Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 27
XXVI — Another step, another stair


Notas iniciais do capítulo

Tenho a ligeira impressão de que os capítulos a partir de aqui vão ficar meio quilométricos, mas espero que me perdoem por isso *emoji de caveira*



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“Peguei o trem, atendi a ligação

Eu não sabia exatamente onde cairia

Ou para onde isso me levaria

Outro passo, outra escada

Nunca saberei se vou chegar lá

Mas apenas talvez…”

(fever dream — mxmtoon)

 ★

Veronica não fazia ideia do que havia passado pela cabeça dela ao sugerir aquilo. Quando reparou, as palavras só tinham descarrilado e agora ela tinha uma nova ocupação. Simples assim. Com exceção de que, ironicamente, não era nada simples.

Uma ligação. Era tudo que precisava realizar. O que a mãe dela costumava dizer? O “não” você já tem.

Quer dizer, o não vinha de graça, agora a humilhação era algo que se conquistava

Ela tamborilava os dedos no cartão guardado com esmero há um pouco mais de dez anos. O papel estava gasto e amarelado, e era com sorte que ainda era possível ler os números esmorecidos. Veronica engoliu em seco, como se a qualquer momento o telefone fosse sair do gancho sozinha e atacá-la. 

Ninguém garantia que ele fosse atender. Ninguém garantia que aquele telefone ainda estivesse em uso. 

Que grande covarde ela era. Veronica não costumava ser daquele jeito, entretanto… Atos de gentileza eram assustadores. Muitos se disfarçavam de atos de pena, e ela temia que os dois estivessem tão intrínsecos que já não saberia mais diferenciá-los. 

Veronica girou os números no velho telefone, sete vezes. Fechou os olhos e aguardou. 

Um toque, dois. Três. 

Ele não iria atender. Deveria sentir alívio ou decepção?

No quarto toque, Veronica estava prestes a devolver o telefone para o gancho quando o escutou.

Alô? 

Veronica engoliu em seco, sentindo as pontas dos dedos tremerem. Quem a comparasse com sua versão aos dezesseis anos, sentiria vergonha. Seu pai sentiria vergonha dela se a visse naquele estado. 

O pensamento atingiu-a como uma bofetada. Não muito diferente de todas as outras vezes em que aquilo acontecia, contudo… Telefonar para o Cabo Taylor e ouvir sua voz tão marcante, ainda que fosse apenas uma sílaba, a catapultou para a ocasião onde o vira pela primeira e última vez em que o vira. Ele, seus olhos escuros-claros, o cartão e o uniforme, Valerie e Clara, e Valerie e o senhor Gerard, e Veronica e Frank, e Veronica e o senhor Gerard, e mamãe… 

E papai, finalmente. A dor aguda que Veronica tanto se esforçava para varrer para debaixo do tapete cobrava seu preço. Chegava a hora em que era preciso livrar-se da sujeira mais aparente porque o ambiente começava a tornar-se insalubre. Veronica já tropeçava em seu tapete imaginário. 

Não, não, aquela comparação não era justa. Não queria – não deveria – pensar no pai como a poeira que escondia debaixo de um tapete. John Bowman era um cômodo inteiro, uma casa inteira, que Veronica sequer tinha coragem suficiente de aproximar-se. E se ela fosse limpar a sua casa de memórias e descobrisse que nada era mais o mesmo? Ou, pior, que nada jamais tinha sido do modo como se recordava? 

Alô? — o Cabo Taylor repetiu, lembrando-a da importância da questão. — Quem fala?

Veronica pigarreou, trocando o telefone de ouvido. Mais um pouco e o suor de seu rosto quebraria o aparelho.

— Desculpe-me. Eu… Bom dia. Eu falo com o Cabo Taylor? Ian J. Taylor? Já faz muitos anos desde que recebi o cartão com esse número, eu não sei se ainda está em uso ou se o título de “Cabo” ainda é válido… 

Do outro lado da linha, silêncio. Veronica só sabia que, quem quer que estivesse ali não tinha desligado - ainda -, caso contrário os bipes já se fariam audíveis.

Por acaso eu falo com a senhorita Veronica Bowman? — ele replicou, após o que pareceu uma eternidade. Veronica não pode deixar de erguer as sobrancelhas em completa surpresa por ele ainda se lembrar dela, nome e sobrenome. Dez anos depois? O pai dela deve ter sido um homem excepcional, ainda mais do que ela suspeitava. — Também devo pedir desculpas. Ainda atende por esse nome? 

— Sim. Sim, eu atendo. Que bom que consegui entrar em contato com você… Com o senhor!

Ele riu, e Veronica imaginou que ele também estava trocando o telefone de lado. Se era difícil para ela entrar em contato com alguém desconhecido – senão, um conhecido no qual a única ligação existente era o pesar pelo falecimento de seu pai –, imagine para ele atender uma “garota” que realmente o ligava após uma provável cortesia retórica. Naquela hora, mais do que nunca, Veronica sentiu a culpa margeando seu coração.

É bom ouvir sua voz, senhorita Bowman. Mesmo que eu esteja, sim, um tanto surpreso com o seu contato. Eu não… Jamais imaginaria um telefonema, após tantos anos. 

— Mal posso imaginar. Eu causo algum incômodo?

De forma alguma. Está com problemas? Precisa de ajuda? 

— De certa forma, sim. Não, também — Veronica suspirou. — O problema é com a minha irmã. Com o marido dela, na verdade. Eu o detesto, para ser honesta. 

Barulhos de tecido remexendo-se. Veronica enrolou uma mecha do cabelo no dedo indicador, torcendo-o como se fosse possível espremer a ansiedade pelos fios. 

— Eu… Na verdade, eu gostaria de saber se o senhor conhece algum, hum… detetive particular que consiga nos nortear nessa jornada. Minha irmã é uma pessoa muito boa, senhor Taylor, e não merece ser tratada com desonestidade. 

Apenas uma pergunta, senhorita Bowman.

— Sim? 

Sua irmã sabe que pretendia fazer essa ligação? 

— Não exatamente. Investigação… Não faz muito o tipo da minha irmã. Eu quero só… Que ela tenha o direito de saber a verdade e, então, tomar a decisão que julgar mais adequada. Valerie é do tipo de pessoa que só aceita o que a vida lhe dá, sem questionar e sem lutar. No entanto, eu vejo um casamento como sendo duas pessoas dividindo uma mesma vida. Frank claramente não está agindo conforme esses termos, e eu não acho isso justo.

Após o discurso tão inflamado, Veronica tomou uma pausa para respirar. Do outro lado da linha, o Cabo Ian J. Taylor deu uma risadinha baixa, gesto que provocou calafrios em Veronica. Teria ela se excedido? Falado demais? Passado a impressão de que estava prestes a invadir a privacidade da irmã apenas por se julgar no direito de fazer isso? Parando para pensar, não estava sendo injusta com Valerie? E se manter-se na ignorância fosse sua forma de lidar com tudo? Perder um pai e uma filha e levar adiante um casamento fracassado não era pouca coisa, afinal.

Não. Não era hora de retroceder. Se ela tivesse que sair como uma intrometida, fosse pelo Cabo Taylor, pela mãe, irmã ou Frank – ah, quem é que se importava com Frank, de verdade? –, que assim fosse. Faria o que fosse necessário pela irmã. Valerie faria o mesmo por ela, ou até pior. Veronica se recordava de quando a irmã se ofereceu para dar uma sova em Jason Goodwin, e ela estava grávida.

Quem sabe possamos tratar disso pessoalmente, senhorita Bowman…? Sinto que a senhorita tem muito a dizer. Poderíamos tomar um café. O que acha?

Veronica assentiu com a cabeça, apenas para lembrar-se no instante seguinte que o Cabo Taylor não podia enxergá-la. Os velhos hábitos não morriam facilmente.

— O senhor mora em Miami?

Sim. Ouvi dizer que abriu uma padaria nova na Collins, é verdade? 

A onda de nostalgia agridoce fez cócegas no coração dela. Ela e Valerie, mudando o caminho para conhecer um lugar novo na Collins. Ah, céus, se Alex tivesse a coragem de dar as caras de novo, Veronica o faria implorar por perdão de joelhos.

— Eu acho que sim — Veronica sorriu. — Está disponível aos domingos? 

Domingo às 16h é um bom horário? 

— Sim. Eu o encontro lá?

Nos vemos lá, senhorita Bowman.

— Maravilha! Eu… Obrigada por aceitar. Isso… isso importa muito para mim e é muita gentileza a sua em ouvir. Realmente, muito obrigada. 

Pela sonoridade, o Cabo Taylor sorriu. Algo naquilo a deixou confortada. Veronica amava a mãe e a irmã ao ponto de provavelmente cometer loucuras por elas, porém era impossível para Veronica ser honesta com relação aos próprios sentimentos. Sempre que ela tentava arranjar uma ocasião adequada para se abrir, Veronica acabava sendo agressiva ou irônica. Falar sobre si fazia com que ela se sentisse irrevogavelmente culpada. Egoísta. Veronica era a irmã forte. Ainda assim… 

Todo mundo sempre dizia que abrir-se com estranhos funcionava porque eles não nos veem com expectativas ou idealizações já estabelecidas em relações. Então, por que não?

Combinado. Até domingo, então. 

Veronica sorriu, aliviada, e devolveu o telefone no gancho. Olhando-se no reflexo do aparelho metálico, Veronica arrumou o rabo de cavalo, prendendo o cabelo com mais firmeza. Era seu horário de almoço e, por mais que ser telefonista não fosse exatamente o emprego de seus sonhos, até mesmo ela tinha de admitir que ele tinha suas vantagens. 

— Chega de corpo mole, Bowman! — o chefe dela gritou, passando por trás dela na área comum dos funcionários. Veronica massageou a orelha, se questionando em quanto tempo ficaria surda em definitivo. — Não quero ver nem mesmo um minuto de atraso em sua folha de ponto!

Ela ensaiou seu melhor sorriso, arreganhando os dentes feito um cachorro. Era como tinha dito. Nada de emprego dos sonhos, mas qual era, de fato?

•·················•·················•

A verdade era que Veronica sempre morou em Miami, porém não a conhecia de cabo a rabo, como a maioria dos nativos. Veronica costumava ser uma adolescente aventureira, curiosa e exploradora, e esse seu espírito costumava ser encorajado pelo pai e monitorado pela irmã. Contudo, as coisas já não eram como antes – e jamais voltariam a ser –, e foi inevitável sufocar a aventura quando esta perdeu a magia da juventude. Aos 26 anos, Veronica tinha a forte impressão de que a vida seria aquela mesmice repleta de apatia e tristeza e nada mais. 

Por exemplo, a padaria nova na Avenida Collins. Veronica só a descobriu por conta da sugestão do Cabo Ian J. Taylor – em geral, Veronica detestava chamar as pessoas pelo sobrenome e/ou pelo nome inteiro, mas aquele era um nome tão melódico! –, e era um tanto constrangedor ter que fingir que tinha propriedade para concordar com sugestões de bons ambientes para passeios.

Fosse como fosse, lá estava ela, conjecturando se deveria pedir um croissant ou qualquer outra coisa gordurosa para conter a angústia. Só tinham se passado cinco minutos desde o horário, mas já era o suficiente para atormentá-la. E se o Cabo Taylor tivesse se dado conta, enfim, de que aquilo era um absurdo? 

— Chega — Veronica murmurou, respirando fundo. Voltando a palma das mãos para baixo, Veronica negou com a cabeça. — Estou prestes a ficar maluca. Dessa vez, para valer. Das outras vezes, foi um alarme falso, mas agora é sério. Perigo para a sociedade em definitivo. 

Em algum ponto atrás dela, alguém riu. Um gesto inofensivo, mas que no estado em que se encontrava foi como se a pilha de dominós de Veronica tivesse enfim terminado de cair ao chão. 

— Ora, pelo amor de Deus, uma mulher já não pode mais falar sozinha sem que alguém ria dela pelas costas? estamos na Flórida, aqui o normal é ser um pouco desgraçado de cabeça!

Quando ela se virou para encarar quem zombava dela, Veronica deixou o queixo cair. A pessoa que estava aguardando a tinha visto perder a linha em público. E tinha rido dela. Rido.

Era o fim da picada, mesmo.

— Dizem que falar sozinho faz bem, apesar de eu nunca ter experimentado. Não de forma consciente, ao menos.

— Desculpe-me por isso, senhor — Veronica balbuciou, encabulada. — Isso deve ter sido péssimo.

— acredito que me chamar de “senhor” seja exagerado. Eu não sou tão mais velho assim do que você, sabia? 

Veronica negou com a cabeça por falta de opções. Droga, ela precisava aprender a sair da comunicação não verbal se quisesse ter qualquer conversa bem-sucedida com o Cabo Taylor. Se é que ele ainda usava aquele título.

— Não sabia — Veronica explicou-se, levantando-se para indicá-lo ao lugar. Ele permitiu-se ser guiado até a cadeira, tateou a mesa e adequou o peso e a altura de lado e deixou os braços sobre a mesa, como ela tinha feito anteriormente. — Acho que as condições de quando nos conhecemos não foram as mais adequadas.

O Cabo Taylor assentiu com a cabeça, e Veronica reprimiu uma risada irônica. O que ela dizia sobre comunicação não verbal, mesmo?

— Não foram, de fato. E ainda sinto muito pelo seu pai. Lembro-me dele com frequência. Porém… — ele suspirou, ajeitando a postura. — Provavelmente, é um tanto inevitável. Ele foi a última pessoa que vi antes de não ver mais nada.

— Acho que faz parte do trabalho do cérebro incluir tortura psicológica em algumas lembranças — Veronica opinou, tentando balancear o tom da voz para não soar deprimente. — Dependendo da pessoa, é claro. Não sei se esse é o seu caso e não quero fazer suposições que sejam indelicadas a esse ponto. O de ser pretensiosa. Sabe?

O Cabo Taylor sorriu de escanteio.

— É o seu caso, senhorita Bowman? A tortura psicológica sendo melhor amiga das lembranças? 

Ela deu de ombros, sinalizando para uma funcionária que gostaria de ser atendida. Enquanto aguardava, Veronica comentou: 

— Sim e não. Depende do dia. Não é algo certo ou determinado. Todo mundo diz que o melhor a se fazer é focar nos momentos bons que teve com a pessoa ao invés dos momentos ruins, mas… 

Veronica fez uma pausa para organizar os pensamentos. Já tinha fragilizado relacionamentos suficientes para identificar um potencial uso de palavras delicadas a serem interpretadas em outro sentido. Seus dias de dizer tudo que tinha em mente já tinham se aposentado. Ao menos, era para isso que ela torcia. 

— Só tenho boas lembranças com meu pai. Esse é o problema. Parte dele, pelo menos.

— É? — o Cabo Taylor inclinou a cabeça. — Por que isso seria um problema? 

— Porque… Os últimos momentos dele, os momentos cruciais… Eu sei que nada daquilo foi feliz. De alguma forma, eu… Me sinto culpada. Boba. Inocente. Como uma criança que descobre a verdade sobre não existirem sereias e fadas mas que prefere fingir que elas existem, sim. Não sei se faz sentido, eu nunca fui muito boa em me expressar verbalmente. 

Isso porque Veronica nunca tinha precisado se expressar. Todos os seus trunfos residiam no fato dela ser uma pessoa de feições óbvias. Era óbvio o que Veronica pensava, então ela nunca havia se preocupado em trabalhar as emoções faladas. 

Em retrospecto, Veronica arrependeu-se de não tê-lo feito antes. Mas, fosse como fosse, quem é que iria interessar-se pelo que ela tinha a dizer?

Pior: e se Veronica não tivesse nada de relevante a dizer? 

— Faz sentido — o Cabo Taylor baixou o tom da voz e Veronica podia jurar que, mesmo através dos óculos escuros e da visão roubada, ele conseguia enxergar tudo que ela se esforçava para varrer para debaixo do tapete. Desta vez, numa comparação adequada. Seria perigoso manter aquele homem por perto a longo prazo. — É como se fosse melhor ter sonhos ruins, nesse caso. Porque os sonhos felizes são sua forma de punição.

Veronica emitiu um “uhum”, obtendo um murmúrio de concordância. Agora, se ele estava concordando com a fala dela ou apenas sendo empático… Era matéria de estudo para outros encontros. 

Por sorte, a atendente da padaria veio até eles em seu momento de crise de identidade, e Veronica seria mesmo capaz de respirar aliviada por isso. Após pedir para que a atendente lesse as opções de pedidos, Veronica escolheu capuccino gelado e brioche, e o Cabo Taylor optou por café expresso e panquecas com manteiga. Quando ela saiu, Veronica comentou: 

— Escolha clássica!

— Geralmente são as melhores — ele sorriu. 

— Ah, eu tinha um conhecido que falava o mesmo — Veronica deixou escapar, mesmo que aquela tenha sido outra bofetada de nostalgia. — Que às vezes as escolhas tradicionais muitas vezes são subestimadas.

— Seu velho conhecido está certo. Qual era o tema? 

Veronica sorriu, relembrando o dia agridoce. 

— Era sorvete. Ele amava baunilha. 

— Baunilha é um ótimo sabor!

— Exato — Veronica encarou as próprias unhas. — É bobo, mas queria não ter tirado sarro disso na época.

Ele se remexeu na cadeira e apoiou o cotovelo na mesa, voltando a atenção para Veronica.

— Com todo respeito, senhorita Bowman, mas me parece que você categoriza muitas coisas em sua vida como sendo “bobas”. Coisas demais. E isso é perceptível mesmo que essa seja nossa terceira conversa. 

Veronica deu de ombros e desviou os olhos dele. Do lado de fora, as pessoas se atropelavam na calçada, para verem quem chegaria primeiro ao destino - quem teria uma carreira “melhor” em menos tempo e às custas de quem. Veronica sentia-se tentada a juntar-se a elas. E pensar que, há dez anos, todas aquelas mesmas pessoas mal compareciam aos bairros comerciais por estarem aglomeradas nas praias, aproveitando os dias de sol, independentemente de uma guerra roubar seus filhos, irmãos, netos, amigos e namorados. 

— Você provavelmente tem razão, senhor. 

— Ah, por favor, pode me chamar só de “Ian”, eu insisto — ele riu com suavidade, arrancando uma risada igualmente tranquila da parte dela. — Além disso, o “Cabo” agora é um título honorário. Porque, veja bem, não sou mais capaz de servir, de qualquer forma. 

— Entendido, senhor Ian. Não vai se repetir. E fica “Veronica” para o senhor também. 

Então os dois riram, finalmente dissipando um tanto da tensão intimista. Veronica sentia-se com dezesseis anos novamente – talvez num universo paralelo onde ele tivesse tido a oportunidade de ter uma adolescência normal, sem guerras e toda aquela morte, onde suas maiores preocupações na vida fossem as garotas más e populares, os garotos convenientes e os inconvenientes, suas notas e qual roupa usaria no baile de primavera. Aquela parte de sua vida tinha se perdido, porém… Será que aquilo precisava ser definitivo?

— Parece que estamos conversando de trás para frente — o Cabo Taylor… Não, Ian… torceu o nariz de brincadeira, arrancando mais um riso de Veronica. — Seu pai dizia mesmo que você era uma figura. 

Ela não pode evitar deixar que o misto de entusiasmo e desconfiança infantil espreitassem suas reações. Elogios deixavam-na assim. Ou críticas em pele de elogio.

— Dizia, é?

— Ah, sim. Ele dizia: “Valerie é um livro em primeira edição, e Veronica é um espetáculo de fogos de artifício. Todos os dias é 4 de julho”.

Tudo aquilo fez com que os sentimentos dela ficassem à flor da pele. Sem controle, os olhos dela lacrimejaram e ela fungou mais audivelmente do que o pretendido. Num ato de extrema gentileza, ele emendou:

— Como eu disse, não era exatamente o que eu imaginava quando me ligou, senhorita… Veronica. Pensei honestamente que fosse uma… Ajuda para luto tardio. 

— Eu não sabia mais a quem recorrer, de verdade, e… Eu não… Eu não tenho lá muitos amigos — ela pigarreou. — Mas não é o tipo de comentário para causar pena, tá? É só a verdade. Minha melhor amiga é a minha irmã, mas como o assunto é sobre ela, então… 

— Você ficou sem opções. 

Parecia terrivelmente cruel relegar um desconhecido terrivelmente gentil àquela posição, ainda mais dito em voz alta, contudo Veronica grunhiu em confirmação.

— Eu imagino que deva ser uma situação mais do que delicada, senhorita Veronica — ele começou, obrigando Veronica a cruzar as pernas para ouvir o que ele tinha a dizer. — Mas, devo reiterar que, nesse tipo de caso, realmente acho que você deveria envolver a sua irmã. Eu… Tenho certeza de que pode ajudá-la a reunir coragem suficiente para passar por esse processo. Independentemente de qual seja o resultado.

Veronica permaneceu em silêncio por alguns instantes, quebrando-o apenas para agradecer e pagar pelos pedidos. Com admiração, ela observou Ian tatear a mesa, encontrar os talheres, medir a distância entre eles e o prato e só então começar a cortar as panquecas e comê-las. É claro que ele já lidava com a deficiência da visão há uma década, e Veronica jamais iria intrometer-se em sua dinâmica com o espaço; ainda assim, ela sentiu vontade de assobiar e aplaudir o homem. 

— Eu…  farei isso — ela cedeu, mordiscando o lábio inferior. — Só preciso de uns dias. Para pensar no que vou dizer. E em como vou dizer. Mas, conhecendo minha irmã como a conheço, vai ser no mínimo assustador. 

— Mal posso imaginar — ele murmurou após uma rodada de panquecas. — Um casamento perdido após um filho perdido… Desculpe-me, senhorita Veronica, mas eu poderia fazer uma pergunta pessoal? 

Ela piscou, confusa com a mudança de foco. Até aquele momento, Veronica concordava com tudo o que ele dizia. No entanto, como parecia ser o padrão comum para o Cabo Ian J. Taylor, seus tópicos de conversa e métodos de abordagem eram imprevisíveis. 

— Hum… Pode, claro que pode.

— Todo esse tempo, você tem me falado apenas sobre sua irmã — mais uma panqueca cortada. Veronica aproveitou a oportunidade para mordiscar o brioche. — Com exceção a pequenos detalhes “bobos”, como você mesma se referiu. Desde… Desde a última vez. Sempre que conversamos, sua irmã vem em primeiro lugar. Minha pergunta é… Como você se sente? Como se sentiu com tudo o que aconteceu? 

— Eu… Não vejo como meus sentimentos podem ser relevantes nesse caso, sen… Ian.

Ele sorriu, perturbando-a dos pés à cabeça. Das duas irmãs, era Valerie quem tinha o talento secreto de ler as pessoas e prevê-las dentro do possível. Veronica, ao tentar prever ou antecipar pessoas, na maioria esmagadora das vezes tirava conclusões equivocadas e decisões ainda piores. Veronica sabia que a relação distante com a mãe era relacionada a isso. Diretamente relacionada. Inevitavelmente

O grande problema da morte do pai delas não se dava apenas ao fato de ser o pai delas. John Bowman era uma das poucas pessoas - senão, o único - que a entendia tão bem ao ponto de saber exatamente o que o que dizer e fazer para ajudá-la a melhorar como pessoa. Sem ele, que perspectiva Veronica poderia ousar ter? 

Como ela poderia não colocar Valerie em primeiro lugar quando a irmã ainda precisava de tanto apoio e já não havia mais esperanças para Veronica tornar-se alguém melhor? 

— Eu vejo — ele replicou, gentilmente. — Breves contornos sutis e quase imperceptíveis, mas não invisíveis. 

— Garanto que meus sentimentos estão bem. Mas agradeço pela preocupação. Estamos aqui para falar de Valerie e Frank, e deles apenas. 

Ian ajeitou a postura pela segunda vez no dia e assentiu com a cabeça. 

— Tudo bem. Como disse, eu não quis ser inconveniente. 

— Não foi — ela sorriu, tentando empregar a tranquilidade de telefonista no tom de voz. — Mas podemos tratar do meu caso num outro dia, se isso for do seu agrado. 

— Muito bem — com um suspiro, ele também optou por um sorriso. Derrotado. — Valerie e Frank, então. 


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Notas finais do capítulo

Valerie e Veronica dando seus passinhos de bebê... mas para onde? Será que estamos chegando ao final da primeira história?
(spoiler: sim, estamos)



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