San'Nen - Humanos de outra Terra escrita por Mahii


Capítulo 4
Vida real


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo!
Boa leitura!



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O cérebro humano funciona muito bem, otimizando espaço e se livrando de memórias desnecessárias. Algumas horas depois de um acontecimento, é possível que sequer nos lembremos dele. Esquecer os rostos das pessoas nas quais esbarramos na rua, do atendente do mercadinho, ou esquecer do resmungo que algum fulano nos dirigiu quando pisamos no seu pé no transporte coletivo, é muito natural. Mesmo memórias importantes, coisas que juramos não nos esquecer, são esquecidas. Ou melhor, distorcidamente esquecidas. Na ausência de informação, o cérebro também faz um ótimo trabalho preenchendo as lacunas com o que for mais conveniente.

 

Esse é o motivo pelo qual, mesmo afirmando nos lembrar de algo, podemos estar errados. O motivo pelo qual testemunhas oculares não são confiáveis. E o motivo pelo qual, após um tempo, esquecemos os defeitos de alguém ou de alguma época que gostávamos. Ou, esquecemos as coisas positivas sobre alguém ou uma época que odiávamos.

Nas lembranças de Daniel, Londres era linda e aconchegante, sua casa era o lugar mais confortável do mundo. Só as coisas boas vinham à sua mente, só as melhores recordações e os melhores momentos. A viagem de ida foi feita em meio a uma crescente nostalgia que enchia seu peito com uma dolorosa sensação de alívio.

“Lar doce lar”.

Mas, bastou algumas horas em casa para começar a se lembrar porque tinha demorado tanto para voltar.

Ainda era noite quando Daniel despertou de um sono leve e agradável. Após ouvir um farfalhar de tecidos e sentir uma suave pressão na barriga, os olhos pequenos se abriam devagar. Assim que viram quem estava ali dobraram de tamanho, incrédulos. Era mesmo a namorada ali na sua frente? A ficha demorava a cair.

— Você perdeu aquela barriga, hum – Nathalie observou, segurando o roupão alheio aberto – Mas eu nunca te vi tão peludo aqui embaixo – arqueou uma das sobrancelhas.

— Não faz...! – Daniel se sentou num pulo, arrastando o corpo para o outro lado da cama e apertando com força o nó do roupão – Você quase me matou de susto! N-Não chega nas pessoas assim, enquanto... Enquanto elas dormem... Argh!

Desviava o olhar, extremamente envergonhado.

Silêncio.

Nathalie encurvou ainda mais as sobrancelhas, se levantando e voltando a sentar ao lado do namorado.

Os dois se encararam.

— Sua mãe, foi ela que abriu pra mim – explicou, forçando as íris azuis para cada parte do corpo à sua frente. Metade curiosa, metade saudosa.

— Tá, claro, eu imaginei – balançou a cabeça – Aliás, que horas são?

— Hum... – olhou no relógio de pulso – Onze e meia da noite.

— Sai sempre tão tarde do serviço? Num sábado? – respirou fundo, sem saber porque estava tão nervoso.

— Tínhamos um evento hoje.

Olhar para aquela Nathalie! Era isso que deixava Daniel nervoso. Mesmo através da camisa e calça sociais, dava para ver o quanto estava mudada. Cada músculo do corpo, muito bem delineado. Os peitos pequenos que adorava, quase inexistentes, agora eram duas enormes protuberâncias no dorso. O cabelo longo bonito, agora todo repicado e tingido. Mesmo a pele do rosto parecia diferente, melhor, sem uma mancha, uma espinha. O perfume que usava era diferente, era mais maduro, amadeirado, mais chique. Desde quando namorava uma dessas mulheres que o faziam sentir um fracasso?

— Daniel! – o segurou pelos dois ombros – Finalmente estamos nos vendo! Ah! Eu não ganho nenhum abraço?

— É... – respirou fundo, a puxando timidamente pela cintura – É claro.

— Ahh! – animada, se jogava – Achei que esse dia nunca chegaria! Ei! Sweetie, me aperta mais.

— Oh! Uau...! Nathalie... – era mais estranho do que parecia. Não sentia mais os ossos da garota magricela que chamava de namorada. Ao invés disso era cutucado pelo silicone de um jeito que além de deixá-lo sem graça, quase lhe embrulhava o estômago.

O que devia fazer? Não estava gostando daquilo como sabia que deveria estar.

— Te deixei pra trás, hein? – orgulhosa, afastou a cabeça para olhá-lo – Sua menina não é linda?

— É sim. Na verdade, sempre foi – não diria em voz alta, mas preferia o corpo de antes – Me desculpe por estar tão acabado, minha cara tá péssima.

Nathalie riu alto.

— O pior é que tá mesmo. Não tinha comida por lá? O quanto você emagreceu? – levou as duas mãos ao seu rosto, deixando um selinho atrás de outro nos lábios – Parece tão fraquinho, sweetie, meu amor...

‐- Não exagere. Eu até que precisava perder uns quilos, né? – brincou, virando o rosto para o outro lado – Ah... E vou... Vou cortar o cabelo essa semana, não se preocupe.

— Até que do cabelo eu gostei, sabia? Mudei de ideia. Agora gosto de caras de cabelo comprido – inclinou a cabeça, sussurrando o resto da frase – Mas vai precisar dar um jeitinho lá.

— Nathalie...! Isso... É claro – estalou a língua, voltando a suspirar – Senti sua falta.

— Mesmo? Então me toca mais – rodeou o pescoço do outro, se jogando sobre o seu colo e beijando sua bochecha – No que você tá pensando, amor?

É, estava pensando mesmo.

Daniel não conseguia parar de pensar no que sua mãe havia dito: Nathalie estava saindo com outro! Aquele corpo novo, aquele cabelo, nada disso devia ser para si. Com aquelas mãos, aqueles olhos, em noites como aquelas... Ela esteve com outra pessoa! Irritação, mágoa, insegurança, dúvidas... Como Nathalie conseguia apenas fingir que não tinha nada? Será que a dona Joana estava errada?

Talvez.

Talvez estivesse errada?

— Ah... É só... É difícil acreditar que você tá aqui. Que eu tô aqui – escondeu a face no pescoço dela, mordendo o lábio inferior – Temos tanta, tanta coisa pra conversar, Nathalie. Eu nem... Nem sei por onde começar.

— Vamos deixar a conversa pra amanhã – lhe pegou a mão direita e colocou sobre os botões de sua camisa – Dany, abre pra mim.

— É sério? À essa hora? – encarou a porta do quarto. Logo teve outro beijo roubado.

— Eu tranquei a porta, então... – forçou o rosto sobre o outro, buscando por um beijo apaixonado que não encontrou – Ei, me beija de volta. Esqueceu como faz, é?

— Não, não – sorriu, balançando a cabeça para os lados.

— Eu tô louca pra transar com você. Faz quase um ano... – franziu o cenho, o beijando – Você não quer? Mesmo que esteja cansado, não tem como não querer! Se masturbou muito pensado em mim?

— Ahn... – o rapaz se perguntava se a namorada havia sempre sido daquele jeito constrangedor. Tinha mais vontade era de sair correndo, só faltava coragem – Vamos fazer. Eu quero – forçou um sorriso.

E, bem, em partes era verdade. Apesar de tudo, queria transar. Sexo ainda era sexo, e queria fazê-lo. Mesmo com a possibilidade de estar sendo corno, mesmo cansado e ainda sonolento, Daniel tirou forças de um lugar chamado abstinência. Deu o que ela pedia e se permitiu lembrar de uma das coisas que mais gostava e desgostava fazer com a Nathalie: sexo.

E, assim como havia sido nos últimos anos do namoro, o sexo com a namorada parecia estranho. Sim, no início adorava transar com ela, e era muito emocionante, mas foi ficando cada vez mais “estranho”. E o fato de se sentir mais excitado ao lado do indiano Raj que mal conhecia, do que ao lado dela, parecia deixar tudo bem claro.

Chamavam isso de “crise de identidade”?

Daniel não podia ter uma crise de identidade enquanto descobria o maior mistério da humanidade! Não enquanto tivesse aquela mentalidade focada e teimosa. Pesquisadores não tinham tempo para isso. Enquanto se chamasse Daniel, não se permitiria pensar no assunto e se contentaria em ter uma namorada. Já era muito. Mesmo que terminassem, não havia garantias de que encontraria outra pessoa, então...

Não mexeria em algo que já estava minimamente bom.

[...]

No dia seguinte, antes de qualquer um da casa abrir os olhos, o celular de Daniel começou a tocar. Atordoado, o rapaz jogou o corpo da namorada para o lado e buscou o aparelho na mesinha de cabeceira. Não estava lá. Abriu um dos olhos. Como um gato, se esticou até o chão, sentando de cócoras enquanto resgatava o celular de detrás da cama. Antes sonolento, bastou ler o nome na tela para despertar totalmente.

“Dra. Aisha”, finalmente!

Enfiou uma cueca qualquer e seguiu para a sala do apartamento.

— Pronto. Daniel falando – respirou fundo, tentando não ficar ansioso.

— “Bom dia, é a Aisha Müller! Obrigada por avisar que já está em Londres. E, desculpe por ligar tão cedo num domingo, ouvi dizer que vai ficar apenas 2 semanas então não podemos perder tempo. Consegue me encontrar daqui uma hora no meu escritório? Não deve ser muito longe da sua casa” – com uma voz gentil e animada, acabou contagiando Daniel.

— Ah... C-Claro! – embora tivesse dúvidas, concordou sem pensar duas vezes – Se puder me mandar o endereço de novo, e também... Você e o Prof. Lennox conversaram bastante, eu presumo. A doutora sabe do que se trata exatamente?

— “Sim! Ele também me mandou muitos dos seus estudos, e tenho feito os meus. Anda logo e vem pra cá. Estou te mandando o endereço.”

— Combinado. Eu já estou saindo.

Mal podia acreditar que ia se encontrar com uma consagrada linguista! E mais, ela estava lendo seus estudos!

Com um enorme sorriso no rosto, Daniel voltou correndo para o quarto e vestiu as primeiras roupas que viu pela frente. O básico e juvenil look de camiseta, calça jeans, moletom e tênis. Em seguida, começou a revirar a mala que havia trazido e separar algumas coisas para levar até a Dra. Aisha. Eram tantas coisas que resolveu levar a mala para carregá-las. Esteve tão absorto na tarefa que só voltou a si quando sentiu um puxão na camisa.

— ...você vai sair? – franzindo as sobrancelhas, Nathalie não aceitava o que via.

— Ah... Vou, um pouco – se desvencilhou, a encarando – Na verdade... Talvez leve o dia todo.

— Mas quê? E onde você tá indo? – se sentou, coçando os olhos.

— É trabalho – voltou ao que fazia – Vou encontrar uma pessoa que está trabalhando com a gente na escavação. Ela provavelmente é muito ocupada, então... Eu nem consigo acreditar que estou indo lá!

— Ela faz o quê? É uma mulher?

— Eu só posso dizer que é uma linguista e que tem mais de 30 anos de experiência. Aliás, desculpe por isso. Vou só terminar de arrumar aqui e já vou sair, preciso chegar lá em uma hora – puxou o zíper da mala, indo prender o cabelo em frente ao espelho – Se quiser voltar a dormir, com certeza minha mãe não vai se importar e-

— Eu vou junto – se levantou – É, eu vou com você.

— Quê? Não, não, não. Você não pode, Nathalie. É confidencial.

— Ah! Lá vem você com essa história de confidencial! – soltou uma risada – Daniel! Eu só quero ficar com você! Acha que eu sequer dou a mínima pra essa merda?

— Caramba, Nathalie! Não quero te ouvir falando assim do meu trabalho, eu não vou permitir – trocaram um olhar rápido através do espelho – E não faz essa cara, não tem o direito de ficar brava. É só hoje. Amanhã podemos ficar o dia tod-

— Amanhã? Ah, claro, amanhã é um ótimo dia! Já que eu não trabalho o dia todo e fico sem fazer nada a semana inteira – sarcástica, cercou o outro por trás.

— Eu achei que você ia tirar uns dias de folga – franziu as sobrancelhas – Não ia?

— Isso não é tão fácil – bufou, bagunçando os próprios cabelos – Poxa, Daniel , às vezes eu te odeio!

— Espera, vem cá, me dá um abraço.

— Não quero te abraçar! – dramática, virou de costas.

— Nathalie... – chamou, a abraçando por trás e deixando um beijo na sua nuca – I love you.

Falou, sentindo a enorme carga daquele relacionamento ficar ainda mais pesada. Amava mesmo?

— Então, se ama, devia ficar comigo hoje.

— Se você entendesse como esse trabalho é importante... – afundou o rosto no pescoço alheio, a apertando mais – Se você me entendesse...

“...e se a gente se entendesse”, concluiu em pensamento.

— Se você me contasse, quem sabe eu entenderia!

— Quando eu puder contar, você será a primeira a saber. Eu prometo – a virou de frente – Hoje, quando eu acabar lá, vou direto pra sua casa. Que tal? Talvez não demore muito.

— Se eu estiver em casa, pode aparecer – deu de ombros, rodando os olhos.

— Vai sair? – estranhou.

— Eu deveria ficar plantada te esperando? Não, obrigado. Domingo é meu único dia de folga, então... Eu vou aproveitar, como sempre faço – se soltou, rindo pelo nariz e começando a recolocar as roupas – Ué? Vai, pode ir. Por que tá olhando pra mim?

— Vai sair com quem?

— Uma nova amiga minha, talvez vocês se conheçam um dia.

“Nova amiga” era tão suspeito.

Daniel voltou a cogitar a possibilidade de estar sendo traído. Não queria pensar nisso. Balançou a cabeça para os lados.

— A gente se vê de noite – evitou olhar para a namorada e saiu do quarto suspirando.

Pelo visto não iam ser duas semanas tão tranquilas ou tão revigorantes quanto tinha pensado.

 

[...]

 

Se, para Daniel, AmirNada era como um antro de cansaço e estresse, Londres fazia parte do mesmo inferno.

Para começar, sua casa não era mais sua casa. Com exceção do seu quarto, tudo estava diferente. O pai de Daniel – o único real apoiador da carreira do filho – havia se mudado para um apartamento do outro lado da cidade. E, se antes do divórcio o Prof. Richardson já era reservado e caladão, agora era dez vezes mais. Sem falar na dona Joana. A mãe de Daniel tinha um namorado novo, também brasileiro e também da área da dança, além de insuportavelmente chato. Primeiro, falava tão rápido que Daniel não entendia um terço. Segundo, a mania que tinha de zoar o português do Daniel era tão irritante que fez o rapaz parar de falar o idioma na sua presença. Terceiro, Joana falava que o homem não havia se mudado para lá, mas haviam objetos dele pela casa toda. Após 3 dias, Daniel tentou se mudar para a casa do pai, mas o Dr. Richardson refutou, dizendo que era um loft pequeno demais para dois.

Foi quando Daniel aceitou o espaço de trabalho que a Dra. Aisha ofereceu no seu escritório, e passou a ficar o dia todo por lá. Era quase como ainda estar na Índia, gostava disso. Por outro lado, Aisha apontava seus erros sem o menor tato para falar, chamando seu trabalho de maluco, amador e até ridículo. Todos os dias, havia um motivo para o rapaz segurar o choro. Segurava, com a certeza de que nunca havia aprendido tanto na vida quanto naquelas surras intelectuais. Um treinamento espartano no qual tinha prazer em se submeter.

Quanto a namorada... Daniel se perguntava a todo momento porque continuavam namorando. Mas toda vez, toda noite, quando Nathalie o seduzia gentilmente, e seu corpo humano respondia, Daniel fraquejava. Os braços daquela traidora reclamona acabavam sendo o único lugar em que se sentia bem fora dos laboratórios, naquela fria Londres.

Poderia não sentir mais uma paixão estonteante por ela, mas eram amigos há quase 10 anos e ela o confortava muito bem.

— Eu pedi uma licença de 15 dias pra ficar com você – Nathalie sorriu, embora cansada. Apoiava as pernas no colo do namorado, enquanto tomavam café e viam televisão – Eu pensei em viajar, só nós dois. Não se preocupe, eu pago dessa vez. É só que... Nunca viajamos juntos, só nós dois, né? É até engraçado.

— O quê? Seria ótimo, mas, Nathalie... – Daniel respirou fundo, fechando os olhos – Eu volto pra Índia depois de amanhã. Eu te avisei sobre isso.

— Hum?! Não pode estar falando sério! Você vai mesmo?! – sorriu, descrente, colocando até a xícara de lado – Espera. Seus pais disseram que não pagariam sua passagem. Como você vai?

— Eu... Vendi algumas moedas da minha coleção e- – desviou o olhar para a grande lua que começava a se mostrar no céu noturno.

— Ah.... Tá! Isso é ridículo – balançou a cabeça, puxando as pernas e endireitando a coluna – Vai escondido dos seus pais?

— Vou falar quando chegar a hora. Não preciso esconder nada deles, muito menos esperar por aprovação, eu já sou adulto – o ouvido quase doeu quando a risada esganiçada da namorada se fez presente.

— Claro! Vender a coleção de moedinhas pra viajar, com certeza, é muito adulto – se jogou contra o assento, ainda sem cair a ficha, só conseguia ser irônica – Tem razão, você é a pessoa mais madura que já conheci. Imagino que para voltar da próxima vez vá vender a coleção de bonequinhos? Ou o seu triciclo?

— Como é que é? Retire o que disse – franziu as sobrancelhas.

— Eu não vou retirar, você não é adulto, nunca agiu como um. Não é responsável, você não cumpre suas promessas – soava magoada, num nítido timbre debochado.

— E por acaso você é adulta?

— Sou! Dá uma boa olhada em volta – gesticulava – Eu não tenho papai e mamãe pra fazer as coisas por mim há muito tempo. Eu não cresci numa bolha, não tenho uma vidinha de conto de fadas igual você.

— Então, para ser adulto, eu preciso ter uma história triste? Preciso me matar de trabalhar numa empresa que não tem valor social nenhum? E gastar todo o meu dinheiro com festas e roupas caras? Estourar meus cartões de crédito todo mês? E eu imagino que também precise trair meu namorado e agir como se fosse a vítima? Bom, deve ser o que os adultos fazem, por isso o mundo tá desse jeito – finalmente, soltou o assunto, apertando as mãos em nervosismo.

— Que história é essa de traição? – num timbre muito sério, Nathalie se virou totalmente para o outro – Eu? Eu que sempre fui louca por um nerd como você? Se isso não for amor...! Você tá mesmo achando que eu te traí?

— E não? A gente fica sabendo das coisas. Viram você com ele – repetiu o que a mãe havia lhe dito – Várias vezes.

— Quem te disse essa loucura?! – segurou-lhe o braço.

— Não importa quem – engoliu seco – Importa que é verdade.

Os dois ficaram quietos por alguns instantes, até Nathalie romper o silêncio numa voz lamuriosa.

— Você não pode estar falando sério. Você acha, você realmente acredita que eu te trairia? – levou as mãos ao rosto – Sabe de uma coisa? Eu poderia ter traído, talvez eu devesse ter traído. Você não faz ideia de como eu me senti durante esse ano, Daniel. Você podia estar vivendo um sonho, mas pra mim era um pesadelo.

— E o que aconteceu com o cara alto de sobretudo? – semicerrou os olhos.

— Qual cara al-... – pareceu lembrar-se de algo, abrindo logo um sorriso triste – Ah, não! Eu não acredito nisso.

Daniel não disse nada, apenas observava as reações da garota. De repente Nathalie ficava mais retraída, mais quieta, falava mais devagar...

— Eu... Eu não sei... Não sei de quem você ouviu sobre isso, mas ele era apenas um amigo. Bom... Eu saí com ele duas vezes, nós almoçamos juntos, mas... – apertou as mãos.

— Então você realmente me traiu?

— Não, Dany! Não! A gente sequer chegou a se beijar. E isso já faz meses, eu não o vejo há meses! Foi só uma, UMA ideia estúpida – riu em desespero – Não acha que o que você faz é muito pior?

— O que eu faço?

— Não sabe? – respirou fundo, sentindo os olhos lacrimejarem – Você me trai com o seu trabalho. Eu acho incrível que você tenha um sonho, e que seja bom nisso, e que se empenhe nisso... Mas parece que não existe mais nada na sua vida. E daí se eu tivesse te traído? Você não liga mesmo! Você tá sacrificando tudo por causa dessa escavação. E eu ainda não acredito que tava há quase 1 ano sem transar! Não acredito! Por mais que você nunca tenha tido muito interesse nisso... As mulheres lá devem gostar de você.

— Nem tem essas “mulheres” que você tá pensando! Eu fiquei sim sem transar! Não foi fácil mas eu jamais pensei em te trair – engoliu seco, se lembrando do indiano Raj, aquilo passou perto mas nem cogitou a ideia – E eu não estou... Eu não penso que esteja sacrificando nada – suspirou, quase constrangido por expor seus sentimentos – A única razão pela qual eu consigo ficar tão longe, por tanto tempo, e trabalhando tanto, é porque eu sei que tenho um lugar pra voltar. E eu sei que tenho você.

— Hum? – deixou as lágrimas rolarem pela bochecha.

— Nathalie, as coisas estão uma bagunça agora. Parece que eu tô vivendo o melhor e o pior momento da minha vida ao mesmo tempo – sorriu entristecido – Você pode achar que é idiotice pensar assim, os pais de um monte de gente se divorciam no mundo. Mas não os meus pais. Eles eram meu exemplo de casal ideal e eu amava o nosso lar, e o nosso dia a dia. Agora, com eles se separando... Meu pai se fechou, ele sumiu, e eu acho que ele nem quer me ver. Minha mãe só critica as coisas que eu faço e falo, a cada minuto. Sem falar no namorado dela. A Dra. Aisha. A pressão que todos estão colocando em cima de mim em AmirNada... – respirou fundo – Pelo menos eu queria encontrar um apoio em você. Minha namorada e, antes disso, minha amiga. Eu te conheço desde que éramos crianças, poxa! Você é minha parceira, a única pessoa que eu tenho fora da minha família. Não devia importar se eu fiquei 1 ano fora, há quantos anos a gente se conhece, Natalie?

— Eu não... Eu não fazia ideia de que eu... Podia ser um apoio pra você – segurou-lhe o ombro – Devia deixar as coisas mais claras. O que espera de mim?

— Desculpe se tenho te machucado, eu espero compensar tudo isso no futuro – respirou fundo – Então, se possível, eu gostaria que me esperasse mais um pouco. Nunca quis te magoar, ao invés disso, eu pensei que podia confiar em você para me esperar.

— Você vai ficar mais um ano fora? – apenas a ideia já a fazia apertar o choro e soluçar.

— Eu não tenho certeza. Eu juro que tento voltar antes, mas eu realmente não faço ideia, Nathalie – segurou-lhe o rosto, depositando um beijo sobre seus lábios – Ou... Devíamos terminar?

—- Terminar? – arregalou os olhos – Não quero terminar.

—- Tem certeza? Talvez o cara do sobretudo possa te dar o que você precisa. Qualquer um parece melhor que o “nerd” aqui – a encarou em expectativa. Uma parte de si torcia para que terminassem, outra morria de medo.

—- Eu sempre soube quem você é, Daniel – juntou as sobrancelhas – E, bom, não pense que eu sou idiota. Eu sei que não cai de amores por mim, mas... Você não é do tipo que cairia de amores por alguém, então tudo bem. Eu te amo. Mesmo assim te amo. Se não fosse eu, quem mais estaria ao seu lado? E eu sei que sou importante pra você. Você não se forçaria a estar com alguém e falar com alguém que não gostasse. Você é muito, muito honesto.

— Então vai esperar?

— Você vai precisar me ligar mais vezes, e mandar mais mensagens. Você não pode sumir de novo! – lhe deu um apertão, como se intimidasse – Ouviu?!

— Eu prometo – lhe deu outro beijo, dessa vez mais demorado – Quando eu voltar de vez... Por que não começamos a morar juntos?

— De verdade? – os olhos se abriram, encarando o outro de volta, sem acreditar.

— Sim. De verdade. Mas até lá tem que aprender a controlar melhor seu dinheiro – sorriu terno – E eu vou me preparar para te dar muito mais atenção.

— Ok. É uma promessa? – estendeu-lhe o dedo mindinho.

— É uma promessa.

Selaram o acordo, com o acréscimo de outro beijo.

— Nesse caso, eu deveria te dar uma das alianças que eu comprei? – desviou o olhar, constrangido.

— Você comprou alianças?!

— Faz uns dois anos na verdade. Eu fiquei me achando um idiota e não consegui te dar na época, mas-

— Tudo bem, vamos usar. Pega pra gente.

Daniel disse o que achava que tinha de dizer. Nathalie estava certa, se não fosse ela, passaria o resto da vida sozinho, assim como o Prof. Lennox. E Daniel queria ter uma família como seus pais tinham.

Se a garota estava mentindo ou não sobre a suposta traição, não importava. Afinal, não parecia ruim, daqui algum tempo, morar com Nathalie e viver uma vida ao seu lado. Podia se imaginar casando e tendo um ou dois filhos, e depois netos. Contaria histórias emocionantes das suas aventuras em escavações e países distantes. Queria isso. E precisava de alguém ao seu lado para que se tornasse realidade. Nathalie era uma boa garota, e ela também tinha esse objetivo, então... Podia ser descortês de sua parte, fazê-la esperar por sabe-se lá mais quanto tempo, sofrer e chorar por sabe-se lá mais quanto tempo. Sabia que ainda brigariam e se desentenderiam muito. Sabia que ainda quebraria muitas promessas. Sabia que muitas vezes teria que se forçar a fazer sexo. E, no final, não tinha certeza se um dia poderia mesmo fazê-la feliz. Daniel não tinha certeza se aquele sentimento era amor romântico, ou apenas carência, ou apenas uma forte amizade, mas não mentiu quando disse que precisava da Nathalie.

Precisava.

Se não tivesse alguém o esperando em casa, Daniel sentia que não voltaria nunca mais. Seria completamente engolido por AmirNada. Se terminassem, a pouca conexão que tinha com o mundo real, acabaria. A obsessão crescente por aquele lugar já tinha lhe atado todos os membros, então precisava ter cuidado para que não começasse a devorá-lo.

 

 

 

 

Naquela noite, uma das mãos segurava o corpo quente da namorada. A outra se enrolava na pedra dourada que carregava no pescoço. 

Dividido.


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Notas finais do capítulo

Achei legal termos um vislumbre de como é a vida social quase nula do Daniel (embora eu, como amante de yaoi, ache um saco essas cenas hétero huahahaha). Ele é meio antissocial, obcecado, e está certo em se imaginar com sorte por ter uma namorada, mas não sei se a ideia do "pseudo-noivado" foi muito boa.... Parecia que eles iam acabar terminando né? Haha. Não ainda.
Não esqueçam de comentar e até o próximo!
^3^ Kisus~~



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