Jovens Afortunados escrita por Taigo Leão


Capítulo 1
I


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem!



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Natasha!


Não sabes a alegria que senti quando recebi a notícia de que havia voltado! E mais, de que queria se comunicar comigo dessa forma! Você sabe, é difícil lhe ver pessoalmente, dada as circunstâncias.
Sei como o mundo anda se atualizando cada vez mais, mas, se puder, vamos manter esse tipo de comunicação, se não for um incomodo.
Sabe? Eu gosto de cartas. Gosto da sensação de escrevê-las e aguardar ansiosamente por uma resposta sua. Estou ansioso agora, enquanto escrevo essa.
Me conte sobre você! Me conte sobre o que tem feito, o que tens pensado... Me conte, Natasha, como anda seu coraçãozinho?
Tenho a impressão de que lhe vi ontem, através de minha janela lateral, regando as flores em teu jardim dos fundos. O sol lhe iluminava de uma forma em que seria um pecado se eu não parasse para admirar, então o fiz.
Você cuidando de suas flores, tão delicada..
Não entendo muito de flores, mas só de ver o cuidado e o zelo que você tem para com cada uma delas, me pareceu que isso realmente lhe é importante; Era como se o mundo ao seu redor estivesse parado enquanto você cuidava delas. O meu também parou naquele momento.
Me diga, Natasha, a quanto tempo se interessa por jardinagem? E o que mais lhe interessa?
Me conte mais sobre você, Natasha! Lhe vejo e lhe estimo, mas não a conheço com precisão. Não mais. Não sei sobre suas idéias, fundamentos e nada do gênero. Apenas conheci o seu exterior, anos atrás, e isso não me basta; anseio por mais. Então me escreva. Me escreva, por favor.
Quanta saudade senti! Me escreva!


Ansioso,
Alego.

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Alego,


É verdade que aceitei me comunicar com você dessa forma. Parece complicado se comparado com outras formas mais ágeis, mas não há mal nisso.
Esse é o nosso meio especial, e apenas eu e você saberemos como é a sensação. Quando receber essa carta, tu saberás qual é a sensação, da mesma forma que eu senti ao receber a sua.
Alego, meu querido. A quanto tempo moramos em casas próximas, mas não nos comunicamos pessoalmente? Se lembra de quando paramos de nos falar de repente? E logo então eu parti...
Não temos tempo, não o temos. O tempo é algo que sempre passa por nós, e repetindo uma frase que ouvi recentemente: quanto mais você tem, mais você perde. Quando percebe, já não há mais nenhum!
Não tivemos tempo, Alego, para nos despedir. Tu se lembras por quê não nos falávamos mais?
Ainda sobre o tempo: quando o temos, desperdiçamos com coisas vagas que queremos nesses momentos, até que percebemos o que foi feito. Então ali, novamente, perdemos tempo.
Você me viu pela janela? Oh, que vergonha! Eu cuido de flores há 8 anos, Alego. Desde que tinha apenas 12 anos de vida. Mas não sabia que tinha um espectador.
Minha avó me ensinou a gostar desse meio. Como cuidar, plantar e fazê-las crescer. É preciso ter sentimento por elas, meu amigo, ou não vão ser boas flores. Assim como na jardinagem, também é a vida. Nada nascerá de coisas ruins; nada nascerá do ódio. Então você precisa sempre regá-las. Não apenas com água, mas também com carinho.
Às vezes prefiro estar na companhia delas do que de pessoas. Você entende isso? Sei que é bobagem. As rosas não falam, mas as minhas são ótimas ouvintes.
Alego, você deve estar pensando que eu sou tola, não está? Há quanto tempo está rindo de mim enquanto lê essa carta? Oh, cessarei com esse assunto por ora.
Alego, não gosto muito de falar sobre mim dessa maneira, como se estivesse fazendo um relatório com o que gosto e não gosto. Ora, muitas coisas me agradam, outras nem tanto. Mas do que adiantaria listar todas aqui assim, sem um motivo, apenas por sua pergunta? Podemos entrar nos assuntos com o tempo, já que o teremos, aos pouquinhos, mas teremos.
Você tem sua vida e eu tenho a minha, mas vamos escrever essas cartas na esperança de que logo elas cheguem até o destinatário.
Tenho coisas para arrumar e coisas para (re)conhecer. Então, meu amigo, não lamente pela demora. Por favor, espere! Sempre lhe escreverei novamente.
Você então saberá mais sobre mim e sobre meus pensamentos...
De noite fez um vento gelado, então resolvi ficar em casa e tomar um café quente. Como você está aí? Espero que tenha uma boa noite de sono. Se cubra, por favor.
Oh, o mundo dos sonhos já está vindo me buscar.
Até amanhã.


Com amor,
Natasha.


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Natasha!


Recebi sua carta quando ainda estava na cozinha, tomando meu café. Tentei guardá-la para depois, mas não me contive, e apenas 29 minutos depois, já estava lendo seu conteúdo.
Hoje trabalhei, então não pude dedicar o início de meu dia para lhe responder. Mas essa situação não foi de todo mal, pois agora, ao anoitecer, consigo lhe contar sobre o meu dia.
Você já sentiu como se estivesse apenas passando pelos dias? Penso que se retirasse de minha vida as pessoas que me aborrecem, não sobraria quase ninguém.
Já me senti preso ao ponto de pensar em abandonar o trabalho. Mas o que adiantaria ter esse tipo de liberdade agora? A liberdade sem sentido não passa de um grande marasmo, e imagino que nem suas cartas dariam um fim a esse sentimento. Ao menos hoje, o que me manteve firme foi saber que teria que responder sua carta o mais breve possível, para que ela fosse entregue para você ainda pela manhã, talvez quando acordar.
Agora enquanto escrevo, vejo as estrelas no céu através da janela do meu quarto. É uma noite estrelada, você está vendo? Em noites assim me sinto reconfortado, como se cada estrela fosse um pedaço de esperança para mim. Dias atrás joguei meus sentimentos para o céu, na esperança de que chegassem até ti. Hoje troco correspondências contigo. Oh, que sina a minha! Que destino!
Estou sendo tão pressionado no trabalho que não consigo nem ao menos pensar direito. Minha cabeça dói. Aquele homem! Oh, maldito homem cruel! Com cobranças atrás de cobranças, sem querer saber sobre o bem estar de seus empregados. Ele apenas se preocupa com os números; somos apenas números para ele. Diz sobre oportunidades, mas que homem terá ânimo para uma oportunidade que tem a mesma chance de vir amanhã ou daqui um ano, e que, quando chegar, por qualquer motivo não poderemos aproveitar?
A oportunidade não vem para todos, ela vem para os bem afortunados. Vem para os escolhidos. Nós, os que sobraram, estamos cansados, muito cansados. Cansados ao ponto de quase desistir de tudo.
Ele pressiona todos nós; acha que é um bom chefe. Talvez ele realmente seja, hoje estou com a cabeça cheia para fazer esse julgamento. Foi um dia estressante.
Quando deu a hora de parar, voltei correndo para casa. Reli sua carta, e agora releio novamente. Que alegria sinto ao ver suas pequenas letras!
Natasha! Quanta bobagem! Não diga coisas desse tipo, você não é tola por gostar da jardinagem. Cultive-às, meu bem, cultive suas flores. Flores em seu jardim, tão lindas quanto tu. Se outros dizem que isso é besteira, que vão para o inferno! Isso não importa. Tolos são aqueles que não entendem o que isso significa para você.
O que importa, no fim, é o que nossas coisas significam para nós, e não o que significam para os outros. Por isso existem pessoas que assistem novelas e tem hobbies que outros dizem ser estranhos. Veja as novelas! Elas são iguais, em suma. Traição, amor, vilões, heróis, amantes... Mesmo assim as pessoas assistem, porque aquilo significa algo para elas. Da mesma forma tu cultivas, pois isso lhe diz respeito. Admiro isso em você. De longe, meu bem, estou lhe admirando... Então converse com suas rosas, meu bem, e converse comigo também. Sempre estarei aqui para ti. Para quando precisar de mim. Então não hesite em falar comigo através dessas cartas que guardo com tanto zelo a partir de agora.
E acho que tens razão! Veja, lhe disse sobre meu gosto pelas estrelas e agora sei sobre o teu pela jardinagem! Lhe digo mais: tenho um grande apreço pela literatura. Um grande, grande apreço. Sinto que tudo que não é literatura me aborrece de certa forma. Talvez por isso esteja relendo sua carta novamente, ou esteja fazendo isso apenas porque, para mim, suas cartas são um grande tesouro, e suas pequenas letras, teus pequenos "A"s e os pingos nos "I"s, isso me significa algo, afinal...
Agora tomarei um banho e descansarei, amanhã é um novo dia! Se será bom não sei, mas decerto é um novo dia.


Admirador confesso,
Alego.


P.S: Não me lembro o motivo, meu anjo, mas lamento muito. Não sabes como fiquei triste quando partiu, sem dizer adeus, sem me deixar um único aviso... Pensei que irias para sempre, até que fui informado de que logo voltaria, e aqui está você! Se tu te recordas do motivo do conflito, me diga, por favor. E já lhe peço desculpas se fiz algo que lhe afligiu na época. Eu era um jovem tolo, hoje sou apenas tolo. Então perdoe esse tolo e lhe escreva outra carta, pois a demora o castiga.

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Alego,


Sua previsão estava certa, recebi a carta assim que acordei.
Pouco reparei nas estrelas ontem, não tenho esse costume. Mas hoje, agora, reparo no sol que está no céu, se escondendo atrás de uma pequena nuvem, você está vendo? O sol é bom para as flores, mas sinceramente eu prefiro dias mais nublados.
Alego, não se chateie com seu chefe. Na realidade, não faz mal se você se chatear, mas lembre-se de não levar isso para o coração. Hoje e amanhã são novos dias. O que passou, passou.
Imagine, meu amigo, se tu estivesse no lugar dele. Você não cobraria seus funcionários? Tu não teria metas a bater? Imagine um chefe que não cobra as pessoas, imagine um chefe que não faz nada... Um desse tipo não seria pior? Na carta mesmo tu diz que não estava em pleno juízo para fazer um julgamento no momento, mas acredito que ele seja uma boa pessoa. Os chefes, alguns, em suma, são boas pessoas. Agora que está mais calmo me diga: ele é uma boa pessoa?
Não sei ao certo com o que trabalhas, mas ouvi dizer que é em uma fábrica, não é? Pois então produza, meu amigo, produza. Dê o máximo de si e aguente. Aguente calado, se possível. Faça isso por mim. Se perdeste esse trabalho, sucumbirás a um grande marasmo e eu me sentirei triste por ti. Tu não podes perder esse emprego. Tu tens visto como anda o mundo lá fora? Como as pessoas estão atrás de emprego? Não seja mal agradecido, meu amigo. Logo você conseguirá algo melhor, eu acredito em ti. Tu podes alcançar grandes coisas, mas agora, sem algo definido, não saia daí por um dia ruim. Não deixe que um dia ruim estrague sua experiência nesse lugar. Assim como minha jardinagem: não abandonarei as rosas apenas porque hoje espetei o dedo em um espinho. Não, elas são mais do que isso.
Os dias de descanso virão para todos nós, os não afortunados. Mas enquanto não vem, precisamos continuar tentando; continuar persistindo. Então não desista, meu amigo, não desista.
Reparei em uma janela frente à minha, com os vidros fechados, mas a cortina aberta. Uma cortina azul escuro. Me diga, amigo, esse é seu quarto? É através deste vidro que tu observava as estrelas ontem? Como elas se pareciam? Me diga, por favor. Me diga cada detalhe, enriqueça suas cartas, meu amigo. Não tenha medo da minha chateação, pois assim como ti, anseio por tuas cartas. Tu me disse sobre os pingos nos "I"s e sobre os pequenos "A"s, não é mesmo? Eu digo sobre teus "O"s tortos e a tremida em algumas letras. Além de que, em alguns "I"s, teus pingos parecem vírgulas. Mas não pense que estou lhe criticando, meu amigo. Estou apenas brincando com você! Também gostei da tua letra. Seja como for, essa é a sua letra, encaminhada para mim. Não posso, em hipótese nenhuma, julgar algo do tipo. Algo que anseio para receber e leio repetidas vezes. Oh, não, isso seria hipocrisia de minha parte.
Hoje vou até o centro com minha mãe. Comprarei luvas. As minhas estão gastas. Também comprarei tinta nova, já que ando inspirada nesses últimos dias. Talvez consiga voltar a pintar... Tu se lembras da época em que eu pintava, meu amigo? Isso não mudou; continuo a mesma pessoa. Essa habilidade foi aperfeiçoada no tempo que fiquei fora. Aqui pintava em folhas avulsas, lá, pintava em verdadeiros quadros!
Aliás, se lembra da época em que éramos felizes, pintando com giz de cera? Eu, tu e Jonathan...
Você se lembra do Jonathan? Onde ele está agora?
Sei que embora tenha deixado boa parte daquela época para trás, a arte nunca saiu de mim. Vocês também nunca saíram; sempre estiveram em minha mente.


Estimável pintora,
Natasha.


P.S: Comprei luvas roxas e também tinta! Consegui encontrá-las. Me sinto tão animada para voltar a pintar que não sei ao certo o que irei fazer! Que grande ironia: possuo o poder em mãos, mas não sei de que maneira usar. Espero ter inspiração logo.

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Natasha,


Querida, não sei o que me aconteceu hoje.
Quando lhe vi no centro. Oh, não sei o que me aconteceu. Você veio em minha direção sem saber que eu estava ali. A surpresa em seus olhos... Oh, Natasha! Agora, mais calmo, comparo nossas situações com as luvas. Tuas luvas eram tão belas. Pequenas luvas roxas, felpudas, de lã, como se tivessem sido feitas unicamente para aquecer suas pequenas e delicadas mãos. Já eu... Com minhas gastas, grossas e furadas luvas escuras. Oh, que vergonha senti, Natasha. E tu notaste, sei que notaste! A vergonha estava estampada em nossos rostos. O que foi isso? Não somos adultos, afinal? Somos adultos para viajar para o exterior e trabalhar em fábricas, mas em um simples encontro na rua, nos desconcertamos por inteiro?
Tua carta confirmou o que eu havia deduzido: então tu ainda pinta? Essa é uma boa notícia! Lembro-me bem, querida, de como costumávamos passar as tardes rabiscando em folhas de papel, no chão, em todo canto... Se lembras de quando pintamos na parede da sala de minha casa? Se lembras disso? Como minha mãe ficou zangada naquele dia! Com o rosto vermelho como um tomate; vermelho de raiva. Os nossos vermelhos também, mas de vergonha. Éramos crianças tolas, não éramos? Jonathan correu e se escondeu embaixo da mesa, mas seus pés ficaram à mostra. Se lembras disso? Minha mãe o puxou pelos pés e ele escondia o rosto com as mãos. Oh, eram tempos de ouro!
De início, minha mãe quis refazer o papel de parede e compramos tudo para tal, mas no fim, deixamos como estava. Isso ainda está nas paredes dessa casa. O autorretrato de nós três, as crianças felizes. Esse desenho ainda está aqui. Gasto com o tempo e quase irreconhecível, mas eu me lembro bem. E tu, se lembras?
Tens razão sobre o emprego. Hoje o patrão chamou um pequeno grupo – eu e mais três pessoas –, para conversar.
Me senti perdido. Por quê eu estava ali?
Um mero assistente que não se preocupa com o trabalho. Que faz apenas o que lhe pedem e nada mais do que isso.
Eu tinha uma única certeza na hora: seria demitido.
Não havia outra razão para estar ali, frente aquela presença tão importante e admirada por todos naquela fábrica. Não havia uma única razão para aquele homem importante convocar pessoas tão inúteis. Mas ali estávamos, os quatro.
"Sabem? Os homens dessa fábrica pensam que sabem de tudo. Eles acham que eu, o patrão, não conheço os meus funcionários. Eles pensam que ocupo minha mente apenas com o que é importante, e para eles, vocês, meus funcionários, não são importantes. Vocês concordam com isso?", Ele perguntou enquanto fumava um charuto. Estávamos os quatro em pé frente à sua mesa.
Não haviam cadeiras para todos, apenas duas. Mas aquelas cadeiras, tão bonitas, não mereciam ser sujas por nós, pobres empregados. Acredito que todos os presentes pensavam dessa mesma forma, ou tinham medo de serem repreendidos por sentar.
No fim, ficamos todos em pé, como se estivéssemos recebendo bronca da diretora, na época de escola.
Aquela sala era bem decorada e colorida, diferente do resto da fábrica, que era cinza. Você imagina isso? Entrar ali era como assistir um filme em preto e branco que de repente tomou cor. Era belo.
"Bom, eu os conheço. Querem exemplos? Tu, o primeiro. Já são o que? 15 meses que trabalha comigo? E tu, o menor. No dia em que veio atrás de emprego estava chovendo, se lembra? Eu abri o portão e tu estava molhado, pois seu guarda-chuva estava furado. Eu lhe emprestei o meu naquele dia, e na segunda-feira tu me devolveu. E quanto a você! Como anda Verônica, tua filha? Imagino que ela já consiga correr sem tropeçar."
Todos ficamos tão maravilhosos por ele dizer coisas únicas sobre cada um e demonstrar um real conhecimento, que no momento não me dei conta do mais vital: ele não me mencionou.
"Mas não os chamei aqui para me gabar sobre isso, já que é o mínimo que eu devo ter sobre meus estimados funcionários. Na verdade, trago boas novas: Neste fim de semana irá virar o mês, e a partir de segunda entrarão máquinas novas aqui. Quero que vocês fiquem responsáveis por elas. Os julgo em plena capacidade de êxito nessa tarefa, que parece simples, mas tenho que lhes pedir isso pessoalmente. Tudo bem? Eu confio em vocês."
Não acreditamos quando saímos dali. O patrão nos passou algo importante. Ele realmente estava de olho em nós. Este pequeno grupo! Oh, meu bem, que alegria, que alegria senti naquele momento! Nos últimos dias andei cansado e admito aqui para ti que Deus sabe como me segurei para não pedir demissão e simplesmente sumir daquele lugar! Essas coisas não me interessam. O que me interessa é a arte. As estrelas me interessam.
Talvez ele esteja fazendo isso pelo tanto que nos fez sofrer nos últimos dias. Chegamos ao limite ali. Estávamos cansados; ainda estamos. O assunto logo começou a ser falado e todos me olharam diferente. Eu, logo eu, fui escolhido pelo patrão. Que alegria, meu bem, que alegria! Que sensação boa tive, como na primeira vez que cheguei na fábrica. O ânimo e empolgação de algo novo! Você tinha razão, foi apenas um dia ruim! Apenas um espinho!
E sim, essa janela é a minha. Quer dizer que teu quarto fica frente ao meu? Então observamos o mesmo céu, não é mesmo? Natasha, querida. Estou com sono agora e me deitarei, mas deixarei a janela da mesma forma que ontem, para lhe comprovar que este realmente é meu quarto. A deixo dessa forma para observar o céu, mas agora a deixarei mais vezes, já que sei que olhas para ela. Na realidade isso pode ser um sinal entre nós, veja: se minha janela está aberta, então o céu sob nós vale a pena ser visto nesse dia. O que achas?


Estimável amigo,
Alego.


P.S: Acordei pela manhã com uma frase que me deixou terrivelmente pensativo. Uma frase que me atingiu profundamente, me deixando arrependido do que deixamos para trás. Mas essa frase, meu anjinho, é uma triste verdade. "Tu não conheces ela mais; ela é uma nova mulher. Da mesma forma que ela não te conhece."
Oh, Natasha. Por isso me sinto grato por trocar cartas com você. Por isso, meu bem, quero que me conheças. E como você mesma disse: "não temos tempo", de forma que tens que me conhecer enquanto estou vivo, Natasha, porque quando eu morrer, ninguém poderá fazê-lo. Não poderá me conhecer quando eu me for. Tu poderás dizer: "Ele era gentil. Gostava de estrelas e literatura. Tinha pensamentos conturbados, mas decerto era alguém decente. No fim, ele era uma boa pessoa e teve uma boa vida, embora questionasse isso durante boa parte dela. Era um grande homem inseguro de si mesmo.", mas ninguém realmente saberá como era, apenas através de tuas palavras. Me conhecerão através do que você diz, do teu ponto de vista. Ao menos tu, meu bem, tem que me conhecer de verdade. Só tu, meu anjinho... Olhe para mim! Veja quem eu realmente sou. A imagem que você vê agora e o garoto que você conhecia. Veja, não sou de todo ruim, afinal, não é? Não sou um bicho de sete cabeças; sou um erudito. Sou um homem desconfiado, que busca ao máximo levar uma vida decente. Sou alguém que tenta preencher o vazio dentro de si, que às vezes é tão grande que me dói na alma.
Mas me diga, meu bem, que homem não passa a vida procurando preencher o vazio dentro de si?
É verdade que todos estamos vazios, todos ansiamos por algo que poucos têm a sorte de realmente encontrar. Alguns se contentam com coisas fúteis pelo meio do caminho, mas para aqueles que são mais ambiciosos, coisas boas hão de aparecer. Coisas boas, meu bem... Assim como tu, que voltou para mim. Assim como a jardinagem, assim como as estrelas, assim como os quadros... Coisas tão belas que preenchem parcialmente nossa alma e nos fazem esquecer do vazio. São essas as maravilhas do mundo. A arte, meu bem, é uma das grandes maravilhas do mundo. Assim como tu... Assim como tu.


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