Todos os Clichês de Amor escrita por KodS


Capítulo 3
Capítulo 1 (parte 2)




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O homem sentado à sua frente parecia alto demais para ser indiano e usava um terno que deveria custar mais do que o aluguel da cobertura de Maegor, mas não era como se houvesse caminhado por cenários de Caminho das Índias desde que chegara ali.

O restaurante em que chegaram era uma construção quadrada com cores escuras em uma área nobre da cidade. O tipo de coisa que destoaria em seu bairro de classe média baixa, repleto de idosos que saiam cedo para fazer feira e caminhar com os cachorros.

Mas ali, no meio dos prédios espelhados e de frente para o mar, parecia apenas natural, como se houvesse simplesmente brotado do asfalto, mesmo que não fosse exatamente o que esperava de um restaurante indiano.

Tudo era tão minimalista que, se não houvessem algumas imagens de deuses na parede e um Ganesha em estilo moderno pintado na parede atrás do balcão do caixa, poderia ter confundido com um daqueles restaurante que faziam a comida parecer química.

Havia ido em um lugar desses uma vez na vida e nem sabia por onde deveria começar a comer.

Mas então um garçom passou por ela com uma bandeja bem servida com torrada e entre pasto que — ao menos à primeira vista — pareciam comida de verdade.

Hana colocou as mãos em seus ombros e a guiou por um vestiário unissex, onde alguns empregados começavam a vestir o uniforme para o dia.

— Segue por ali, até a sala do Ravi.

Hana estava apontando para algum lugar após a porta dupla que levava para a cozinha, mas Júlia não podia adivinhar para onde. Então não tinha certeza de como havia chegado na sala com tons escuros de preto e cinza, sentada de frente para o que parecia uma versão bollywoodiana de Christian Grey.

Não que Júlia conseguisse se concentrar em sua beleza enquanto tentava desviar o olhar para a janela atrás dele, onde os carros passavam em alta velocidade.

Estavam próximos demais, mas isso não seria problema se não estivesse sentado na mesa a sua frente, com as pernas abertas próximas ao seu rosto. O tipo de coisa que a fazia respirar pesado e ter que pensar duas vezes no que ia dizer.

— Então podemos fazer uma experiência por hoje — ele se aproximou perigosamente de seu rosto.

O cheiro de rosas exalando de sua barba bem feita, como se usasse Leite de Rosas como loção pós-barba. Júlia sorriu, de repente cativada por aqueles magnéticos olhos castanhos.

— Se tudo der certo, você pode ficar com a vaga até o fim de semana, — estendeu uma mão que ela pegou sem hesitar — então falamos do seu pagamento.

Jules se levantou com a ajuda do homem. Seu coração batendo rápido e sua cabeça zonza, como se estivesse sendo intoxicada por aquela presença.

— Fale com a Maria na recepção, ela deve ter alguma coisa que sirva em você, sem muitos ajustes.

A guiou até a porta, com as mãos da mulher firmemente seguras nas suas e então beijou delicadamente os seus dedos como um herói de romance de banca antes que ela saíssem e a porta se fechasse as suas costas.

Assim que se escorou na madeira, seu corpo começou a voltar ao normal. A visão parecia mais clara e o cheiro de rosas começava a sumir.

O que estava acontecendo com ela naquele dia?

Não que fosse a pessoa mais desperta e ágil do mundo, na verdade um dos seus maiores orgulhos era que conseguia andar sem tropeçar e cair, o que já a colocava uma categoria acima de "mocinhas de filmes românticos", mas apenas isso.

No entanto, naquele dia estava ainda mais dispersa e com tendencias a fantasiar.

Balançou a cabeça, se forçando a focar no trabalho.

Trabalho!

Ela realmente havia conseguido um trabalho. Sentia vontade de pular, virar um shot de tequila e dançar em cima das mesas.

Claro que era apenas temporário, mas isso ainda era melhor do que nada.

Mas agora precisava falar com Maria e pegar um uniforme. Bateu com as mãos e caminhou com segurança pela cozinha, cumprimentando os novos colegas temporários.

Ela tinha um trabalho!

 

Servir mesas parecia menos cansativo quando tinha 15 anos e trabalhava para comprar coisas inúteis para casa e cozinha. Agora aos 27 e tendo despesas reais, se parecia mais com algum tipo de ciclo — especialmente terrível — do inferno de Dante, algo parecido com correr uma meia maratona.

Não tinha certeza se por trabalhar o dia inteiro caminhando de um lado para o outro com uma roupa que era comprida demais para ela, mas seus pés doíam tanto quando chegou em casa, perto das 22 horas e nem esperou chegar no salão do prédio para retirar as sapatilhas. Não eram exatamente confortáveis, mas ainda eram melhores do que fazer todo o caminho até o trabalho com scarpins ou algo do tipo.

Subiu os três andares, se arrastando pelos degraus, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta com o tronco.

Havia sido um dia difícil e só conseguia pensar sobre o seu chuveiro com a água escaldando o seu couro e a cama de travesseiros macios como nuvens que a esperavam do outro lado daquela porta.

Aquela maldita porta que não a deixava entrar.

E o seu dia não parava de melhorar. Primeiro ser acordada de madrugada, depois as duas visitas ao seu apartamento antes das dez horas da manhã e o trabalho de garçonete, mas o pior certamente havia sido o momento em que estava no ônibus e — em uma freada brusca — ela quase caíra no colo de um desavisado dorminhoco.

Primeiro sentiu medo de que o homem desse em cima dela como todos pareciam estar fazendo naquele dia estranho, mas apenas a xingou e mandou tomar "onde o sol não bate". Talvez fosse português, mas isso não importava mais do que o fato dele não ter olhado para ela duas vezes.

Queria colocar toda a culpa no motorista barbeiro que não sabia dirigir, mas a verdade amarga é que ela estava meio pendurada na barra de cima com a cabeça apoiada no braço e, provavelmente, babando enquanto dormia de pé.

Inclusive, estava quase dormindo contra a porta naquele exato momento em que se deu conta de que não estava abrindo.

Droga, fazia meses que prometera a Regina que trocaria a lingueta da porta que sempre emperrava para abrir, mas ela não esperava que ficassem presas do lado de fora de verdade.

Infelizmente, agora estava acontecendo. Depois de chutar a porta com pontapés e soca-la algumas vezes até abrir pequenas fissuras no punho, ela desistiu e apoiou a cabeça na porta.

Foi quando um animalzinho preto se aproximou dela, farejando o vão entre a madeira e o chão antes de farejar os seus pés de forma muito agitada. Ela sorriu com o carinho, mas não tinha qualquer animo para brincar com o cãozinho.

— Floco de neve! — chamou uma voz doce, quase musical que vinha da escada, ela nunca havia ouvido nada como aquilo no prédio.

Ninguém podia dizer que Julia não conhecia a voz dos seus vizinhos mais próximos. Ela podia nunca os ter visto na vida, mas conhecia a voz de cada um. Havia a tec-tec do 402 que tinha uma voz anasalada irritante e vez ou outra brigava com o marido tonto.

Havia a do 202 que gostava de cantar o dia inteiro, com o pequeno detalhe de que ela não sabia e a voz oscilante como de um rapaz na puberdade não era exatamente uma ajuda.

E ainda tinha a sua chará: Dona Júlia do 303, sua vizinha de lado que se parecia muito com uma avó clichê de série americana, mas que tinha a voz de quem havia fumado 5 cartelas de derby durante todos os dias, nos últimos 50 anos e, segundo ela mesma, essa era mais ou menos uma verdade.

Mas aquela voz. Aquela voz era nova para ela. Foi quando apareceu a figura na escada, com sua pele bronzeada e os cabelos escuros iluminados pela luz amarelada dos postes da rua.

— Oi — ela disse sorrindo e pegando o cachorrinho aos pés de Julia — Desculpa o incomodo, eu sou a nova vizinha, Catarina.

Julia não sabia exatamente o que responder. Aquela mulher havia aparecido como um anjo em sua vida e as palavras todas se amontoaram na sua boca e saíram sem qualquer tipo de filtro.

— Você tem lubrificante de fechadura?

Ela pareceu chocada por um instante, apenas encarando Jules como se nunca a tivesse visto na vida e então caiu na risada antes de dizer.

— Acho que tenho. Um minuto.

 

— Pronto — ela disse, afastando a ponta do W3 da fechadura — Agora eu acho que vai dar, mas você vai precisar trocar isso aí.

— Eu sei, estou há anos para fazer isso. — respondeu com uma risada sem graça, colocando as mechas meio descoloridas para trás das orelhas. Julia puxou o celular e então abriu a agenda do google, havia apenas alguns lembretes esquecidos de programar o fim de semana e exercícios físicos — Acho que vou fazer na quarta que é minha folga.

— Bem, se quiser eu mesma posso fazer para você — respondeu Catarina com um sorriso brilhante, meio debochado talvez, Julia não era exatamente uma mestre em expressões faciais.

Jules crispou a testa. Estranho uma pessoa que nunca tinha visto na vida oferecendo para concertar a sua porta assim, completamente do nada. Talvez ela fosse uma ladra imbatível que queria roubar todos os seus moveis de segunda mão ou apenas uma vizinha prestativa, mas certamente Julia apostaria na ladra, melhor pecar pelo excesso.

Ela forçou a porta que se abriu com a maior leveza, como se nunca tivesse teimado ou emperrado na sua longa vida. Se Catarina não era uma super ladra internacional não tinha outra explicação para saber deixar uma porta tão macia. Agora ela poderia invadir a casa tranquilamente as 3 da manhã para roubar o seu precioso espelhinho de maquiagem de 3 reais.

Isso se Luca não a acordasse no mesmo horário, Nunca podia prever o que seus amigos resolveriam transformar em um péssimo hábito.

— Bem, eu vou indo — uma dança estranha se seguiu aquilo.

Catarina estendeu o braço enquanto Julia tentava entrar em casa, mas então estendeu a mão para apertar a da sua salvadora que a puxou para um abraço desajeitado e desengonçado.

— Se precisar de qualquer coisa — ela disse em um tom baixo — Qualquer coisa mesmo, é só me chamar aqui na 301.

Julia assentiu com um sorriso sem graça, que mostrava os dentes de baixo.

— Tudo certo — ela respondeu, se afastando do abraço com um certo desconforto — Eu sei onde te achar quando precisar de um lubrificador para arrombar portas.

— Mas você ainda não me disse o seu nome — ela respondeu, observando a garota se afastar um pouco, em direção da grande cozinha que ocupava o lugar onde deveria estar a sala.

— É Julia — ela respondeu com o meio sorriso nos lábios, estava com pressa e se ficasse muito tempo com a porta aberta, Gengibre poderia sair e procurar briga com Floco de Neve que continuava correndo de um ponto ao outro do corredor. — Mas meus amigos me chamam de Jules.

— Prazer Jules, — ela falou sorrindo, um sorriso encantador antes de completar — Os meus me chamam de Cat.

Ela atirou os longos cabelos castanhos para trás e se afastou sob o olhar suspeito da mulher a sua frente.

Julia entrou e fechou a porta as suas costas. Logo Gengibre e Abóbora pararam aos seus pés, Abóbora mais perto, enroscando o rabo fino entre seus pés e Gengibre sentado alguns passos a sua frente, soltando um miado de reclamação pela demora para receber sua porção de comida da noite.

Se virou para largar as coisas sobre o aparador e pegar Abóbora nos braços.

— Regina, você não vai acreditar que...

As palavras seguintes haviam ficado presas em sua garganta quando viu a mulher de cabelos muito negros e olhos verdes sentada à mesa.

Pegou um guarda-chuva grande de deixavam ao lado da porta por precaução e o esticou em direção a estranha.

— Quem é você? — suas palavras ecoaram tremulas na sala vazia — Como entrou aqui?

 

 


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