Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 4
IV




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Algumas semanas depois da fogueira eu acordo de madrugada, antes do sol nascer. Fico jogada no meu colchão, olhando pro escuro. Então eu decido subir para ver o sol nascer, e sigo pelo corredor conhecido e pelas escadas no escuro.

Moisés está na laje, sentado com os pés suspensos e o corpo deitado na beirada. Ele não me vê chegar, e eu penso em voltar, mas ele abre os olhos antes que eu feche a porta e eu decido ir até ele. Eu me sento ao seu lado, abraçando as pernas, sem coragem de me deitar como ele. O céu está daquele jeito bonito que fica antes do sol aparecer, num tom rosado misturado com preto e ainda com as estrelas brilhando.

Ele me pergunta se algum dia eu já imaginei que a nossa vida ia dar esse giro de 360º graus e eu digo que não, nunca.

Então ele me olha com um sorriso de moleque, as mãos apoiadas no chão, e me diz que o José perdidamente apaixonado por mim. Que qualquer dia vai aparecer com umas cabeças de zumbis como troféus pra ver se finalmente me impressiona, já que é impossível achar rosas. Ele fala de um jeito tão brincalhão, tão de antes, que eu não consigo evitar uma risada. Mas é aquela velha história de que seria cômico se não fosse trágico. Então eu me deito, olhando o céu ficar mais alaranjado.

Eu falo que é ridículo se apaixonar por alguém no meio do fim do mundo. Que mesmo se não fosse o fim do mundo, ainda seria ridículo porque eu fugia de relacionamentos como o diabo foge da cruz.

Eu não olho para ele, mesmo quando sinto seu olhar em mim, ou quando ele também se deita. Eu sei que ele quer perguntar o porquê, quer uma explicação. Ele já me perguntou isso antes, e eu nunca dei uma resposta. Ele sempre foi curioso. Mas não diz nada.

Mas ele encara o céu quando me pergunta, finalmente, por que eu fugia tanto de relacionamentos. Eu digo que é complicado. Que no presente os motivos são óbvios, mas que no passado os motivos eram muitos.

Nós dois admiramos o céu ficar rapidamente colorido conforme o sol sobe. É um silêncio absoluto, não tem pássaros cantando ou carros buzinando. Tudo ao nosso redor, nos últimos meses ou último ano ou o que quer que seja, foi um silêncio absoluto.

Daqui a pouco as pessoas vão acordar, mas eu ainda não quero ter que lidar com todo mundo. É muito mais fácil interagir só com ele.

Eu pergunto como é a vida do outro lado, a vida de quem teve um relacionamento antes, durante e depois do fim do mundo, e ele dá um sorriso que não me convence, e parece pensar em uma resposta, mas logo desiste.

Ele suspira, parece cansado.

Ao invés de responder, ele me pergunta se eu me sentia culpada por ter sobrevivido, porque ele se sentia assim às vezes.

Eu digo que sim, me sentia. Que tentava não pensar nisso, mas pensava.

Então nós ficamos em silêncio por um segundo, até que ele dá uma risada baixa e me provoca falando que pelo menos eu consegui um namorado.

Eu empurro ele, rindo baixo também para não acordar ninguém.

Então ele suspira e fala que nós somos a própria quadrilha e eu sou a Lili, mas eu me sinto cansada o suficiente para não questionar ou pensar no que ele quer dizer. Ele fica em silêncio de novo e eu quase consigo ouvir os seus pensamentos, como ele parece querer dizer alguma coisa e depois mudar de ideia. Ele abre a boca e então fecha. Por fim ele me pergunta porque eu não falo sobre os meus pais, sobre a minha vida de antes, parecendo receoso que a pergunta me faça levantar e ir embora.

Mas eu me encolho mais, abraçando a mim mesma. A resposta sai da minha boca sem que eu sequer pense sobre ela. Eles não eram meus pais, porque eles não existiam. Ele pergunta se eles eram ruins comigo, e eu me obrigo a sorrir enquanto recito Cinderela, falando que eles eram o melhor que podiam. Eu não espero que ele saiba de onde é a citação, mas Moisés sorri, entendendo, e me provoca dizendo que eu realmente tinha cara de alguém que seria salva pelo príncipe encantado.

Eu sorrio dizendo pra ele não me ofender, porque antes do apocalipse eu era muito feminista, muito bem e obrigada.

Ele se vira e ficamos deitados um de frente para o outro, mas com espaço o bastante entre a gente para que não seja estranho. Eu pergunto que princesa ele seria, e ele pensa um pouco antes de falar que a Rapunzel. Isso me faz rir e a minha risada pega nos dois de surpresa. E eu pergunto se ele achava que o cabelo dele era tão bonito assim, mas fico surpresa quando ele me diz que não por isso, mas porque ele ia passar o resto da vida em casa cuidando dos pais, sem poder ir pra lugar nenhum. E quando vê a minha expressão ele se corrige, rápido, e me garante que os pais dele eram ótimos e ele amava muito os dois, mas que eram velhos e por isso ele ia ter ficar sempre por perto, sem poder se afastar, sem poder sonhar muito alto.

Eu confesso que amava os meus pais também, a primeira vez que eu digo essas palavras em voz alta desde que era uma criança. Apesar de tudo, eu amava os dois. Ele segura a minha mão em apoio e nós ficamos deitados, com um metro de distância entre nós, observando o sol subir no céu. Ele diz que entende, e eu acho que entende mesmo.

Quando todo mundo levanta, algumas horas depois, eu já tô no meu quarto e ele no dele. Quando o José me dá bom dia no meio do corredor, eu retribuo o sorriso dele sem muito esforço, e finjo que não sei de nada.

O Moisés me olha curioso pela porta aberta do seu quarto, bem em frente ao meu, mas não diz nada.

*

Já que eu falei sobre o Luiz, e também porque basicamente não tem nada de interessante sobre a minha vida para falar agora, eu vou falar sobre o meu ex-namorado.

O nome dele era Rafael. A gente namorou dos meus dezoito aos vinte, e terminou logo que eu comecei a trabalhar na loja.

A gente se conheceu na faculdade, e eu fui muito boba e apaixonada por ele pelo tempo que a gente ficou junto. Eu gostava de como ele não me pressionava a nada, não ficava com raiva porque eu nunca saia de casa e passava o tempo todo ocupada com o meu irmão. Talvez a comodidade seja o motivo de ter durado tanto tempo, afinal. Ele falava em casamento, em filhos, em ter uma vida juntos.

O Lucas gostava muito dele, os meus pais também. O Lucas porque ele comprava sorvete, os meus pais porque tudo que eles queriam era que eu ficasse eternamente perto de casa, e viam o Rafael como a desculpa perfeita. Isso me fazia pensar em até que ponto eu deixaria ele atrapalhar os meus planos, já que eu sempre soube que eu não queria ter uma família, não depois de toda a experiência que eu tinha tido com a minha. É engraçado porque eu já estava procurando um motivo para terminar quando descobri as traições, então acabou tudo se encaixando perfeitamente.

Eu descobri em uma festa, porque ele ficou bêbado e deu em cima de uma amiga minha, que me contou tudo. Aparentemente ele fazia muito isso todos os finais semana que eu ficava em casa cuidando do Lucas. Ele não negou, então foi isso: tchau e nunca mais fale comigo.

O problema é que eu gostava dele, mas não gostava. Eu odiava o que ele representava, o futuro que ele significava, mas uma parte de mim amava ele. Eu definitivamente não gostava do irmão dele, que era uma peste, mas fiquei mal de ver que ele virou um zumbi. Será ele também virou? Provavelmente. É melhor se ele estiver morto.

O que eu mais gostava nele eram as covinhas quando ele sorria, e a mania que ele tinha de passar a mão no meu cabelo. A tatuagem de pássaro na mão esquerda, que eu achava tão bonita. O que eu mais odiava era um monte de outras coisas. A babaquice, a imaturidade, a teimosia, a infantilidade... Mas eu amei dele. Foi meu primeiro namorado sério. Eu sinto saudades dele as vezes, mas mais porque é terrível passar pelo apocalipse sozinha do que porque eu ainda tenho sentimentos por ele.

Depois que a gente terminou eu não voltei a namorar ninguém. Entre o trabalho, a faculdade e o Lucas, não me sobrava tempo para pensar em ninguém.

É confuso. A sensação que eu tenho quando penso em qualquer pessoa do mundo antigo é um misto de gostar e desgostar. Tem exceções, é claro. Eu só sinto falta absurda e penso só em coisas positivas do Lucas e da Miranda. Mas todo o resto eu penso em tudo de bom e de ruim e sinto falta do mesmo jeito. Acho que a diferença que eu sinto, principalmente quando converso com qualquer outra pessoa, é que eu sou uma grande vagabunda rancorosa. Porque, sabe, aconteceu a PORRA DO APOCALIPSE e eu ainda penso nos defeitos e falhas de todo mundo que errou comigo, e é claro que enxergar eles por completo não me impede de sentir falta, mas as outras pessoas parecem só lembrar das coisas boas, como se tivessem um bloqueio para as lembranças ruins ou dolorosas.

Eu amei e eu odiei e eu desprezei e eu idolatrei tanta coisa e tanta gente, e só porque enxergo o todo não significa que eu não sinta falta do todo. Eu daria a minha vida pra passar um dia na vida de antes, mesmo que fosse pra brigar com os meus pais e assistir TV com o Lucas, pensando na logística do dia seguinte.

A minha vida é sentir falta.

*

Eu me lembro exatamente a última vez que eu falei com o meu pai. Foi na manhã do dia que tudo aconteceu, eu acordei para trabalhar e ele estava fazendo café. De ressaca, sem tomar banho, mas fazendo o café. Ele me deu uma xícara e me perguntou se eu queria carona, mas eu disse que ia de ônibus e para ele não esquecer que o Lucas tinha aula de natação. Ele sorriu para mim, me deu tchau e eu saí.

Não teve emoção, não teve nada, foi só uma interação normal porque, é claro, aquele era um dia normal.

Ele nunca foi perfeito, e também foi ausente várias vezes, mas ele era o meu pai. Ele parecia um eterno adolescente, e não agia como pai e sim como filho. Eu odiava isso. Eu odiei ele, tanto e tantas vezes. Mas ele me amava, mesmo que fosse péssimo como pai. Mesmo nos piores momentos, quando eu queria morrer e tinha certeza que ele não ligava pra mim, eu no fundo sabia que ele me amava, sim. Ele era sem noção e um moleque irresponsável, mas ele me amava. Colocando flores no meu cabelo e deixando desenhos nos meus cadernos, demonstrando o amor do jeito que ele sabia.

E esse surto de sentimentalismo é porque, e não tem jeito sutil de falar isso, a Tainá morreu. Ela tinha um marido e uma filha e uma família que ela pensava que ia rever um dia, ela amava a filha dela e então ela morreu. Acho que foi basicamente o que aconteceu com o meu pai também.

Ela era a mais velha de todos nós, com mais de trinta anos. O que aconteceu foi que ela saiu pro supermercado com o José, e uns zumbis atacaram eles no meio da rua, antes deles voltarem. Cercaram um dos carros e conseguiram puxar ela pelo pé, ela caiu no chão, eles pularam em cima dela e não sobrou nada. O José ficou se equilibrando em cima do carro mais alto, gritando, mas não tinha nada que nenhum de nós pudesse fazer. Depois ele ainda precisou ficar parado lá por um tempão esperando os zumbis dispersarem para ele conseguir voltar pro prédio.

Eu odeio muito essa situação toda. Mas o que eu mais odeio foi que quando tudo acabou, a primeira coisa que eu pensei foi a gente tinha perdido a porra da mochila que estava com ela. A mochila cheia de comida. Eu me odiei tanto por isso, muito mesmo. Mas eu pensei, mesmo que tenha sido só por um segundo. Todo mundo estava gritando e eu pensei nisso rápido, só atravessou a minha mente, e então eu fiquei morrendo de vergonha, mas aí eu olhei pro Moisés e ele me olhou e eu soube que a gente tinha pensado a mesma coisa. Aí ficamos os dois arrependidos e envergonhados, e não falamos nada sobre isso.

Ela foi a primeira de nós.

Só sete agora.

E eu só consigo pensar em quem vai ser o próximo.

Depois que o José consegue voltar para dentro a gente fica sem palavras, todo mundo chorando. A gente vai pro quarto dela e fica sentado no escuro até que anoitece, pensando e chorando. Todo o tempo que a gente passou aqui, ela ainda tinha esperanças. Eu enxergo mal pela luz da lua que entra pela porta, mas ainda assim posso ver a 3x4 da garotinha banguela que está colada na parede.. O quarto dela é na frente do escritório, então é o mais iluminado.

Eu não aguento mais e choro muito muito muito mesmo, e eles precisam me segurar e a Carol me abraça mas eu não consigo parar de chorar. Todos eles choram também, e a gente se abraça numa confusão de pessoas e soluços, nós sete órfãos de pais e de mães e de amigos e da Tainá.

A merda dos zumbis, que me fazem pensar em comida enquanto minha amiga é devorada por eles, e me fazem pensar no meu pai e em tanta coisa e em como a humanidade tá mais do que completamente perdida, porque por mais que eu não queira admitir eu ainda tenho esperança de que vai acontecer alguma coisa, que a gente vai ser salvo, que eu vou descobrir a explicação para tudo que aconteceu.

E eu sei que toda essa esperança é burrice. A esperança que não fez nada pela Tainá, mas eu só fico mais e mais infeliz cada vez que constato isso.

A gente chora e chora e chora, e eu só não quero morrer aqui.

Eu penso no Lucas, brincando de colorir no dia em que eu saí de casa. Como eu beijei a sua testa, como o seu cabelo tinha cheiro de bebê, ele sorriu para mim com o sorriso banguela mais bonito do mundo quando eu passei pela porta, me dando tchau com as mãozinhas sujas de caneta. A careta que ele fazia para as verduras, como ele às vezes me chamava de mãe e às vezes me chamava pelo nome, e como as pessoas ficavam confusas com isso. Penso nos meus pais e em mim, penso na Tainá e na filha dela.

Eu só não quero morrer aqui.

 


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