A Outra Face escrita por Taigo Leão


Capítulo 9
Capítulo 9


Notas iniciais do capítulo

A 4 meses não posto capítulo novo dessa história. Peço perdão a todos que a acompanhavam, em momento algum eu desisti dela - Pelo contrário, ela foi finalizada no fim de agosto -. Agora voltarei a postar, pois consegui resolver coisas que estavam pendentes e me impossibilitavam de atualizar essa plataforma. Espero que vocês continuem me apoiando!!



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Não sentia mais vontade e nem necessidade de ver o doutor, pois acreditava que agora me era impossível voltar a ser quem eu era. Talvez esse seja o lado ruim de qualquer metamorfose: você pode ser algo novo; pode se transformar, mas nunca poderá voltar a ser o que era antes. Agora acredito naquela famosa frase, de que só damos valor a algo quando o perdemos. Neste caso, o que perdi foi a mim mesmo. Quero dizer, não me perdi por inteiro, mas tenho medo de que um dia eu mesmo vá a desaparecer, e me torne mais um corpo na multidão, saindo do estado do oco para o estado do vazio. 

Após cinco dias vivendo no que parecia ser um eterno marasmo, resolvi abandonar de vez aquele apartamento. Sem deixar nada para trás - dessa vez falo sério -, saí daquele lugar e fui para outro bairro, em outro canto da cidade. Não havia uma forma da síndica vir atrás de mim, pois não tenho nem certeza se ela ao menos sabia meu nome.  

Não me sentia mais confortável fingindo que havia tido uma nova chance, embora eu tenha tido. 

O lado bom da metamorfose é justamente de igual valor à parte ruim: poder trocar de rosto; ser uma nova pessoa. Isso pode ser até mesmo considerado como um superpoder. Eu não sou um homem comum. Posso fazer o que bem entender, e nunca ser punido por isso. Basta apenas que eu me torne uma nova pessoa, e meu antigo “eu” deixará de existir no mesmo instante, remanescendo apenas em uma única vertigem dentro de mim. 

Mas da mesma forma que poderes geram responsabilidades, ações geram consequências. Eu posso trocar meu rosto quantas vezes achar necessário, mas nunca será o bastante para esquecer como é a sensação e a culpa de ter matado alguém. Agora minha mente diabólica me prega peças: as vezes me faz acreditar que a garota que chamava de irmã viu tudo que eu fiz. Eu não tenho mais para onde fugir. 

Desde que deixei o apartamento, estou passando muito tempo na praça que já mencionei anteriormente. Possuo cartões, mas não são meus. São de antigos seres que se perderam dentro de mim. Sendo sincero, não sei a quanto tempo estou vivendo aqui, mas posso continuar assim por muito tempo, como um sem-teto. Talvez essa seja a nova vida que devo levar, com uma nova perspectiva das coisas. 

Estou sentindo muita febre e sede. Imagino que sejam os efeitos colaterais da troca de rosto, pois me senti de forma semelhante da outra vez, mas assim, morando no parque, não sei como poderia me curar. As pessoas nem mesmo olham para mim. Por algum motivo eu me sentia carente. Não queria levantar e buscar auxílio por mim mesmo, eu queria que os outros padecessem e tomassem minhas dores, me oferecendo água ou qualquer tipo de auxílio. Não sei que raios me deu para me sentir dessa forma, mas para mim fazia total sentido naquele momento. Seria bom saber que alguém estava ali, por mim. 

Mas como ninguém veio, desisti de esperar e fui eu mesmo até um mercado próximo, onde comprei algumas coisas que achei necessário, inclusive um jornal, onde procurei um lugar próximo para poder alugar, afinal ainda possuía algum dinheiro e embora achasse confortável, não queria viver pelas ruas para sempre, eu ainda possuía um pouco de honra, ou algo parecido com isso. 

O infortúnio veio quando me senti de forma anormal. Sentia que esse dinheiro que gastava não me pertencia, como se eu estivesse roubando os pertences de alguém. É certo que tudo que carrego comigo me pertence, embora tenha sido conquistado por uma outra versão minha, mas, depois que me transformei nessa nova pessoa, os outros “eus” simplesmente deixaram de pensar ou agir. Eu apenas continuei sendo eu mesmo, seja lá quem eu fosse naquele momento. 

Não sentia vontade alguma de ser útil para a sociedade: não queria arrumar um emprego e, sendo sincero, nem mesmo um lar. Acredito que a ideia de alugar algum local foi a única coisa que meus outros “eus” disseram desde que virei essa outra pessoa. Estes “eus”, retrógrados, se dissiparam com o vento, embora eu saiba que eles permanecem aqui, em silêncio, aguardando o momento oportuno onde irão derrubar quem sou agora, causando novamente um conflito interno que me aterrorizará durante o dia e não me deixará dormir durante a noite. 

Enquanto puder permanecer dessa forma, em paz, viverei esse tipo de vida, e sem vestígios, assim como o mar, eu surgi e irei desaparecer sem deixar rastros. 

Talvez esse novo “eu” seja mais um bloqueio na estrada, e em breve, entrarei em conflito, pois vou sentir a necessidade de ultrapassá-lo. 

Eu disse sobre viver em paz, mas na verdade, tenho vivido em culpa. Agora me sinto completamente vazio, mas também preenchido pela culpa de ter matado aquele homem. Não sei bem o que deu em mim para fazer aquilo. Eu queria ter protegido minha irmã, mas não sabia que iria tão longe para tal. Não esperei para saber se aquele homem era bom ou ruim, não sei os dois lados da história, eu apenas usei meu próprio julgamento sobre sua cabeça, como se eu fosse a justiça e o martelo; como se a metamorfose me permitisse agir dessa forma. Através dela eu posso me sentir superior a todos esses outros, superior a qualquer humano e suas vidas mesquinhas e vazias. Se estiver cansado de minha vida, eu posso tomar uma nova. Uma mais alegre, divertida. Ou até mesmo uma mais perigosa. Posso ser o que eu quiser, mas daqui de cima, só tenho uma visão mais ampla do vazio que existe na sociedade como um todo. 

Acho que eu posso andar para bem, bem longe, até que meus pés abandonem meu corpo, seguidos pelas pernas e até que minha própria alma também abandone esse corpo - eu posso ir para longe, muito longe, mas nunca longe o bastante para deixar essa culpa para trás. 

Agora serei obrigado a viver com isso, então o farei. 

 

Não sinto mais vontade de ver se minha irmã está bem. Acredito que quanto mais longe eu conseguir me manter dela, melhor. 

Por alguma razão, não tenho conseguido dormir. Não sei a quantos dias estou acordado, mas quando me deito no novo quarto que aluguei, sinto uma enorme necessidade de sair dali, como se fosse um presságio de que o quarto irá explodir ou pegar fogo, então sempre saio dali o mais rápido que posso e ando pela cidade, para espairecer, mas quando volto, o quarto está da mesma forma que eu o deixei. Talvez o pensamento seja apenas uma desculpa para sair dali logo. 

As noites sem sono começaram após alguns acontecimentos estranhos, que irei relatar aqui agora: 

Em um primeiro dia, adormeci, e tive um sonho estranho, o qual esqueci minutos depois de acordar. Acordei com dores de cabeça e dificuldades para abrir os olhos, e logo entendi o motivo: eu havia acordado na praça. 

Me lembrava claramente de ter adormecido em meu quarto, repousando em minha velha cama, mas acordei naquele lugar, com a camiseta rasgada. Não sei bem o que me levou a estar ali, e naquele estado, mas lá estava eu, como um pífio morador de rua. 

Em outro dia, adormeci em minha casa e até mesmo tranquei a porta, e quando acordei, estava com minhas botas calçadas e vi sangue em minhas mãos. Quase gritei, corri para o banheiro e por mais que lavasse, aquilo não saía. Eu estava desesperado e, como não faço a muito tempo, pedi socorro para os céus, e uma resposta, eu não sabia o que havia feito, e por alguma maldita razão, aquilo não saía de minhas mãos. Eu esfreguei, esfreguei diversas vezes, e até mesmo, em um ato muito insano, tentei raspar aquilo de minhas mãos, para sair por bem ou por mal. Mas quão surpreso fiquei quando, de repente, aquelas manchas de sangue sumiram e minhas mãos estavam limpas, sendo sujas exatamente nesse momento, pelo sangue que saiu quando me cortei ao tentar raspar as manchas imaginárias. 

Eu estava delirando, e tive a certeza disso na última noite, quando tranquei a porta e joguei as chaves pela janela. Quando o fiz, suspirei aliviado ao saber que nada me tiraria daquele lugar, mas, adivinhem: acordei na praça, novamente. Quando retornei, o trinco estava quebrado; eu havia feito aquilo, mas não sabia como. 

Depois dessas três situações, desisti de dormir, e ao me manter acordado, estive a pensar mais, e comecei a ver tudo de outro jeito. Voltei a ver de um jeito mais depressivo, e também mais realista. Eu poderia, por acaso, causar mal a outra pessoa, apenas para testar os limites de meu poder? Eu poderia ir até um cemitério e tentar contato com algum cadáver, apenas para testar esses mesmos limites? Não gostava de pensar muito nisso. Se fosse basear minhas escolhas em “se” e “talvez”, então nunca haveria consequências para nada do que eu fizer. Eu já havia ido mais além do que podia, já havia matado alguém, e agora estava alucinando. 

Acredito que essa alucinação seja causa da falta de remédios, já que acabaram os últimos que o doutor me receitou. Acredito que está na hora de pedir mais, então o farei. Só não sei como poderia encará-lo desse jeito. Estou com vergonha dele me ver assim. A ideia inicial era voltar a ser quem eu era antes, e nunca virar uma nova pessoa. E se ele me ver nesse estado e desistir de vez? Não posso permitir uma coisa dessas, então liguei para o doutor e pedi a receita, torcendo para que minha voz não tenha se alterado, pelo menos não totalmente. O doutor disse que eu poderia passar em seu consultório para pegar os remédios quando quisesse, então o fiz. Fui até lá com óculos escuros e boné, com medo que ele me visse naquele estado. 

De uma forma que até mesmo me incomodou, sua assistente me entregou os remédios tranquilamente, sem nem mesmo confirmar a identidade ou usar algum método de segurança para saber quem eu era. Apenas cheguei e disse o que eu queria, e ela me entregou. Isso foi espantoso, pois esses remédios são fortes. De toda forma, agora eu os tinha, e se tudo saísse como eu gostaria, as alucinações terminariam. 

Quando cheguei em minha casa, nem me preocupei em trancar a porta. Apenas tomei três comprimidos de uma vez e me deitei em minha cama. Após tomar os comprimidos, senti uma grande dor em meu peito e em minha cabeça. Comecei a ficar zonzo, mas consegui chegar em minha cama. 

Não sei por quanto tempo dormi, mas tive um sonho. Eu vi o doutor, minha irmã, e os homens que matei, e também via outras pessoas. Mas não eram eles de verdade, eu via seus reflexos em um espelho, em minha frente, como se fossem meus reflexos. Eu enxergava vislumbres de todos eles em mim, e via vislumbres de nós em cada um deles. Era como se cada um deles fosse eu mesmo, e eu via isso claramente no espelho. 

Não entendi muito bem o significado de tudo isso, mas foi o sonho que tive, e resolvi relatar aqui. Quem sabe em algum momento faça sentido. 

Quando acordei, me sentia bem. Temia ter sofrido uma overdose com os medicamentos, mas me sentia bem. E novamente eu estava naquela praça, como se fosse um ciclo doentio. Eu fingia viver, sentia febre, dormia e acordava nesse lugar, sujo. 

Às vezes, quando acordo aqui, me vejo sujo; me sinto sujo. Sinto como se todos fossem brancos, mas eu estou cinza, fui tingido por uma coloração mais negativa do que os outros, e dessa forma, se eu encostar em algum deles, eles ficarão exatamente assim como eu. 

Por esse motivo devo me afastar de tudo e de todos, antes que outro lado meu decida causar mal a alguém novamente. Eu nunca mais farei isso. Se causarei mal, que seja a mim mesmo; a minha própria e maquiavel existência. 

Por esses dias não tive nenhuma alucinação, embora elas tenham voltado, me fazendo desistir de ter uma vida normal. Não acredito mais que eu possa fugir de tudo que fiz. Acho que devo aceitar cada fragmento que atravessa minha memória, junto de cada fantasma trazido por essas memórias póstuma. Sim, póstumas. Uso essa palavra pois acredito que meus antigos “eus” estão mortos, já que nunca mais apareceram para me infortunar. Na realidade, existem mais duas opções: eles podem ser os causadores dessas alucinações, ou estão esperando este “eu” sucumbir para puxar o tapete e voltar ao topo, me pergunto qual delas assumiria essa função, de guiar essa vida miserável. 

Quando me acostumar com tudo isso, irei ver o doutor. Após ponderar muito, vejo que só há duas maneiras de sair desse ciclo. Eu irei conversar com ele sobre isso, pois é o único homem que confio hoje – confio mais do que em mim mesmo -, e sua opinião me é de suma importância. Quero saber se ao falar sobre isso em voz alta, continuará fazendo sentido. Quero saber se os olhos do remetente irão se arregalar perante tamanho exagero e horror dito, ou se se curvarão e concordarão com o que tenho a dizer. Espero que ele concorde comigo e me apoie. Às vezes, tudo que um homem precisa é de um pouco de apoio, mesmo que seja apenas pelas aparências. Não precisa concordar comigo, apenas me demonstre apoio e apreço, e eu lhe serei eternamente agradecido. 

Caso essas duas formas de escapar não funcionem, então não há outra solução para mim além de dar a mão para os condenados e caminhar com todos eles. Quem sabe eu até mesmo pare diante de um oficial e confesse tudo que fiz e o crime que cometi. Que emocionante seria isso! Seria açoitado, preso e chutado, junto aos miseráveis, e talvez assim eu possa sentir alguma coisa. 

 

 

Após alguns dias, decidi que sentia uma enorme necessidade de ver o doutor, então fui até seu consultório. No caminho, com mensagens de texto, disse que precisava vê-lo o mais rápido possível, e este disse que eu poderia passar em seu laboratório. Ao chegar, apenas fui entrando, sem me importar se me impediriam ou não, afinal, eu deveria estar ali. O que acho curioso é que, embora seja um bom lugar e aparente um bom negócio, nunca há outras pessoas pelo consultório do doutor, ou eu apenas estou divagando demais para notar todos os outros. 

Me aproximei de sua sala e entrei. 

— Olá, doutor. – Disse para anunciar minha entrada, mas não havia ninguém ali. 

Me sentei e ali permaneci, sozinho, onde pude observar melhor sua sala. Quando pousei meus olhos sobre um armário ao norte, vi uma máscara de gesso e me lembrei de quando a criamos, sentindo até mesmo uma certa nostalgia. Indaguei-me sobre se ela ainda permanecia igual ao meu rosto, então me levantei e fui em sua direção, pegando-a e colocando sobre meu rosto. Sua textura era esquisita, gélida, e tive que permanecer com o rosto inclinado para cima, pois tinha a sensação de que ela poderia cair se eu olhasse para baixo e se quebraria em mil pedaços. Assim rodei, olhando em volta, embora tenha sido uma tarefa complicada, pois sentia que se a soltasse, ela cairia. 

 Quando o doutor entrou na sala, eu estava com aquela máscara sobre o meu rosto. 

— Olá, doutor. 

Ele nada disse, apenas me olhou. 

— Já faz algum tempo que não lhe vejo, não é? 

O doutor se aproximou de uma pia que havia ali e começou a lavar algumas ferramentas, em silêncio. Ele possuía muito trabalho a ser feito. Me sentei em seu divã e ele começou a dizer, sem olhar para mim. 

— Sabe? Eu estava pensando em você hoje. 

— E o que pensava? 

— Que tem sorte. Quero dizer, na mesma medida em que encontro inconsistências em seu caso, que pode parecer um simples caso de filme de terror, também o acho tão belo e sublime que sinto a sentir inveja. Às vezes, eu gostaria de me transformar em outra pessoa. Gostaria de saber como é ser diferente. Sabe no que acredito? Que, se isso fosse comercializado, não haveria mais pessoas descontentes no mundo, embora estes possam continuar a ser inconformados. Todos seriam curados, e seriam felizes. Imagine só, máscaras comercializadas, que permitem que você se torne outra pessoa. Um homem tímido pode ser uma estrela do rock, um homem feio pode se tornar um galã de novela, pode ser bonito. Você pode ter um nariz novo, um novo queixo, boca, você pode ser quem você sempre quis ser. Mas nem tudo nesse mundo pode ser belo e sublime, não é mesmo? Não digo nem pelo lado criminal ou maléfico, mas me pergunto quantas máscaras seriam necessárias para fugir do vazio interior? Quantas máscaras um homem compraria; quantas vezes iria mudar, antes de perceber que não possuem defeitos alguns: que na realidade, este homem é vazio. Embora possa fingir ser alguém diferente, um homem não pode fugir de si mesmo, não é verdade? Você deve saber disso melhor que ninguém. O belo e sublime, embora possa ser atrativo, possui dois lados: é prazer para um, e dor para o outro. 

— Acredito que se isso fosse comercializado livremente, seria o fim da humanidade. Todos se esconderiam, todos se enganariam mais do que costumam fazer, apenas para aumentar o ego. Um homem com baixa autoestima se esconderia livremente em um personagem, se prendendo em uma vertigem; em um sonho. Ninguém mais viveria: todos sonhariam. E o que você faz quando possui um sonho ruim? Tenta acordar, e dorme para sonhar novamente. Se está cansado do sonho, basta sonhar outro, antes que se perca em um pesadelo. O produto está aqui, pronto para ser usado, mas está quebrado. Tudo está quebrado; todos estamos. Posso dizer isso mais do que ninguém, pode se transformar em quem você quiser, sim, mas não há como fugir de si mesmo. Não há uma forma de esquecer quem você é, pois um dia tudo isso voltará para você, e isso é certo. Esse tipo de fatalidade cerca nós, humanos comuns, e é tão clara como fantasmas na neve. 

— O que te trouxe até aqui hoje? 

— Há dias que venho alucinando. Novamente mudei de vida, e as alucinações vieram juntas. Estou aqui agora pois sinto a necessidade de falar com alguém, então quero que me escute. Disse que me ajudaria; que seria meu confidente, não é mesmo? 

Contei para o doutor sobre as alucinações, e sobre como venho sofrendo desde então, acreditando que isso nada mais é do que a culpa voltando para mim, mas nada disse sobre o assassinato que cometi. 

—... e agora acredito que só há uma maneira de fugir de tudo isso. Estou pensando nisso há dias, e quem sabe finalmente tenha tomado a coragem. Você sabe como é, mudanças drásticas exigem muita coragem de seus hospedeiros. 

— No que está pensando? 

— Na verdade... esqueça isso, por favor. Não quero lhe incomodar com bobagens. 

O doutor me olhou com um olhar complacente, e senti raiva, muita raiva de mim mesmo. Eu não estava falando nada com nada, e sentia pena de mim mesmo pelo discurso eloquente que fiz, tão melodramático e tão vitimista. Como eu poderia preocupar um homem como o doutor com minhas chateações, o que ele me deve, para ter que ouvir tudo que tenho a dizer? Não. Não devo incomodá-lo, estou tão agoniado comigo mesmo que resolvi me calar no mesmo instante. Sentia tanta raiva que poderia arrancar minha boca fora, para não dizer mais nada. Também senti raiva daquele maldito doutor, pois ele não me via como um amigo, e sim como um paciente. Decerto que estava a me analisar criteriosamente desde o minuto em que entrei aqui. 

Senti tanta, mas tanta raiva, que decidi sair dali, mas disfarcei isso com uma desculpa esfarrapada, dizendo que tinha que resolver algo em algum lugar ali próximo, envolvendo minha irmã, e dizendo que logo o ligaria para sairmos novamente. 

Quando me vi livre de seu laboratório, coloquei as mãos nos bolsos e comecei a caminhar, apressado. Sentia frio; estava frio, um frio que me fazia pensar e caminhar mais rápido, para esquentar o corpo, e deixava meu nariz gelado. Enquanto caminhava, me perdi em meus pensamentos.  

Tudo estava branco, um grande clarão de luz, e vi minha irmã e o doutor. Eles estavam felizes, eles estavam comigo e me faziam felizes, mas minha irmã não pode me ajudar quando tudo aconteceu comigo. Eu estou sozinho agora, mas posso ter um sonho legal. Isso parece um sonho legal. 

Não sei se caminhei por 10 minutos ou por 2 horas. Não sei nem o caminho que fiz para chegar até ali, mas sabia exatamente para onde estava indo. Eu sempre soube. E embora estivesse perdido em minha mente, eu atravessei aquela praça, próximo de onde não há muitas pessoas, e me aproximei do parapeito daquela ponte – eu já havia estado aqui antes, algumas vezes -. não olhei em volta, para o inferno todos os outros; todos que poderiam ser expectadores. Do que me importava eles ali? Nada! Eles não me importavam nada! Eu precisava tentar. Sabia fatalmente que precisava tentar, ou morreria antes de perder a vida. Sucumbiria em agonia, em fantasmas, sem saber se poderia ter dado certo ou não. Antes morrer com a certeza do que viver com a dúvida, antes se conformar, do que viver em uma ilusão, e é exatamente nisso que tenho vivido: em uma grande ilusão. Em um segundo, como que para fugir deste sonho – ou melhor, desta vida -, pulei aquele parapeito, caindo direto naquele rio, de onde não faria esforço nenhum para sair. 


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Notas finais do capítulo

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