Jovens Afortunados escrita por Taigo Leão


Capítulo 4
IV




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Natasha,


Como me envia uma flor assim, sem mais, nem menos? Vejo quanta delicadeza há em tuas letras… Quanta paciência tem comigo... Inicialmente teu presente me pegou de surpresa, mas confesso que nesses últimos dias tenho cuidado da rosa como se fosse um ente querido. No primeiro dia deixei-a por um momento em um copo com água, mas logo a coloquei em um vaso um pouco maior, sabe? Não é como o seu jardim, mas ela está sobrevivendo. Alimento-a com minhas palavras sinceras, borrifo água em suas pétalas e a coloco próxima da janela para pegar um pouco de sol.
Sei que não sou o melhor cuidador do mundo e tão logo ela perecerá, mas enquanto permanecer comigo, lhe darei atenção e carinho. Cuidarei dela com muito zelo, pois, meu anjinho, estou cativado. Agora digo que tem razão, é como se um pedaço seu estivesse aqui comigo.
Hoje enquanto permanece viva, ela é minha confidente fiel. É como se, em reação a rosa, uma outra, tão bela, estivesse florescendo dentro de mim, me trazendo alegria.
Por coincidência, no dia em que me senti melhor, o sol estava no céu. Fui trabalhar com ânimo e não me deixei chatear pelos aborrecimentos típicos de qualquer dia de trabalho. Quando estamos no meio de um trabalho braçal, as coisas são assim: aborrecimentos contínuos, causados pelas pessoas de cabeça quente. O problema é que todos ali possuem a cabeça quente.
Logo após o trabalho, me encontrei com o homem da praça. O levei um pão que havia guardado e um pouco de café.
Esse homem sempre está na praça, no centro. Deixe-me contar sobre o primeiro contato que tive com ele:
Era um dia cinza como qualquer outro e eu estava sentado em um banco, olhando para as ruas, quando vi aquele homem sentado em um banco à minha frente, do outro lado da praça. Ele me encarava. "Ora, deve ser um sem-teto", Foi o que pensei, mas estava enganado. O homem então, vendo que eu desviava o olhar, veio e sentou ao meu lado, sem dizer uma única palavra, ele apenas procurava olhar para a mesma direção que eu.
"O que tanto está olhando?", Ele me perguntou. "Eu não sei, apenas olho.", Respondi.
"Também gosto de olhar, sabe? Por isso estava te olhando agora a pouco. Você olhava para essa direção tão concentrado e fixamente que eu procurei olhar para o mesmo ponto. O que vê? As pessoas passando...?", "Está vendo aquela mulher? Isso, a do vestido rosa, com sacolas de uma loja de roupa nas mãos. Olhe como ela mantém seu nariz pontudo empinado. Vê como ela caminha? Passos de uma madame, isso é certo. Vê como ela olha com desdém para as pessoas que estão passando? E aliás, observe o horário. Uma mulher caminhando tão lentamente e com um vestido tão bonito... Ela não tem um emprego. Deve ser dona de casa, ou tem um marido com um bom ganha pão, o que lhe dá o direito de sair pelas ruas neste horário sem ter preocupações. Através de seu caminhar, consigo deduzir que não possui muitas preocupações em sua vida pessoal. Consigo deduzir que ela possui bens e recursos, pois ela não possui o semblante cansado de quem trabalha para sobreviver. Decerto ela repousa a cabeça tranquilamente no travesseiro, pois a forma de andar e o rosto das pessoas, através destes conseguimos ver como sua vida tem sido.", "Mas olhe só, que pessoa vive neste bairro e possui condições o bastante para olhar com desdém para os outros? Vivo aqui desde novo e cheguei a uma conclusão: todos somos pobres. Isso porque creio que existam dois níveis de pobreza: Se não pobres monetários, somos pobres de alma. Algumas pessoas possuem recursos, mas suas almas são tão pobres, tão vazias, que passam a vida gastando seus recursos com coisas materiais, na esperança de que isso preencha o vazio que sentem dentro de si. Você acha que isso serve de algo? Olho para você e olho para aquela mulher e digo algo: os dois parecem infelizes, mas ainda assim, você não parece estar em um estado tão crítico quanto ela. Mesmo vazio, ainda vejo algo em você. Você não parece tão pobre de alma assim. Olhando para seus olhos, como estava fazendo, vi um pouco de esperança, mas seu rosto... Seu rosto mostra como você tem vivido. Você está cansado. Tem trabalhado muito, ou é outra coisa que o chateia? Mantenha essa esperança que vi em seus olhos, rapaz. Se lembre disso, pois em dias nebulosos, de pensamentos cinzas, nós precisamos acreditar em alguma coisa. Algo que nos animará novamente. Um dia de cada vez, não é mesmo?".
Não conseguia acreditar nas palavras do homem, que se via em plenas condições de julgar aquela mulher que caminhava pelas ruas, apenas pelo seu andar! Ele deduzia tudo sobre sua vida e sobre a minha, e me dizia aquelas coisas como se eu fosse seu confidente. Aquele homem, o mesmo homem que havia se sentado ao meu lado, com uma aparência peculiar, estava julgando uma pessoa que poderia ser da alta sociedade. Ele falava aquelas palavras mesmo sem meu olhar de atenção. Parecia que não se importava se eu realmente estava prestando atenção. Ele apenas queria dizer aquelas palavras para quem fosse, e foi o que ele fez, até que se levantou e saiu sem dizer mais nada, com um sorriso no rosto, e me deixando curioso sobre sua situação. Quem era aquele homem?
Não tive a oportunidade de saber o seu nome, e no dia seguinte não o vi. O que me deixou curioso sobre e, sem entender bem o motivo, senti que necessitava vê-lo ao menos mais uma vez, e conversar com sua pessoa. Algo naquela conversa foi o bastante para me deixar com uma pulga atrás da orelha; foi o bastante para ele ter minha atenção, mesmo depois de ter ido embora.
Não sei bem explicar o que senti ao conversar com tal pessoa, mas consigo dizer que precisava sentir aquilo novamente.
No terceiro dia, quando o vi novamente, ele estava no mesmo local: sentado à minha frente, e me olhava com um brilho nos olhos. Percebi que, assim como eu, ele também estava feliz por me ver ali. Era como se tivesse plena ciência da curiosidade que colocou em minha vida, como se soubesse que eu estava ali apenas para vê-lo. Ele tinha razão.
Só que mais do que isso, senti que ele também possuía essa necessidade de me ver ali.
Passei boa parte de meus dias sozinho nessa praça, então nunca me importei com as pessoas à minha volta. Dessa vez foi diferente, estava ali apenas para ouvir mais sobre o que ele tinha a dizer.
"Você está aqui novamente. Eu nunca mais vi aquela madame. Acho que ela só passa por aqui quando sente vontade de fazer compras para si própria. Quanto ao resto das despesas, creio que designa algum contratado para fazer esse tipo de serviço. O que acha?", ele disse após se sentar ao meu lado. Concordei com ele e disse, sarcasticamente, que esse bairro não estava na altura de uma mulher de tal nível, e, por isso, ela só aparecia eventualmente nas ruas, como um evento anual, ao qual os cidadãos mais desafortunados como nós deveríamos cair aos seus pés e comemorar esse tipo de situação, da mesma forma que as vendedoras que a atendem nas lojas, pois tal esplêndida aparência e brilho não é algo que temos a sorte de presenciar todos os dias. Este comentário o fez rir alto, jogando a cabeça para trás.
"Acho que ela pensa da mesma forma que você. Acredito que ela fique chateada com as pessoas que não deixam de fazer o que estão fazendo para olhar diretamente quando ela entra nas lojas ou passa pelas ruas. Acredito que ela pensa ter preferência em qualquer loja, pois deve possuir mais fortuna do que o resto de nós. O que me pergunto é: Por que pessoas desse tipo – que esbanjam classe e menosprezam os como nós –, por quê essas pessoas não saem simplesmente deste bairro e vão para um que está a sua altura? Lhe digo o motivo que encontrei: esse tipo de gente só é grande em suas próprias cabeças. Os ricos de verdade, os de alta classe, eles não menosprezam as outras pessoas da forma que essa madame faz. Na realidade eles nem ao menos se importam com esse tipo de pessoas. Para eles, nós somos lucros e não aborrecimentos; somos pessoas assim como eles. Isso porque os ricos de verdade um dia foram desafortunados, então eles claramente entendem como nós somos e o que pensamos. Entre eles, ela não seria nada. Apenas mais uma pessoa vazia.
Os ricos de verdade não se aborrecem se o café na cafeteria atrasou ou se tal loja não possui em estoque o tamanho certo ou o chapéu da forma que eles imaginaram. Eles se preocupam com o trabalho, com a sociedade como um todo e com assuntos cultos, como política, jornalismo e a literatura, ou até mesmo os esportes. Muitos dos homens ricos preencheram seu vazio se fazendo de benfeitores. Eles dividem seus bens, investem em ações e procuram por mais conhecimento. Alguns até mesmo andam pelas ruas como nós, e são bem educados. Você nunca saberá quem é aquela pessoa. Na verdade, você nunca saberá quanto aquela pessoa possui, pois estas pessoas não deixam o dinheiro mudar sua essência."
"Mas alguns deles, os mais tolos, são tão vazios ao ponto de se acharem maiores do que as outras pessoas. Me diga: o que importa mais, o material ou o interior? Me conte sobre um homem que menospreza os demais por se achar superior e não é vazio por dentro. Me conte sobre um homem que tem tudo o que quer, possui uma grande profissão, uma grande casa, um grande carro e no fim, quando chega em casa, não sente esse grande vazio? Um homem que descansa a cabeça em seu travesseiro e não lamenta sobre nada. Eu lhe digo que aquele que não possui lamentações, não vive uma vida de verdade. Triste é o homem que não tem lamentações. Triste é o homem que não se preocupa com nada, que não esconde nada das outras pessoas e que não tenha palavras engasgadas dentro de si! Acredito que o que nos faz sermos quem somos é o fato de termos algo a esconder das outras pessoas, algo que não mostramos a quase ninguém por achar uma fraqueza ou algo horrendo. Isso pode ser qualquer coisa, desde um desejo primitivo até um amor verdadeiro. Para os homens normais, o que mais dói é a distância entre um deles e tudo o que ele quer dizer."
"No fim, acredito que ela seja mais vazia do que você.", foi o que ele me disse antes de se levantar e sair daquele lugar. Por duas vezes o chamei para perguntar seu nome, até que ele finalmente parou e olhou para trás, com alegria nos olhos. "Não tenho um nome.", foi o que me disse antes de sair andando.
Não podia acreditar que tal homem de aparência medíocre e descuidada poderia falar palavras tão profundas. Novamente ele falava e me abandonava ali sem um ponto final. Na realidade, me deixava ansiando por mais... Eu gostaria de uma continuação, como se ele fosse o pastor e eu fosse apenas parte de seu rebanho, que estava ali apenas para escutar os ensinamentos. Era exatamente isso que ele queria, e no fim, conseguiu.
Nos últimos dias a tristeza tomou outro rumo e se revelou em uma grande incógnita; uma curiosidade.
Me diga, meu anjinho, o que pensas disso?


De seu amigo curioso,
Alego.

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Alego,


Meu querido! Sei bem que você se vê da forma que esse homem lhe contou. Também sei como é deitar a cabeça no travesseiro e se lamentar, e concordo em partes que, uma pessoa sem lamentações, não vive uma vida de verdade.
Mas, meu amigo, temo por você. Temo que tu se esqueça de viver! Tens que manter o vazio longe e viver ao invés de apenas existir. Então afugente, afugente esse vazio com o que quer que seja! Saia de casa, veja o sol ou o céu nublado. Leia um livro. Cuide da pequena rosa. Venha me visitar!
Os últimos dias foram corridos para nós, não foram? Vejo em sua carta como tem se ocupado com o trabalho e com esse homem de quem fala, que diz não possuir um nome. Também vejo como você já é, parcialmente, um discípulo dele. Então lhe peço, meu amigo, cuidado com o que ele lhe diz. Cuidado com essa pessoa. Você sabe, esse bairro é farto de pessoas estranhas e a forma como ele chegou até ti... São coisas para se estranhar, não são?
Quem é a mulher de quem vocês falavam? A forma que você a descreveu me pareceu um tanto vago. Se falasse um pouco mais sobre ela, talvez eu lhe diria até mesmo o seu nome, afinal, pessoas assim me rodeiam, como você bem sabe... Mas você sabe do fundo de seu coração que não sou assim, não sabe, meu Alego? Sabe que não lhe vejo diferente de mim. O que nos separa não é e nunca foi a classe social, afinal tudo que "tenho", não é meu de verdade, e sim de minha família – além de que, isso não me significa nada –, nasci em um berço de ouro, em uma boa casa e com uma família normal. Você cresceu da mesma forma que eu, mesmo tua família não tendo condições como a minha. Na verdade, me arrisco a dizer que até mesmo em um lar mais amoroso do que o meu. No fim, penso que essa condição financeira não interferiu em nada, pois conseguimos, em parte, crescer juntos e felizes.
Tenho trabalhado mais um pouco. Fiz alguns quadros e os vendi para amigos de mamãe e colegas de trabalho que se interessaram, acreditas nisso?
Ah, Alego, agora tenho a certeza de que estou dando meus primeiros passos em direção a uma possível carreira – se não apenas uma vida sem sucesso – de artista. O que acha disso? Espero que tenha orgulho de mim, pois tenho de você e confesso que tuas cartas não me dão só esperança e cessam em partes minha ansiedade por ti, mas também me dão inspiração.
Usei parte do dinheiro que ganhei nos últimos dias para comprar uma pequena caixa de madeira com um cadeado, onde guardo tuas cartas. Esse é o meu tesouro, Alego, e agora possui um lugar especial.
É uma pequena caixa branca com bordas vermelhas. Ela não é pesada e consigo carregá-la sem problemas.
Antes era uma simples caixa para brincos e jóias, mas arranquei suas divisórias e agora ela guarda um tesouro muito maior do que jóias: nossa relação confidente. O que acha disso?
Por favor, me escreva mais.

Sua,
Natasha.

P.S: quase não tive tempo para cuidar das flores no jardim nesses últimos dias! As verei hoje, assim que lhe enviar essa carta!

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Natasha,


Tão logo já estou escrevendo a resposta para sua última carta...
Nos dois dias que se seguiram desde que lhe enviei a minha, não vi mais aquele homem. Me sinto agoniado, tenso e ansioso.
Penso que você não está certa. Talvez eu tenha dado muita atenção a ele, mas não vejo como se eu fosse um discípulo. Eu apenas dei atenção, pois se tem algo que aprendi nos últimos anos, meu anjinho, é que podemos tirar tudo de um ser humano, mas nunca devemos privá-lo de atenção. Todos nós precisamos de atenção. Se ele não fez mal a ninguém e não parecia fora de si, por quê eu deveria lhe negar atenção, ainda mais quando disse palavras tão profundas e não me incomodava nem um pouco? Pelo contrário, ele me despertava certa curiosidade!
Eu entendi seu ponto de vista e por isso o levei em consideração por mais um tempo, mas isso não quer dizer que confio cegamente naquele homem. Mesmo assim, agradeço pela preocupação.
Não sabe como me senti orgulhoso e feliz ao ler sobre sua vida de artista! Aliás, devo dizer que indiretamente já sabia dessa, pois através da janela, vi uma mulher passeando pela calçada, indo no caminho contrário de sua casa, com um grande embrulho na mão, o qual, pelo tamanho e formato, imaginei se tratar de um quadro, teoria que agora comprovo com seu relato.
Tu estás começando na vida, então mantenha a cabeça levantada e siga, pois você irá conseguir!
Não entendo em que ponto alguém como eu consegue lhe servir de inspiração, mas aprecio muito as palavras.
Ainda cuido da flor que me deu, mas sinto que ela está morrendo aos poucos. Sei que sua hora vai chegar. Ainda converso com ela e lhe dou amor, mas hoje vejo que isso não é o bastante, pois logo ela desfalecerá e isso é certo. Enquanto não acontece, cuido dela como se fosse um ente querido, adiando tal fatalidade. Cuido desta rosa como se fosse a coisa mais importante deste mundo, pois ela me foi dada por uma pessoa que prezo tanto. Assim sendo, ela é parte de nosso tesouro.
Nesses últimos dias me veio o pensamento de que somos como as flores e precisamos ser cuidados igualmente; Regados com afeto e carinho, tu não acha?
Eu tenho a certeza disso, pois tu, meu bem, é a flor mais bela de todos os jardins, e suas cartas têm me causado uma alegria, como se eu estivesse desabrochando e isso me é certo.
Tu é mais bela que as estrelas no céu.


Com amor,
Alego.


P.S. Alminha, hoje a literatura me faz falta, então sairei mais tarde à procura de algo para ler. Algo que realmente me chame a atenção, pois agora sinto o vazio de arte, que precisa ser preenchido com algum livro. Me recomendas algo?


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