A Outra Face escrita por Taigo Leão


Capítulo 8
Capítulo 8




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No dia que se seguiu ao ocorrido, não fui trabalhar. Permaneci deitado o dia inteiro, me lembrando do que fiz na noite anterior: quando cheguei em meu apartamento - graças a Deus já era tarde e não havia ninguém por aqui -, tirei toda minha roupa e me apressei a lavar minhas mãos. Esfreguei as duas avidamente e passei até mesmo esponjas e buchas. Lavei também o canivete e o larguei ali, no banheiro. Quanto as roupas, tanto a blusa como minha calça, meias e sapato, revirei-os e averiguei cada milímetro de espessura deles, na busca por qualquer vestígio, mínimo que seja, de algo parecido com sangue. Os coloquei para lavar mais de uma vez até me sentir satisfeito, e mesmo agora, não me sinto satisfeito. Talvez eu jogue tudo isso fora. Talvez seja melhor assim.

Estava com muita febre, e até mesmo delirava. Comecei a acreditar que tudo fora deste apartamento seria meu inimigo. Todos lá fora, decerto sabiam o que eu tinha feito, e todos me culpariam e me julgariam por isso. Liguei a televisão e coloquei no canal de notícias, para ver se descobria algo sobre aquilo, mas não vi uma única reportagem sobre isso.

Permaneci o resto do dia deitado. Às vezes dormia, às vezes acordava. Sempre com sonhos confusos, gemendo e com febre. Me perguntei a origem de tudo isso e indaguei que, se todos que cometem algum tipo de crime se sentissem assim, cessariam com essas bobagens. Me sentei em minha cama e levei as mãos até o rosto. Eu não podia acreditar que havia feito aquilo. Senti um grande conflito interno dentro de mim, pois, ao que parecia, um de meus eus estava de acordo com isso.

Ao menos agora, minha irmã estava segura.

Novamente me pus a lavar aquelas roupas, mas ainda não me sentia 100% seguro. Não consigo acreditar que realmente havia feito aquilo. Para mim, parecia um longo pesadelo. Eu conseguia me lembrar do rosto deste homem, conseguia me lembrar do sangue em minhas mãos, e até mesmo imaginava que ainda havia sangue em minhas mãos.

Resolvi rasgar todas as peças que usei ontem, pois assim me sentiria mais seguro. Eu ainda estava com febre, então novamente adormeci, no meio do serviço, de forma que segurava uma das meias enquanto dormi.

Enquanto dormia, sonhei. Tive um pesadelo: sonhei que matei aquele homem, como fiz, mas assim que terminei de fazê-lo, olhei para o lado e vi minha irmã, perplexa... “Irmão...”, ela me disse. De alguma forma ela sabia quem eu era, e o pior de tudo foi o horror em seu rosto, ao ver aquela cena. Ela estava tão assustada quanto eu fiquei, e eu conseguia ver o motivo: eu estava sorrindo. Estava sorrindo depois de ter matado aquele homem. Eu estava seguro e contente comigo mesmo por ter feito aquilo.

Novamente acordei, assustado. Ainda sentia febre, e também dor de cabeça.

Sempre gostei de sonhar, mas não gosto de ter pesadelos. Ter pesadelos é ter completa noção de que tem algo ruim acontecendo em sua mente e que você não pode controlar. Este pesadelo, por exemplo, vai totalmente contra o que acredito. Nunca acreditei ser capaz ou sentir vontade de matar alguém, muito menos me sentir feliz com isso. Ter pesadelos é como se você estivesse se traindo.

Eu não estava feliz. Não estava.

Após terminar de rasgar as roupas e jogá-las no lixo, fui para o banheiro.

Tomei um banho demorado, e assim que saí dele, confesso que dei um grito alto, de forma que até mesmo caí para trás. Quando pude me recompor, me levantei e olhei novamente no espelho. Corri para o quarto e olhei no espelho do guarda-roupa, então voltei novamente ao banheiro. Eu não podia acreditar: eu havia mudado de rosto novamente.

Não para meu antigo eu, agora eu era uma nova pessoa. Eu parecia com o homem que matei, mas era um pouco diferente. Mantive traços de meu rosto anterior.

Fui tomado por uma onda de nada. Não era medo, não era desespero ou temor. Não era nada além de um grande vazio.

Fiquei nostálgico ao me lembrar de como me senti e o que fiz na primeira vez em que mudei de rosto. Como esfregava os olhos, como tomava banhos quentes, passava gelo no rosto. Tudo que fiz na esperança de atacar essa máscara e fazer com que ela caia de seu rosto, me fazendo voltar para minha verdadeira vida.

Não apenas meu antigo “eu” ou meu novo “eu”: agora eu não sou ninguém.

Em meu novo rosto não vi nada de bom, mas estranhamente me conformei com tudo que me encarava no espelho.

Sentei no chão de minha sala e olhei todas as paredes deste maldito quarto, que tanto me sufocava nos últimos dias. Confesso que me senti preso durante todo esse tempo. Preso nessa vida, neste quarto. Preso neste corpo, que não me pertence, onde não me sinto confortável, não importa o que eu faça.

Eu precisava sair desta vida. De forma alguma poderia me prender neste lugar. Imagine como a síndica reagiria ao ver um novo homem no apartamento que alugou para aquele que eu era a poucos dias? Mas, quem eu era? Sou realmente um metamorfo? Eu já fui verdadeiramente alguém, em algum momento de minha vida?

Agora sinto muito medo de esquecer quem eu já fui. Principalmente tendo que lidar com quem sou agora.

Ao anoitecer, juntei todas as minhas coisas importantes em uma única bolsa. - eu não possuía muitas coisas -, e de resto, joguei fora.

Pela madrugada, peguei a bolsa e saí, deixando a porta do apartamento encostada, com a chave ali. Não deixei um bilhete, mensagem, recado ou dinheiro, apenas parti.

Nas ruas, comecei a caminhar, pensando em tudo que me aconteceu nesses dias. Pensando em como tenho me sentido, e em como tudo isso me afetou.

Quando me senti muito cansado, decidi parar próximo de um pequeno lago, em algum canto da cidade que não conseguia me recordar de já ter estado anteriormente.

Eu estava em alguma espécie de parque, parecia ser isso.

Já era madrugada, então esse lugar estava completamente vazio.

Caminhei por ali, no escuro, olhando aquela natureza sombria, que, embora de dia seja bela, a noite me causava certo arrepio e até mesmo me causava desgosto de olhar. Não sei se era pela ambientação ou pela amargura que sentia, mas pelo que lembro, sempre me sentia assim em lugares abertos pela noite. De dia pode ser um lugar bonito. Verde, alegre. Até mesmo esperançoso. Mas a noite, parece o cenário ideal para um filme de horror. A noite podem acontecer qualquer tipo de coisas sombrias neste tipo de lugar, sem que ninguém tenha ciência disso. Quão sombria e amarga pode ser a vida humana. Quanto fascínio sinto por essas hipóteses que rondam minha mente, me deixando, de certa forma, animado.

Mais do que tudo, me sentiria feliz se aparecesse um maníaco e desse cabo de minha vida, agora mesmo.

Me sentei a sombra de uma árvore, e ali fiquei encolhido, olhando para o céu, até que adormeci.

Nesta noite eu tive um sonho.

Sonhei que estava neste mesmo lugar, dormindo, e que alguém caminhava em minha direção. Eu estava desacordado, mas, por algum motivo, tinha plena ciência de que essa pessoa estava vindo. Eu não sei quem era, mas não sentia medo ou uma espécie de incômodo mediante tamanha situação duvidosa. Eu não sentia nada, nem mesmo vontade sair dali, enquanto ela se aproximava mais e mais, trazida pelo vento que soprava em meus ouvidos e em meu rosto. Essa pessoa se aproximou e eu vi que era uma criança - talvez por isso eu não senti medo ou algo de ruim -, o que chamou minha atenção foi não conseguir me mexer quando ela se aproximou, como se eu estivesse grudado ali, naquela posição. A criança se mostrou meio acanhada, e, passo a passo, foi ficando mais próxima, até que esticou a mão e tocou em meu rosto, na verdade, foi como se eu não estivesse verdadeiramente ali. Eu senti algo estranho. Muito estranho. Não conseguia entender se sua mão passou por mim e tocou a árvore, ou se ela tocava meu rosto, que estava na árvore. Talvez eu fosse uma estátua, não sei dizer exatamente o que fui ou o que sentia, só sei que era como se eu não estivesse totalmente ali: A criança olhou para mim, caminhou em minha direção, sorriu para mim e me esticou a mão, mas ela não olhava diretamente para mim. Seus olhos olhavam além de mim, como se eu fosse um fantasma. Ser visto por ela se mostrou uma tarefa não somente árdua, mas completamente impossível; ser visto não estava ao meu alcance.

Quando acordei, eu sentia febre. Muita febre.

Eu ainda estava sobre a sombra daquela árvore, e o dia estava nublado.

Ao menos este meu novo “eu” consegue sonhar. Só espero que não seja uma nova personalidade completamente autoritária, ou que entre em conflito com os que já estavam aqui. Eu só gostaria de viver em paz comigo mesmo, mas possuo muitos eus, mais do que consigo lidar.

Para além de tudo, sentia uma grande culpa e tristeza. Eu havia matado um homem. E minha mente se mostrava tão assustadora para mim, e de forma tão confusa, que me deixava completamente atônito perante minha realidade, sem conseguir me ver em pleno convencimento que, discretamente, não alterei minhas memórias, quando na verdade fui o assassino daquele primeiro homem, o que me transformei. Não consigo acreditar sem pestanejar nisso.

Se a condição para me transformar for matar alguém, então morrerei neste corpo, envolto de tanta neblina e tristeza, que não poderei nunca mais saber o que é se sentir normal, pois para mim, isso é impossível.

Posso parecer um tolo, ou até mesmo depressivo, mas a verdade é que talvez agora finalmente esteja compreendendo todos os fatos e processos que me trouxeram até aqui, e se você ainda me acompanha, gostaria de saber o que pensa sobre tudo isso. Parece muito para compreender – e realmente é -, mas espero, de alguma forma, sair disso.

Havia algumas pessoas no parque, mas elas não olhavam para mim. Fiquei ali por alguns minutos e olhei para todos que passavam, mas eles não correspondiam meus olhares. Como em meu sonho: eu não era visto por ninguém.

 Talvez eu estivesse apenas imaginando que não me olhavam, mas bem sei que essas pessoas não possuíam um único motivo para olhar para mim, um homem qualquer que perambula pelo parque.

 A verdade é que embora me sentisse muito, mas muito chamativo; embora cresse fielmente que estava no ápice do horror humano, eu era um homem comum. Podia estar podre e sujo, mas este era o padrão dos que estão na mesmas condições que eu, nesse tipo de lugar. Sei bem como, embora tenha saído de casa na noite anterior, eu podia facilmente ser confundido com um morador de rua. Eu me sinto tão vazio quanto eles se sentem.

Espero que algum dia estes sejam capazes de olhar para mim.

Passei o resto do dia caminhando pela cidade. Indo em parques, edifícios e qualquer tipo de lugar que pudesse entrar. Caminhei por uma rua qualquer até sentir fome, então entrei em um lugar para comer.

Torcia fielmente para ser cometido como um morador de rua. Torci para que chamassem um segurança; que me açoitassem para sair daquele lugar. "Ele não está bem-vestido.", "Quem é esse homem horrível?", os clientes se incomodariam com minha presença e decerto diriam isso sobre mim, alertando os funcionários e os guardas, e estes concordariam, pois sempre estão do lado das senhoritas que frequentam esses comércios nesses horários, e então estes me pegariam pelos ombros e me convidariam a me retirar, mas eu relutaria muito, muito mesmo, para não ser expulso. Eu poderia passar um vexame, e até mesmo ser exposto – não seria mal algum –, sendo pressionado por eles até meus limites, onde perderia minha razão e os limites da gentileza, e possivelmente até mesmo chegue a gritar e ofender todos eles, até mesmos as senhoras que apenas olhariam, incrédulas, esse tipo de situação. "Pobre homem.", "O que estão fazendo com ele?", elas diriam, para passar a imagem de inocentes, quando na verdade foram os demônios que colocaram essa semente maléfica na mente destes pobres guardas. Mas eu não teria nada a perder. A todo custo compraria algo naquele maldito lugar para comer, e se estes me expulsarem, então eu os atacaria com palavras e gestos, e até mesmo os acusaria! Mas tudo isso quando, no fundo, desejaria que acontecesse. Gostaria desse tipo de chacoalhão; desse tipo de choque, pois talvez nisso eu consiga voltar para minha realidade, e eu gozaria muito, pois aquele maldito guarda, para me atacar desse jeito, tem que me olhar! Ele estaria olhando para mim, isso é certo, e, quando me levantasse, ou até mesmo se zangasse ao ponto de usar violência para me tirar dali, então decerto ele estaria me dando mais atenção do que deveria, e para isso é necessário que me veja; que me note: é necessário que despeje toda sua atenção em cima de mim.

Mas para minha mais cabível insatisfação, nada de ruim me aconteceu quando adentrei aquele lugar, em busca de comprar algo para comer. Me senti extremamente insatisfeito, de forma que não aguentei permanecer, então saí e busquei outro lugar, de onde me expulsassem, e novamente isso não ocorreu.

Meus farrapos eram indiferentes naquele lugar, e não causavam nenhuma indagação ou escândalo; ali ninguém me notara. Eu poderia andar como e por onde quiser, sem ser visto, como o moribundo que acreditava ser. Embora me sentisse extremamente desagradável e horrível, eu era apenas mais um, e não há um único lugar neste mundo onde ser apenas mais um significa ser digno de atenção alheia.

Quando a noite chegou, eu ainda estava pelas ruas. Passei três dias vivendo desse jeito, como um andarilho noturno. Apenas caminhava sem saber bem para onde estava indo, e logo voltei para o apartamento onde vivia: durante o dia não ousava abrir uma janela, porta ou sair daquele lugar, que permanecia sendo meu mundo, longe de tudo que não é confuso; de tudo que não é misto. Dentro do quarto permaneci, protegendo nós dois. Me afogando, em um pequeno quarto. E apenas quando já era noite, bem tarde, mais tarde do que as pessoas costumam estar pelas ruas, então eu saía. Saía para caminhar, e eu andava. Andava até minhas pernas começarem a doer, tentando sair, para longe disso, mas não conseguia abandonar esse lugar, ou talvez eu não quisesse abandonar esse lugar. Não tenho uma resposta para isso. Apenas parava em um canto qualquer e jogava meus pensamentos para o céu, na esperança de que eles cheguem até alguém.

 

 


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