Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 3
III




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Eu e o Moisés ficamos no supermercado até o dia seguinte, e foi... Intenso.

Eu sabia que não tinha nada no supermercado, mas mesmo assim fiquei com medo porque eu já tinha visto como os zumbis são silenciosos. Eu já tinha me acostumado no escuro depois de tanto tempo sem energia elétrica, mas ficar no escuro em um lugar diferente era terrível. Com tudo trancado e escondidos no balcão de guarda-volumes, comemos biscoitos com gosto duvidoso e ficamos acordados basicamente a noite inteira com medo do escuro. Choveu durante a madrugada, e o barulho da chuva só me deixou mais nervosa. Eu queria chorar o tempo todo, mas me controlei porque não queria chorar na frente dele de novo. E acho que ele sentiu o meu desespero, porque volta e meia falava alguma coisa só para ver se eu ia responder. Mas não tinha muito o que ele pudesse fazer.

De manhã, no segundo em que fica claro o suficiente para enxergar os corredores, a gente corre de volta pro prédio. Eu até deslizo porque os carros estão molhados da chuva, bato com o rosto no capô de um dos carros e tenho certeza que vai ficar roxo. O Moisés me segura para que eu possa me equilibrar antes que seja pior, mas pelo menos não tem zumbis na rua.

Eu ouço os gritos da Ana antes mesmo de chegar na janela, e imagino que ela tenha ficado de plantão na janela, preocupada. Ninguém nunca tinha passado a noite fora do prédio, então todo mundo vêm para a janela, gritando por ver nós dois vivos e bem. No segundo em que a gente consegue subir (e eles me puxam, porque eu não consigo subir) a Ana agarra o Moisés, chorosa, e ele fala baixinho tentando acalmar ela. Nós deixamos os dois sozinhos e vamos para a laje para eles verem o que a gente trouxe.

Eu acho que é meio burrice ficar presa no apocalipse com o namorado porque se você quiser terminar não vai ter como, mas eles aparentemente não acham isso. Mas quem sou eu para julgar os relacionamentos alheios, quando eu até sinto falta do meu ex às vezes, então ok. Na verdade deve ser bem mais fácil dormir à noite com alguém, poder transar para esquecer os problemas e se distrair.

Enfim, o bom de ter chovido tanto a noite toda é que dá para tomar banho direito. Quando amanheceu eu peguei sabão em barra no supermercado, um para cada um de nós, e todo mundo decide que me ama por isso. Eu até lavo mais ou menos a minha roupa nas poças de água da laje, e deixo no chão para secar. O calor é horrível, como em todos os outros dias, então não demora muito pra ela secar e eu poder me vestir de novo. Uma coisa do apocalipse é que todo mundo fica muito mais confortável com a nudez alheia, o que é bom porque é um saco seguir os protocolos sociais quando a sociedade já acabou.

Quando eu finalmente deito no meu quarto para dormir, depois de passar a noite em claro, eu fico acordando porque tenho pesadelos em que o Lucas tinha virado zumbi igual ao Luiz. Eu espero que ele esteja morto, porque a opção de virar zumbi é muito pior. Quer dizer, é óbvio que ele está morto, mas eu espero que ele tenha morrido uma morte rápida e sem dor, e não tenha sofrido por dias ou semanas, morrido de fome ou desidratado ou pisoteado na rua. Se eu pudesse escolher eu escolheria que ele escorregasse e batesse a cabeça e não acordasse, ou caísse de um lugar alto onde ele morreria na queda e não no impacto. Não é saudável pensar em jeitos bons para o meu irmãozinho ter morrido, é claro, mas se eu pudesse escolher seria uma morte quase indolor, é isso que eu quero dizer.

A minha mente tira o meu sono, como de costume, então eu desisto e vou para a laje conversar com a Bruna enquanto ela toma banho. Ela tinha ficado por último e já era de noite, os mosquitos sugando até a nossa alma. O meu pai costumava brincar quando eu era criança que eles iam me levantar e me levar embora, mas eu não preciso ficar ainda mais deprimida do que já estou, então ignoro o pensamento.

Bruna diz que o Moisés contou para eles que eu tinha surtado levemente, mas eu não estava a fim de explicar que eu tinha brincado de carrinho com o garoto zumbi um dia, então mudo de assunto e ela me diz o que eles fizeram enquanto a gente estava fora (basicamente nada, porque não tem nada para fazer), e que eles ficaram muito preocupados com a nossa demora. Eu posso imaginar a tensão, e acho que é melhor ter sido o motivo da preocupação que quem ficou para trás, preocupado.

Depois que ela se seca a gente come carne em conserva, fria mesmo porque ninguém tem ânimo para acender o fogo. Quando a gente desce já está escuro, e eu vou pro quarto dela porque não quero sonhar com zumbis. Ela não me questiona nem me manda voltar pro meu quarto, só me deseja boa noite e nós vamos dormir.

Quer dizer, ela dorme. Eu ainda fico acordada por um bom tempo, sem conseguir fechar os olhos. Toda vez que eu fecho, penso nos olhos vazados de Luiz. Então eu decido subir e caminhar na laje até as minhas pernas doerem o suficiente pra eu conseguir focar só nisso.

O corredor é escuro, mas eu consigo chegar nas escadas sem problemas, ainda me sentindo inquieta. Me assusto quando a porta bate atrás de mim, mas não tanto quando Moisés, que deixa a sua garrafinha de água cair com o susto. Mas ele se abaixa e pega rápido, sem deixar que a água gaste. A gente não gasta água por aqui, não se pudermos evitar.

Eu brinco que quando a gente era criança todo mundo falava sobre como a água ia ser mais valiosa que o petróleo, e ele concorda deixando escapar uma risada baixa. Então ele me pergunta, mais uma vez, de novo e novamente, se tá tudo bem. Eu fico calada, sem vontade de responder, mas tudo é tão quieto, inclusive ele, que eu até considero falar, só pra preencher o silêncio.

Ele diz que a mãe dele tinha ataques de pânico, que às vezes ela passava semanas sem sair de casa porque só de sair na rua ela não conseguia respirar.

Eu quero falar que eu tinha, quando era criança. Que diminuiu quando eu cresci, mas o apocalipse reviveu eles. Eu não costumo falar da minha vida, nunca fui assim, mas eu faço um esforço pra falar com ele.

Eu abro a boca, mas as palavras não saem. Os mosquitos ficam voando ao nosso redor, zumbindo, e ele espera a minha resposta. Mas então eu balanço a cabeça, passando por ele para pegar água também.

Moisés oferece a sua garrafinha, que eu mergulho no balde para encher de água e então dou um gole antes de devolver. Ele ainda me olha, e quando penso que vai dizer alguma coisa eu decido descer. Quando eu abro a porta, eu penso que ele tá sendo gentil, e só pra não deixar um silêncio absoluto eu digo pra ele ter cuidado, porque tem tantos mosquitos que eles vão carregar ele e levar embora.

*

O prédio tem oito salas no segundo andar e um banheiro horroroso que ficou ainda pior com o apocalipse. A única sala com janela era o escritório do dono, e todas as outras são caixinhas de concreto ao longo do corredor comprido, com a porta que leva às escadas de um lado e o banheiro na outra ponta. Como temos um casal entre nós, eles dividem um quarto e cada um de nós tem um também, enquanto o escritório fica vazio. A janela fica sempre aberta para deixar entrar um pouco de ar (o que não acontece). Na maior parte do tempo tem alguém na laje, porque é o melhor lugar para se ficar.

As mesas cadeiras computadores etc. foram todos jogados pro andar de baixo, onde a gente empilhou eles nas portas da rua para impedir os zumbis de entrarem, e subimos os colchões do mostruário para levar pros quartos. O único risco mesmo são os zumbis já que eu realmente acho que todos os humanos morreram. Desde o dia do apocalipse nenhum de nós viu nenhum humano em lugar nenhum, nem animais. Mesmo nos primeiros dias, quando a gente ficava gritando pela janela e na laje, nunca tinha resposta. Não tem sinal de vida em lugar nenhum além do prédio: nem pássaros, nem avião, nem gatos miando, nem nada.

Basicamente, a gente se divide em três linhas de pensamento: a Bruna, a Tainá e a Carol acham que alguém deve ter sobrevivido em algum lugar, e tem esperanças de que as famílias ou amigos estejam vivos e bem, procurando por elas; o José e a Ana acham que algumas pessoas sobreviveram, mas que ninguém próximo deles possa estar vivo; eu e o Moisés acreditamos que não existe mais nada nem ninguém, em lugar nenhum.

Talvez em outro país ou continente ou qualquer outro lugar, mas não aqui. Talvez em uma dessas ilhas remotas ou países pequenos e isolados. A energia e sinal de celular caíram no mesmo dia, então a gente não sabe como começou nem se algum lugar conseguiu controlar os ataques (mas eu acho que não). Eu fico tentando lembrar se saiu qualquer coisa minimamente relacionada a alguma doença nova ou algum sinal de zumbis nos jornais nos dias antes de tudo, mas não tinha nada, e eu assistia o jornal todos os dias, lia as reportagens e tudo. Talvez uma das minhas maiores raiva seja o fato de que eu nunca vou entender como tudo aconteceu, o que a gente poderia ter feito para evitar.

Hoje à noite eu estava particularmente infeliz e amarga. Tudo me irritava, o José mexendo no meu cabelo, a Bruna e as meninas sorrindo, o Moisés e a Ana entretidos um com o outro. Eu queria mais era que todo mundo explodisse, e quando todo mundo se reuniu para jogar stop na laje eu ficava estragando a brincadeira dizendo coisas relacionadas a zumbis em todas as categorias que eles inventaram, até que a Tainá começou a chorar e eu me senti muito mal, porque eu sei que ela tinha uma filha.

Então todo mundo me olhou feio, mas eu pelo menos tive a decência de pedir desculpas e ir pro meu quarto me deitar e ficar olhando pro teto, disposta a ficar com calor e sede até o dia amanhecer só pra não ter que sair de lá.

O Moisés vem ao meu quarto algum tempo depois, mas não diz nada sobre o que rolou, só me oferece a comida que sobrou do almoço. Eu acho que é a versão dele de prestar apoio. Mas eu me sinto realmente infeliz, então não quero comer nada.

Ele me pergunta se eu vou mesmo desperdiçar comida, e eu digo que sim. Que ao invés de comer eu preferia poder ficar porre. Ele sorri e me diz para entrar na fila.

Ele sai do quarto e eu fico tentando me lembrar qual foi a última vez em que eu fiquei porre e feliz. Não preciso pensar muito: a última vez foi em um karaokê, com a Miranda. O meu aniversário, a comemoração do meu novo emprego, uma semana antes de tudo acontecer, quando eu deixei o Lucas com a nossa vizinha e fiquei disposta a entrar em um coma alcoólico. Ter sido uma mãe adolescente me tirou muitas oportunidades de aproveitar essa parte da vida.

Mas eu me recuso a pensar nisso agora. Ao invés disso eu me forço a dormir, porque a última coisa que eu preciso é ter lembranças felizes agora. Ou qualquer lembrança. Se eu pudesse eu apagaria a minha mente inteira, como naquele filme.

Eu quero chorar, eu penso no Lucas bebê agarrado ao meu pescoço e eu quero chorar, como em todas as outras vezes. Eu penso no meu bebê sendo devorado por zumbis e quero chorar, eu olho ao redor e quero chorar, porque eu deveria ter ficado em casa naquele dia. A porra de uma vida interia tentando ser melhor que os meus pais e tentando fazer diferente, e no dia em que eu deixo Lucas sozinho em casa acontece a porra do apocalipse, e ele estava sozinho.

Eu deixo escapar um soluço antes de tapar a boca com a mão, e antes que eu entenda que ele ainda não se afastou o suficiente do quarto Moisés volta, se senta ao meu lado no colchãoe me abraça. Ele não fala nada, e eu choro no colo dele até dormir. Eu falo que eu devia ter ficado em casa, que deveria ter ficado em casa, que deveria ter ficado em casa, e ele diz que vai ficar tudo bem.

Eu digo que não vai, não. Que o Lucas morreu e nada nunca vai ficar bem de novo. Ele não me responde, mas me abraça e em algum momento eu durmo.

Eu acordo durante a madrugada, confusa, eu estico a mão para procurar por ele na cama, mas estou sozinha.

É claro.

*

Eu nunca fui muito amiga das pessoas que estão aqui comigo. Eles me chamavam para sair e eu nunca ia, mas interagia e fazia piadas e conversava normalmente com eles no trabalho. Eu faltei em todos os aniversários, todos os natais e todas as comemorações. O meu plano era só pegar o meu diploma da faculdade no final do ano e ir embora tentar a vida em algum lugar, então eu não tinha interesse em fazer amigos aqui. Eu já tinha os meus amigos, e eu não precisava de mais nada que me distraísse, mas eu não via problema em ter colegas de trabalho contanto que não passasse disso.

Eu sonhava em ir embora para bem longe e recomeçar a minha vida do zero. E acho que eu sumi, né, mas não do jeito que eu queria. Não via a hora de deixar todas as loucuras dos meus pais para trás, de poder parar de agir como se eu fosse a adulta o tempo inteiro desde que eu nasci. Eles costumavam me deixar sozinha o tempo todo porque diziam que eu sabia me cuidar. Às vezes eles saiam e demoravam dias para voltar, sem dar notícias.

E então quando o Lucas nasceu eu tinha que ser a adulta para mim e para ele, o que era uma grande merda por mais que eu amasse o meu irmão.

Eles não eram bons pais. Não foram para mim e nem para o Lucas. E eu dava graças a Deus todos os dias quando o mundo era normal por não terem tido mais filhos, porque eu simplesmente teria ficado doida, desistido e ido embora. Eu me criei, e então eu criei o meu irmão, e eu me sentia uma velha exausta e acabada quando interagia com pessoas da minha idade. Preocupada com fraldas e trabalhos de escola, apresentações nos parquinhos que ele iria gostar ou se tinha comida o suficiente em casa, se eu tinha pago a conta de luz, se o Lucas precisava de roupas novas.

Mas é claro que agora eles morreram ou viraram zumbis e eu não posso mais ter mágoa, ou então a errada sou eu. O perdão supostamente vem imediatamente junto com o luto, ou pelo menos foi isso que me condicionaram a acreditar.

Uns dias depois de eu ter feito a Tainá chorar, a Ana inventa um funeral para as nossas famílias, com a ideia de que isso iria ser bom para todo mundo. Talvez ela só ache que isso vai me tornar menos amargurada, mas de qualquer jeito é uma boa atitude, mesmo que eu não tenha vontade nenhuma de participar.

Ela faz uma fogueira ao pôr-do-sol e flores de papel. Cada um joga uma no fogo e tem um momento para se despedir. Eles falam sobre pessoas que conheciam, mas ainda se recusam a admitir que absolutamente todo mundo tinha morrido. O Moisés fala nos pais e em todos os amigos. Eu penso no Lucas e na Miranda, mas não quero falar nada em voz alta como os outros estão fazendo. O que eu faço é me comprometer a ser menos desagradável com eles, porque eles nunca fizeram nada para mim e não tem culpa de toda a situação.

O José segura a minha mão, e eu juro pra mim mesma que se ele me perguntar se tá tudo bem eu vou jogar ele da laje. Mas ele parece ler os meus pensamentos, porque fica calado e só me abraça conforme a fogueira diminui.

Eu me recuso a pensar nos meus pais, porque ainda estou com raiva mesmo depois de todo esse tempo e uma fogueira não vai mudar isso. E depois que todo mundo termina eu fico me sentindo culpada e quero chorar, mas mesmo assim me recuso a pensar neles.

Ao invés disso, eu penso na garotinha que eu fui, comendo sardinha enlatada fria porque não sabia ligar o fogão e estava com fome. Me cortando na lata de novo e de novo, até que finalmente aprendi a abrir. Sozinha em casa por dias, com fome e com frio e com medo, sem ter com quem falar ou para quem ligar. Assistindo programas de crimes que passavam pela tarde e ficando apavorada, mas também com medo de me levarem pra longe de casa se eu pedisse ajuda pra alguém. Com medo de brigarem com os meus pais se eu contasse pra alguém.

É esquisito ver como todos eles agem como se quem morreu fosse um santo. Eu queria realmente ser assim, mas a raiva e a mágoa ainda estão vivas dentro de mim mesmo que eles não estejam.

Mas o funeral parece ter funcionado, porque hoje a Tainá cortou o meu cabelo, então acho que ela já perdoou a minha babaquice de uns dias atrás. O negócio curioso é que entre nós oito o perdão rola o tempo todo e com uma facilidade absurda que nunca teve na minha vida, porque eu sempre fui rancorosa para cacete. Acho que a gente sabe que se só existem nós oito no mundo não vai ajudar em nada ficar com raiva um do outro.

A matilha sobrevive, e toda aquela cafonice.

 


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