartar de chocar-se uns contra os outros. Mal se findava o Vietnã e o Afeganistão e a América do Sul assumiram esse papel. — Eu mal posso imaginar como deve ter sido… E… É por isso que o senhor usa bengala, hoje? 

Ele aquiesceu, parecendo se recordar de que o objeto de apoio estava ali apenas naquela hora. Valerie perguntava-se como deveria ser ter de lidar com algo tão novo e desafiador num dia, e então terem-se passado trinta anos e aquilo ser intrínseco à sua vida que sequer passasse pela cabeça ter que se lembrar de que aquilo existia. Que era notado por outras pessoas. 

— A bala ainda está alojada aí — o senhor Gerard explicou, despretensiosamente. — As cirurgias naquela época… Bem, era isso ou a amputação.

— E, no caso das amputações, as opções para viver a longo prazo deveriam ser ainda mais escassas. 

— Vejo que a senhora tem o senso de realidade e o de imaginação bem apurados. 

— Eu tento equilibrar as coisas — ela sussurrou, cruzando as pernas. — Por favor, senhor Gerard, continue apesar de minhas interrupções. 

Ele abriu um sorriso ladino, complacente com a impaciência de Valerie. Ajeitando os óculos e afundando a bengala no chão, o senhor Gerard prosseguiu:

— Quando chegamos aqui, descobrimos a gravidez de Catherine. Não foi algo fácil de se lidar. Nenhum dos dois estava pronto para ser pai. Nem fisicamente e nem psicologicamente. Foi um período muito conturbado, de muita fraqueza e força em ambas as partes envolvidas.

— O que o senhor quer dizer com isso…? 

— Quero dizer que, num casamento… Principalmente em um naquela época e naquelas circunstâncias… Exigiu muitas concessões e pedidos de desculpas. E muita, muita tolerância aos dias de fúria provocados pelos traumas de ambos. 

Valerie desviou o olhar, não sendo capaz de evitar sentir uma pontada de inveja. Não era raro aquele tipo de pensamento nublar o dia dela, principalmente nos dias em que Frank vagava pela casa como um fantasma. Era exatamente aquilo que Valerie pensava sobre a ideia geral dos casamentos: tolerar os problemas, e não um ao outro. Se o senhor Gerard notou ou se preferiu deixá-la a sós com as próprias reflexões, Valerie não saberia afirmar. 

— A gravidez… — ela começou, hesitante de medo pela resposta. — A gravidez foi constante? Vocês dois conseguiram…?

— Sim, menina, não se preocupe com isso. Correu tudo bem, do início ao fim — o senhor Gerard afirmou, arrancando um suspiro aliviado dela. — A pequena Lis foi um verdadeiro rompante de alegria em nossas vidas. Nascida em 12 de maio de 1947, uma segunda-feira, faltando apenas uma semana para o início do verão. 

Valerie sorriu, comovida pelo orgulho presente na voz dele. Um pai, principalmente um naquela época e naquelas circunstâncias, que fosse tão orgulhoso de ter tido uma filha era algo raro de presenciar. 

Por incontáveis vezes, Valerie pegava-se perguntando se seu pai biológico teria sido um soldado. A negação veemente de Victoria Bowman em falar sobre sequer um fio de cabelo com relação ao homem sempre tinha acendido um alerta em sua mente e em seu coração. Munida de imaginação e um senso de realidade aterrador, Valerie não descartava a possibilidade de a mãe ter sido violentada de alguma forma. Não era algo exatamente remoto. E se a última grande história fictícia de Victoria Bowman para a filha fosse a própria origem?

Com o passar dos anos e com a ausência do pai – que deveria, em tese, desempenhar aquele papel –, Valerie sentia cada vez mais urgência em cuidar da mãe. De trazê-la para o seu lado e de retomar a amizade que em algum momento fora tão certa e inabalável. 

— Ela estava mais para uma criança da primavera ou uma de verão?

— Verão — ele respondeu sem hesitar. — Verão, definitivamente. Ela era radiante e as noites eram bem longas em algumas ocasiões. Minha pobre Catherine vivia cochilando em qualquer lugar que ficasse disponível.

Valerie riu com suavidade, olhando através das árvores em busca de filetes de sol. Se ele presenciou o magnetismo e persistência de verão descritos sobre Lis, Valerie adoraria conectar-se com aquilo de alguma forma. 

— É irônico por conta da cor do meu cabelo, mas eu sempre fui uma criança outonal — Valerie dividiu, ainda sorrindo. — Mas o verão sempre foi minha estação do ano predileta. 

— Aqui é mesmo um tanto inevitável ter outra estação para adorar — o senhor Gerard contribuiu com a conversa fiada, rindo como Valerie raramente o via fazer. Era mesmo um momento e tanto para guardar na memória. — Além de ser uma cidade portuária e acabar sendo o destino de muitos fugitivos de sua terra natal, esta cidade é belíssima. Então, ficamos. 

O tópico fez com que ela se lembrasse de Frank. Com o coração apertado, Valerie fechou os olhos e se forçou a pensar em quanto deveria ter sido desafiador deixar tudo para trás e recomeçar numa terra hostil. 

Frank ultimamente não era um bom marido, porém ela tinha de reconhecer o quanto ele tinha lutado individualmente para chegar até ali. E se Valerie estivesse contribuindo para o ambiente hostil de alguma forma? Isso era algo a ser investigado. 

Como era difícil não fazer a vida girar em torno de Frank… Ah, por isso ele não poderia perdoá-lo.

— Catherine não voltou a pintar. Não durante os primeiros anos de Lis. E eu não saberia explicá-la o motivo, uma vez que não calcei seus sapatos. Mas, se tivesse de dar um palpite, eu diria que Catherine estava aterrorizada. Em frequente estado de alerta. 

— Aterrorizada…? 

— Oh, bem, sim. Era sua primeira vez sendo mãe, numa cidade desconhecida e com uma bagagem emocional maior do que qualquer mulher de sua idade jamais deveria carregar. 

— É compreensível — Valerie sussurrou, aquiescendo. — E um bebê exige muito tempo e disposição. De… De ambas as partes. Se o pai cumprir com a sua parte.

O senhor Gerard sorriu, parecendo nostálgico. E então, uma pausa se seguiu. Valerie temia ter de esperar até o próximo mês para ouvir o restante de sua vida. No estado em que as relações interpessoais dela estavam, a vida poderia facilmente vincular-se àquela nova dinâmica. Dependerem, até. 

Quando tudo parecia perdido, ele comentou num tom excessivamente neutro:

— E eu receio não ter cumprido minha parte em muitas fases da vida de pai e esposo, madame Ortiz. Portanto, tente levar isso em consideração antes dos olhares de admiração com que você tende a me tratar. Eu sou apenas um homem velho com uma história ou outra para contar. 

A honestidade bruta da declaração atingiu-a no susto. É claro que mesmo as melhores pessoas estavam passíveis de errar - e errar de modo aparentemente irreversível -, mas não deixava de ser desconcertante. 

— Nenhum pai é perfeito… Muito menos as mães. É claro que há alguns que são terríveis, mas… Às vezes, essa perfeição existe apenas na cabeça dos filhos. E dos observadores. 

— Eu compreendo — Valerie murmurou, resignada. — E prometo me lembrar disso no restante da história, senhor. 

Ele assentiu com a cabeça, parecendo satisfeito com a resposta. Resgatando a bengala e apoiando-a no chão, o senhor Gerard coçou atrás das orelhas de Kurt. 

— Catherine voltou a dar voz à sua veia artística quando Lis tinha cinco anos. E, para ser honesto, era um tanto assustador de se ver. Porque ela só pintava. Dia e noite. Dia após dia, noite após noite. Imagine alguém que a senhora ame deixando a própria vida de lado para mergulhar no próprio mundo. Ainda que fosse algo que a pessoa amasse fazer. É tão ruim essa pessoa perder-se na própria tristeza quanto na própria alegria. O equilíbrio… O equilíbrio é essencial para que a mente permaneça sã. 

Valerie desviou o olhar, de alguma forma sabendo exatamente o teor do que ele estava prestes a dizer. Porque ela já tinha assistido àquele filme antes, e tinha detestado o final.

— E… Eu deveria saber naquela época, deveria ter lido todos os sinais, porém… — a voz dele foi morrendo aos poucos. — Aquele foi o começo do fim do que um dia foi a minha Catherine.


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Notas finais do capítulo

*postando um dia atrasada mas postando*



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