A ironia em amar você escrita por SS Saibot


Capítulo 1
Uma figura heroica, bonita, alta e misteriosa.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Isabella sempre odiou a tendência que as protagonistas dos livros românticos nutrem em se apaixonar pelo personagem tipicamente heroico, alto, bonito e misterioso. Acima de tudo, é claro, inacessível.

Em seu coração — e, talvez, não fosse certo usar essa expressão, pois ela acreditava também veementemente que o coração não passava de um órgão muscular oco cuja única função era bombear o sangue e não expressar opiniões, instintos e sentimentos —, acreditava que o certo estava no simples: em um cara simples, com gostos simples, personalidade simples e expectativas simples de serem alcançadas, ou seja, nada de floreios, desvendar almas ou arrancar os cabelos. Nada de choros ou finais imensamente felizes ou igualmente trágicos.  

Um dia, porém, o destino riu da cara dela, desdenhou de suas palavras, mascou um chiclete cor de rosa depois de pôr o fumo no cachimbo e cuspiu em seus discursos de indiferença ao clichê e decidiu que, sim, por que não? Ela poderia e deveria se apaixonar pela figura heroica, alta, bonita e misteriosa.

Acrescente à lista o fato de nunca ter ao menos dirigido uma palavra a ele. Melhor ainda: ter sido um amor à primeira vista. A receita do desastre estava pronta, apenas a espera de alguém que a moesse no processador, colocasse numa frigideira antiaderente...Ela poderia passar horas fazendo analogias com aquele sentimento que alcançava seu estômago todas as vezes que o via. 

Isabella lembra com exatidão do dia em que conheceu o garoto da biblioteca  modo peculiar com que resolvera nomear o rapaz também peculiar que montara seu paradoxo. Era uma terça-feira, vinte de outubro, fazia doze graus de temperatura de acordo com o sistema de meteorologia regional e caía uma fina garoa na cidade, o que a deixava muito satisfeita consigo mesma pois não havia nada que gostasse mais do que o tempo chuvoso, que fazia maravilhas por sua pele sempre seca da poluição da cidade e à sua criatividade, com exceção de tacos e chocolate quente com marshmallows.

Ela estava atrasada para o começo de suas quatro horas diárias de estudo e subiu correndo os trinta e seis degraus de granito divididos em quatro lances de escadas até o salão plano, amarfanhado, com cheiro de livros velhos e tintura amadeirada.  

Sua respiração se acalmou somente em estar naquele local. Calor, segurança, pessoas em silêncio e grande quantidade de conteúdo a atraía como uma mariposa à luz e a biblioteca de Baltimore oferecia todos esses componentes em cem metros quadrados. Para Isabella, era como um combo muito saudável a sua saúde mental.  

Cumprimentou à bibliotecária com um aceno de cabeça, o que particularmente demonstrava seu nível de intimidade com o local e seus costumes. A Sra. Griffin não apreciava qualquer mudança sutil na atmosfera de silêncio sepulcral de seu ambiente de trabalho e neste tópico se enquadravam até mesmo às exigências básicas de boas maneiras. Isabella quase se encolhia quando algum visitante novato deixava escapar um simpático e sonoro cumprimento circunstancial. Felizmente, já não fazia parte daquele seleto grupo.  

Depois de preencher a ficha com seus dados, escolheu uma mesa vazia, pôs seu laptop sobre ela, espalhou alguns dos livros de álgebra sobre a superfície e plugou seus fones de ouvido.

Não possuía planos monumentais para aquela tarde, o que só fazia a situação caber na primeira das três características previsíveis de um romance clichê: primeiro, a normalidade que não gera suspeita; segundo imprevisibilidade, que não gera suspeita; terceiro, o acontecimento, que definitivamente gera suspeita. Portanto, ela pretendia começar por sua lição de álgebra, depois, faria uma análise crítica do livro Romeu e Julieta exigida pelo Sr. Langford, seu professor de literatura.  

Ele fora categórico em afirmar que a análise deveria ser baseada no livro e não em uma das infinitas versões cinematográficas que facilitariam sua vida. Isabella se recusava a ler cento e quarenta e quatro páginas que seriam irrelevantes aos seu currículo para a Universidade, por isso, relutara até os últimos três dias antes da entrega para fazer algo a respeito, mas uma vez que o Sr. Langford não era suscetível aos seus argumentos e estava parcialmente fora de questão fazer um manifesto contra o programa literário do curso, ela teria que ler à tragédia de Shakespeare ou a próxima a virar uma tragédia seria a vida dela e não haveria nenhum escritor obsoleto para escrevê-la.  

Deu início à sua lição com os números sentindo que poderia ser muito mais feliz se pudesse fazer somente aquilo até o horário de ir para casa. Não queria ler nada sobre Romeu, nem nada sobre Julieta. Poderia passar sua vida tranquilamente sem aquela exasperação.  

Quando terminou suas progressões geométricas e ficou encarando durante doze improdutivos minutos o gotejar da chuva contra a janela de vidro e aço, entretanto, percebeu que embromar não seria a solução. Suspirando, levantou-se e foi em busca do exemplar italiano classicamente repleto de desavenças, silenciosamente inferindo impropérios ao diploma do Sr. Langford.  

A biblioteca de Baltimore contava com doze grandes prateleiras altas de madeira envernizada, todas intituladas por suas categorias. A injustiça de gênero, para Isabella, começava quando os livros de romance ocupavam sete dessas doze prateleiras, tornando ofensivo o espaço que restava para os livros didáticos, thrillers e outros muito mais interessantes. Ela deveria fazer um abaixo-assinado para reverter aquela situação constrangedora, mas teria que esperar até eliminar o Romeu e a Julieta de sua lista de assassinato prévio.

Percorreu os corredores em busca de Shakespeare e o encontrou sem muita dificuldade, visto que havia uma grande coleção destacada com suas obras. Inclinou a coluna, balançando a cabeça em descrença e investigou os títulos até encontrar o exemplar desgastado, apoiado como um fanfarrão em um volume de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Imprevisibilidade, aqui estamos nós. Estava tirando-o do lugar, quando capturou um movimento do outro lado. Pouco mais que um vulto.  

Curiosa como era, não resistiu em se inclinar ainda mais, sua coluna fazendo um perfeito ângulo de noventa graus com o chão enquanto tentava enxergar pela fresta proporcionada pela ousadia de Mr. Darcy e o desaforo de Romeu. Foi então que o viu e presenciou a terceira e última etapa de um romance digno de clichês: o acontecimento.  

Isabella não soube o que estava acontecendo assim que o viu, mas sabia que, certamente, algo estava acontecendo. Talvez, estivesse ficando excitada, pensara, observando a o rapaz incrivelmente bonito que estava do outro lado da estante. Ela sabia que, aos dezoito anos, era perfeitamente comum que seus feromônios estivessem borbulhando, pois não fazia muito tempo que frequentara uma palestra de orientação sexual para jovens com a sua mãe.

Seria perfeitamente comum que sentisse seu estômago assumindo a função de uma líder de torcida, saltando e animando todos os outros órgãos em seu interior.   

Já vira caras bonitos antes, muitos. Havia o James, um garoto louro com olhos azuis cobalto que claramente estava flertando com ela na aula de biologia entre os sapos dissecados e, sim, ainda podia acrescentar em sua lista o filho de seu professor de violino, Michael Newton, que usava todas as suas camisas perfeitamente passadas por dentro da calça e tinha sido o responsável por desenvolver em seu interior de garota perversa, uma tendência sapiosexual.  

Aquele garoto, no entanto, não se encaixava em nenhum padrão de beleza que ela já houvesse criado em sua cabeça. Encostado contra a prateleira seguinte, com o exemplar de um livro que ela não conseguia identificar a distância, parecia uma mistura de Brad Pitt com Aquiles alfabetizado do século XXI, usando calças jeans escuras e jaqueta de couro marrom. De sua fresta reveladora, ela julgava que os olhos fossem verdes, talvez um azul esverdeado, não conseguia distinguir com certeza olhando apenas seu perfil, mas sabia que eram apenas mais um adorno para torná-lo atraente.  

Seus cabelos, esses eram indescritíveis. Mesmo a Isabella de três meses depois ainda não sabia como descrevê-lo e, por isso, ela nunca tentou. Bastava dizer, no entanto, que Jane Austen tinha sorte em não ter conhecido o garoto da biblioteca. Mesmo a romancista, nunca teria tido o vocabulário extenso o suficiente para caracterizá-lo.

A paixão deveria ter algum tipo de poder sentimentalista. Isabella sentia sua veia dramática aflorar. Nunca antes tinha usado nenhum outro adjetivo que não fosse gostoso e potencialmente gatinho para descrever uma pessoa do sexo oposto.  

 Mas, foi assim, numa tarde de tempo chuvoso, doze graus de temperatura, sentindo-se horrível por ter que analisar criticamente uma obra literária clichê e batida, que Isabella apaixonou-se pela receita do desastre: a figura heroica, bonita, alta e misteriosa que saíra de algum livro contemporâneo diretamente para sua biblioteca favorita a fim de fazê-la pagar por sua língua afiada.   

 


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Notas finais do capítulo

Logo teremos o próximo capítulo, mas enquanto isso não acontece, você pode me deixar saber que gostou do capítulo acompanhando, favoritando e comentando, tá bom?

Um beijo imenso >>>



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