Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 6
Capítulo VI




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Na manhã seguinte, os colegas de trabalho reparam que Marcos parece ter o rosto amassado ao chegar ao escritório. Contudo, as olheiras e o estado de humor pouco receptivo os mantém em silêncio e eles procuram não o importunar com detalhes burocráticos ao longo do dia. O único que ignora o bom senso, como de costume, é o coordenador do setor. Ao ver Marcos arregaçar as mangas da camisa com um ódio mal disfarçado e afundar na cadeira, Schäfer apoia as mãos na cintura em uma atitude petulante e diz, a plenos pulmões, que alguém deve ter passado a noite no sofá. A risada retumbante que se segue mais desconcerta do que diverte os demais membros da equipe, mas Marcos parece ignorar totalmente a existência do superior – não tem vontade nem energia para lidar com aquele tipo de coisa.

Encara os documentos e relatórios sob sua responsabilidade com um desinteresse profundo, as planilhas figurando sob um tom odioso na tela do computador, e arrepende-se de não ter inventado uma doença para faltar ao trabalho. Com muito esforço e alguns copos de café, consegue concentrar-se o suficiente para fazer o que precisa ser feito. No mais, desconsidera qualquer movimento ou conversa ao seu redor como se não existissem outras pessoas naquela sala e, quando chega o horário de almoço, não desce para o refeitório. Completamente sem apetite, sequer sai para comer – mas acaba aceitando por educação o sanduíche e a barra de chocolate que Suzana empurra na sua direção quando retorna do almoço.

No meio da tarde, está relendo a mesma frase pela terceira vez – “o cliente solicita ressarcimento total ou parcial pelo prejuízo obtido devido ao atraso na entrega dos insumos, embora a transportadora alegue desconhecimento do fato” – quando se dá conta de que não pode continuar assim. Marcos inspira e expira lentamente, apertando a ponte do nariz, e então pega o celular. Abre a conversa com Ana no Whatsapp e envia a mensagem antes que possa mudar de ideia.

— Podemos conversar?

Ela visualiza a mensagem, mas demora a responder.

— Sobre o quê?

— Sobre nós. Sei que tu ficou chateada e gostaria de poder explicar algumas coisas.

— Não sei se vai dar. Tô bastante ocupada.

— Por favor.

Depois de um tempo que Marcos considera extremamente longo, Ana concorda e eles combinam de se encontrar no estacionamento lateral depois do trabalho. Ele não sabe o que vai dizer e suspeita que sua melhor opção esteja em ser o mais sincero possível, em deixá-la espiar, ao menos um pouco, através das muralhas que ele se habituou a construir ao seu redor. Reconhece que, se quer mesmo compartilhar qualquer coisa com ela, esse é o único caminho possível.

Marcos verifica as horas no canto inferior do monitor e deixa os ombros caírem ao perceber que ainda faltam duas horas para o fim do expediente.

***

Depois de extenuantes dez minutos esperando-a e perguntando-se por que ela sempre demora para deixar o prédio da empresa, Marcos a vê se aproximar e sai do carro. Enfia as mãos suadas nos bolsos das calças e compreende que só não está ainda mais nervoso porque o corpo encontra-se cansado demais daquele conflito interior, os nervos reduzidos a um estado lastimável e afogados em cafeína. Ana veste calças de alfaiataria e um cardigã alongado sobre uma blusa de bolinhas, e, dessa vez, não há um sorriso em seu rosto.

Como ambos permanecem calados, de pé ao lado do carro, Marcos começa.

— Obrigado por ter vindo.

— Tudo bem. – apenas um murmúrio, os olhos encarando os próprios pés.

— Eu queria pedir desculpas por ter sido grosso ontem. Acabei sendo um babaca.

— Então peça. – outro murmúrio.

— O quê?

— Tu disse que queria pedir desculpas. – ela o encara com uma dureza que não está totalmente segura de si. – Então peça.

Marcos suspira. Ele dá um passo na sua direção, encurtando o espaço entre eles, e olha no fundo de seus olhos. Embora fique claro que a intensidade daquele olhar a faz vacilar, Ana mantém-se firme. Seu corpo e sua determinação enrijecem com uma força de vontade que não se espera em um temperamento delicado como o seu, e Marcos sente que, naquele estado de espírito, ela enfrentaria qualquer coisa.

— Me desculpa. Eu sinto muito por ter te magoado. – e após tomar coragem, acrescenta: – Eu não costumo dividir esses momentos da minha vida pessoal com outras pessoas, sobretudo com pessoas que eu não conheço, então reagi daquele modo idiota quando soube que tu conversou com a Jana sobre a gente. Senti que isso podia ameaçar o que a gente tem... ou tinha. Mas fiz tudo errado.

A postura tesa de Ana vai se desfazendo e, quando Marcos termina o que está dizendo, ela tem os lábios entreabertos e um olhar aflito de quem não quer mais condenar, mas acolher. O ressentimento ainda está ali, mas agora sob uma fina película de compreensão. Marcos só quer abraçá-la e tem o pressentimento de que ela sente o mesmo, um tipo de intuição guiado mais pelo corpo do que pela mente.

— Eu... eu não sabia.

— Tu não tinha como saber. A culpa foi minha por não ter esclarecido tudo logo.

— Bem... não é como se eu tivesse te dado muita oportunidade.

— Não. – ele balança a cabeça numa negativa. – Eu fui grosso contigo e...

— Eu te desculpo. – ela diz, interrompendo-o.

Marcos percebe que ela abre um sorriso acanhado, meio sem jeito, e sente que a felicidade é um calor esquisito espalhando-se pelo peito. Atordoado como se, naquele instante, uma onda de dopamina tivesse explodido em seu sistema nervoso, ele recosta-se na lateral do carro e não pode evitar sorrir também.

— Mesmo? – ele ergue as sobrancelhas.

— Mesmo. – Ana assente. – Mas que isso não se repita.

— Sim, senhora.

Ambos riem e ela desvia os olhos para um ponto vazio ao longe. O estacionamento agora está praticamente vazio e um ônibus acaba de recolher a última leva de pessoas que se amontoavam na parada diante da empresa. Marcos olha para o céu tingido de borrões cor de rosa, dando-se conta de que o sol deve ter se posto há instantes, e aquele fim de tarde lhe parece inexplicavelmente belo e auspicioso, como se tudo fosse dar certo. Definitivamente, não parece o mesmo dia de minutos atrás.

Ana está procurando por algo na bolsa quando a ideia ocorre a Marcos.

— Quer comer algo?

— Agora?

— Só comi um sanduíche e uma barra de chocolate hoje e estou morrendo de fome.

— Cadê aquele cara que vai à feira comprar comida saudável? – ela brinca.

— Parece que ele só aparece nos fins de semana.

Ao dirigir para fora do pátio da empresa com Ana ao seu lado, Marcos sente-se um homem diverso do que saiu da cama naquela manhã. O crepúsculo é um novo fôlego, restaurador e catártico, uma chama que se acende com o último rubor do dia, e Marcos inala profundamente aquela sensação até estar tomado por ela.

***

Eles escolhem uma mesa próxima da escada que sobe para o segundo andar e discorrem sobre a estética industrial do lugar enquanto esperam pelos hambúrgueres e pelas batatas fritas. O restaurante, especializado no que promete ser o melhor hambúrguer da cidade, configura-se em uma proposta ousada que consiste em dois enormes containers empilhados um sobre o outro. Enquanto que no de baixo funciona a cozinha, mesas de madeira espalhando-se pelo restante do espaço, no de cima há um bar, mesas de bilhar e sofás de couro preto que fulguram sob as luzes baixas do ambiente com um tom que Marcos nunca soube decidir se é repelente ou aconchegante. Não há muita decoração extra além do jogo de dardos em uma parede e do fio de luzes na entrada, e os móveis são todos de metal ou madeira.

Quando o garçom se aproxima com os pedidos deles, a voz de Dexter Holland soa em um volume razoável de alguma caixa de som mais acima e os primeiros clientes da noite começam a chegar. Marcos só percebe como realmente estava com fome quando dá a primeira mordida no hambúrguer e o devora em questão de instantes. Embora já tenha comido ali outras vezes, sente que precisa sempre concordar com a premissa do restaurante – aquele é, sem sombra de dúvidas, o melhor hambúrguer da cidade. Após terminar o seu, Ana admite que a propaganda é verdadeira, com a única ressalva de que não gostou de ter encontrado picles no meio do pão.

Dexter Holland agora está incitando alguém a “acertar um soco bem no meio dos olhos deles” em “You’re gonna go far, kid”, seja lá quem eles forem, quando Ana parece se dar conta de que não sabe quase nada sobre o que Marcos gosta ou não gosta e começa a crivá-lo de perguntas.

— Então. – ela pesca outra batatinha do prato entre eles. – Que tipo de música tu escuta?

— Que tipo de música? – ele pensa por um momento. – Alice in chains, Radiohead, Joy Division. Algo assim. – então ergue um dedo como se quisesse apontar a música que está tocando e acrescenta: – The Offspring.

— Nada dos anos 2000? Que antiquado.

— Não é minha culpa se não fazem mais músicas boas.

— Sei. – Ana franze o cenho para ele. – E comida? Qual é a tua preferida?

— Pizza.

Pizza? Isso não é comida. É fast food.

— Não é fast food se tu souber onde comer. – Marcos sorri. – Vou te levar numa pizzaria ótima qualquer hora dessas e então tu vai parar de dizer bobagens.

— Vou aguardar. – ela come outra batata e apoia o queixo na mão, pensativa. – Gosta de ler?

— Gosto. – ele dá de ombros. – Economia, política, sociologia.

Ana não faz questão de esconder seu pouco interesse por tais temas de leitura, o rosto retraindo-se em uma discreta careta de desdém, e Marcos engole uma risada enquanto finge não ter percebido seu desgosto. Mergulha a ponta de uma batata frita na maionese e, enquanto mastiga, observa-a brincando com um palito de dentes sobre o tampo da mesa e pensando na próxima pergunta. Quando esta vem, contudo, ele é pego de surpresa.

— Tu disse que é um cara fechado. Por quê?

Marcos não esperava que a natureza das perguntas dela mudasse tão rapidamente, de uma curiosidade inofensiva para algo semelhante ao ato de arrancar o curativo que cobre um joelho ralado, e aquilo o faz pigarrear baixinho e beber um gole de refrigerante. Pensa que talvez possa desviar a questão com uma ironia qualquer, mas então percebe que Ana ainda está olhando-o fixamente e desiste da artimanha.

— Instinto de sobrevivência, acho. – ele suspira. – Dizer às pessoas como tu se sente e ser assim tão franco sobre as coisas te deixa vulnerável. Exposto demais, entende? E isso significa que as chances de alguém ser um filho da puta contigo ou de a situação sair do controle são bem maiores. Então eu apenas fico na minha e mantenho as coisas que são importantes comigo.

— Mas não é uma vida meio solitária?

— É. – Marcos abre um sorriso sem jeito. – Mas eu me adapto bem.

Ana assente e passa a encarar as batatas fritas remanescentes, a mão direita girando involuntariamente o copo já vazio sobre o descanso de madeira, e Marcos deseja saber no que ela está pensando. Espera não ter soado ríspido ou amargurado demais, proporcionando uma imagem deprimente de si mesmo. Como ela demora a sair daquele torpor especulativo, ele pergunta se está tudo bem. Só então Ana parece retornar de um lugar muito distante, encarando-o em silêncio. Por fim, sorri e pede desculpas – segundo ela, tem aquele mau hábito de ser um tanto avoada.

— Todos os maus hábitos que tu possa ter são perdoáveis. – ele acaba dizendo.

Percebe que o rosto dela cora ligeiramente e que Ana tenta ocultar a timidez com coisas práticas. Já reparou em como ela se utiliza daquela estratégia para sair de situações embaraçosas, quando não sabe o que fazer ou o que dizer, desviando o foco para o que é sólido ao invés de abstrato e chamando a atenção para detalhes materiais que compõem o espaço ao seu redor. Assim, observa-a fechando as tampas dos tubos de maionese e ketchup com a ponta de um dedo e sorri, achando-a linda em todos os seus trejeitos.

Marcos se ajeita melhor na cadeira e cruza as mãos sobre a mesa.

— Passei no teste?

— Teste? – ela pisca sem entender.

— O teste por trás de todas aquelas perguntas. Imagino se me saí bem em todas.

— Ah. – ela ri. – É um teste muito complexo, mas ele ainda não terminou.

— Qual é o próximo passo então?

— Não posso dizer.

— E se eu não estiver preparado?

Mas Ana apenas dá de ombros como se dissesse que ele precisa se esforçar e os dois riem. Um teste – um teste muito complexo, na verdade. Marcos se pergunta se ela está mesmo avaliando-o de algum modo e pensa que aquilo é improvável, pois tudo o que ele consegue ver naquela garota é doce e sincero, de uma autenticidade genuína. Ele simplesmente não é capaz de imaginá-la usando uma máscara, fingindo ser qualquer coisa incompatível ao seu caráter e à sua personalidade.

Marcos adora e teme essa integridade.

***

Quando ele estaciona em frente ao Residencial Mohr, está caindo uma garoa fina e silenciosa. Também em silêncio, os dois observam as minúsculas gotas salpicando o vidro do para-brisa enquanto tudo o mais parece dormir naquela noite úmida. Marcos não quer que ela saia ainda, receia o momento em que ela vai começar a procurar as chaves na bolsa, mas sente que as palavras lhe escapam e angustia-se. Sente o calor da presença dela, tão próximos um do outro, mas não próximos o bastante.

— Obrigada por hoje. – ela diz.

— Obrigado por me fazer companhia.

— Posso repetir esse sacrifício mais vezes, ok?

— Bom saber. – ele sorri. – Acho que vou continuar te perturbando mais um pouco.

Ana devolve o sorriso e começa a buscar pelas chaves. Marcos sente um estremecimento, uma mistura de apreensão e pavor, ao escutar as coisas sendo bagunçadas no interior da bolsa. Então ela encontra o que precisa, um molho de chaves cujo chaveiro tem a estampa da pata cor de rosa de um gato, e olha para Marcos. Ele percebe o desapontamento indisfarçado no rosto dela e intui que Ana também não quer despedir-se – não assim.

— Então... já vou indo. Meu gato deve estar com fome e querendo me matar.

— Boris. Quando vou poder conhecê-lo?

— Tu já conhece.

— Pessoalmente.

Ela quase abre um sorriso, mas então sente que o clima está mudando, e acaba murmurando um “em breve”. Marcos encontra o seu olhar nas sombras do interior do carro. Ana parece-lhe uma coisa frágil no escuro, esperando para ser resgatada, ao mesmo tempo em que emana uma força que ele não compreende e que o atrai. Então Marcos inclina-se na sua direção e a beija, e sente que o coração afunda quando ela corresponde.

Ana o abraça, os dedos de uma mão deslizando por seus cabelos curtos, e deixa que ele a puxe para mais perto. A sensação do toque da pele dela é arrebatadora e Marcos quer mais. Já tem uma mão na cintura dela, subindo lentamente por baixo da blusa em direção às costas, quando Ana o afasta gentilmente e seus lábios se separam. Ambos respiram em um ritmo ofegante e seus rostos ainda estão muito próximos. Ela sussurra que precisa ir para casa e sorri, dando-lhe um último beijo antes de partir.

Sozinho no carro, Marcos respira fundo e experimenta uma felicidade tão avassaladora que poderia destruí-lo.

***

Naquela noite, antes de cair no sono, Marcos pensa pela primeira vez em amor. Só agora compreende que suas histórias com outras garotas tinham sido apenas paixões levianas, afetos sinceros, mas rasos, relacionamentos baseados em carência e desejo e, às vezes, em uma curiosidade quase infantil. Sentimentos efêmeros como labaredas que, sem a força suficiente para queimá-lo, tinham somente chamuscado marcas que foram se apagando com o tempo até não restar mais qualquer vestígio de sua existência além de uma vaga lembrança. Só agora se dá conta disso porque só agora ama uma mulher.

Ana.

Ele a ama com todo o seu ser e sente que aquele amor o queima por dentro, que consome carne, ossos e espírito, mas sente também que se apraz com o próprio sofrimento, que aquilo o faz feliz. Ele a ama profundamente, até à insânia, e imagina-se ridículo porque tem vontade de gritar o nome dela, de ser absurdo e inconsequente. Ele a ama ao ponto de não saber mais como lidar consigo.

Ana.

Como é que ele não tinha percebido antes?


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