Atlas: Lua escrita por Biazitha


Capítulo 2
Entre o mofo e os passeios




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Yuqi desceu do carro com cuidado. Suas pernas estavam moles e o corpo parecia ter perdido toda a força.

Tudo culpa daquele pesadelo idiota, pensou atormentada.

Seu pescoço parecia arder de tão dolorido que estava. Dormir na mesma posição desconfortável por horas não havia sido nada renovador para o corpo já exausto, sentia-se “crocante”.

A oficina estava aberta, mas, não havia ninguém ali na frente. Respirando fundo — e tentando juntar alguma coragem — foi até a traseira do carro e fez força. Quando foi empurrar o jipe até mais perto da entrada, percebeu que estava mais pesado do que no dia anterior e se deu conta de que estava, de fato, sozinha. Onde Wong Yukhei havia se metido?

A mulher abriu a boca para chamá-lo, no entanto, fechou-a em seguida. Tinha a terrível sensação de estar sendo observada e, como se escutasse seus pensamentos, o dito cujo saiu do meio das árvores, causando um leve sobressalto na professora que tentou disfarçar com um bocejo.

Lucas sorriu contente. Na verdade, ele parecia sempre estar feliz, ostentava um sorriso charmoso nos lábios grossos com naturalidade. Ele retirou algumas folhas secas do cabelo e da roupa; Yuqi percebeu que ele estava com a mesma jaqueta e cachecol do dia anterior, então o que raios havia ido fazer na floresta? Ele não morava lá? Por que não se trocou?

Mais uma vez: tinha muitas perguntas e nenhuma resposta.

 — Bom dia, senhorita. Dormiu bem? — A mulher não respondeu de imediato, deixando o homem um pouco desconcertado. Ele balançou a grande mão na frente dos olhos vidrados dela que, por sua vez, murmurou algo inaudível. Um palavrão, talvez.  

— Sim... Acho que sim.

— Tem certeza? Suas olheiras me parecem fundas demais e você está com cara de doente, meio pálida e perdida.

— Muito obrigada. Era exatamente esse tipo de elogio que eu estava precisando logo pela manhã — respondeu irônica, virando o corpo para o jipe. Sentia o rosto arder de vergonha por estar em um estado tão deplorável.

Sem prolongar o assunto, ambos começaram a empurrar o automóvel. Ao pararem na porta da oficina, um homem de idade avançada surgiu curioso.  

— Algum problema, minha jovem? — Dirigiu-se à Yuqi, limpando as mãos em um pano sujo. 

— Estava passando por essa estrada e o jipe parou de funcionar. O senhor poderia dar uma olhada, por gentileza? — O velho analisou a professora de cima a baixo e suspirou. Não estava com muita vontade de trabalhar, ainda mais para uma turista. — E-Eu pago adiantado, se esse for o problema.

— Me dê uns minutos. — Os olhos enrugados e sem brilho mudaram de foco, e a agilidade com que ele se enfiou embaixo do automóvel foi surpreendente. Lucas afastou-se aos poucos, encostando o corpo na parede suja da oficina. Yuqi o seguiu, parando ao seu lado.

— Você precisa de um banho. Vamos até a pousada daqui depois — comentou ele, fazendo careta e apontando para as vestes amassadas da mulher. Em seguida, olhou para a densa floresta, soltando a frase com um tom de voz divertido: — É perigoso ficar por aí, os lobos podem pegá-la. 

— O quê? Não! Eu vou embora. Com certeza a lata velha fica boa hoje.

— Não ponha tanta fé nisso, parece ser complicado. E, além do mais, você está cansada. Precisa de uma boa noite de sono para recuperar as energias.

— Minha família deve estar preocupada! Exausta ou não, hoje mesmo irei embora daqui.

— Veremos... — Lucas respondeu baixo, cruzando os braços na frente do peito e parecendo ter dobrado de tamanho. Yuqi não podia deixar de reparar como ele era esguio e elegante mesmo sem querer. Era um belo homem, apenas intrigante demais. 

— Qual é o seu problema? Está torcendo contra?

— Não! Só estou preocupado e sendo realista. É uma desfeita que pense isso de quem só te ajudou até agora. — Arqueou as sobrancelhas em cima dos olhos castanhos, forçando uma careta falsamente ofendida. — Caso consiga o seu jipe de volta, não está em condição de dirigi-lo por muitas horas. É perigoso, o melhor seria descansar primeiro. 

— Agradeço a sua preocupação, mas não preciso dela. Mal nos conhecemos, eu ficarei bem. 

O velho apareceu ao lado dos dois de novo, dissipando um pouco da atmosfera tensa que havia se formado. Mesmo com o frio que fazia, ele suava de um modo exagerado.

— Olha, jovem... É um problema no motor. Eu não faço ideia de como ele pode ter fundido desse jeito. Preciso de tempo para descobrir.

— A estrada esburacada pode ter influenciado — tentou argumentar ela.

— Duvido muito. Você tem um jipe! Ele foi fabricado para aguentar os trancos mais fortes e os barrancos mais íngremes que existem. Não fundiria por alguns buracos pequenos.

— E o que deve ser feito?

— Primeiro, vou trocar o óleo. Na maioria das vezes, o motor funde por culpa da baixa quantidade de óleo. Caso não funcione, darei uma olhada no sistema de arrefecimento. Pode ter fundido por culpa do superaquecimento do motor ou pela insuficiência de água. Em último caso, farei uma retifica de motor. Trocarei os cabeçotes, válvulas, juntas, pistões... — A menção de tudo o que seria realizado fez a conta bancária de Yuqi estremecer. 

— E quanto tempo vai demorar?

— Ah, minha jovem, eu trabalho sozinho nessa oficina. Diria que em uma semana ficará pronto. Isso porque estou sendo positivo. Se precisar trocar o motor, por volta de duas semanas.

— COMO É?!

Lucas desencostou da parede e começou a rir alto enquanto cantarolava “eu avisei, eu avisei” como uma criança. A mulher sentiu a face esquentar de vergonha, raiva e frustração. 

— Pode parar?

— Você devia ter acreditado em mim.

— Cale a boca! Meu dia já não está muito bom.

O terceiro elemento presente olhava a discussão com uma expressão desconfortável; não queria presenciar aquela cena, mas, também não queria interferir.

Quando os dois se deram por satisfeitos em uma troca de olhares orgulhosa e irritada, voltaram a atenção ao que importava.

— Sinto muito, minha jovem. Você terá que esperar uma semana. Ou duas.

— Não há nenhum ponto de ônibus por aqui? Ou uma estação de metrô? — Antes mesmo de escutar a resposta, já havia percebido que era uma pergunta idiota. Aquele lugar bucólico e isolado não devia nem ter telefone, quem dirá um meio de transporte adequado. — Bom... Estarei na pousada da cidade, qualquer coisa é só procurar por Song Yuqi.

O velho assentiu e deu-lhes as costas, sumindo dentro da bagunça da oficina. Com os ombros baixos, a professora de teatro retirou a mala e os doces de dentro do jipe. Sua avó ficaria muito chateada.  

A pousada era simples e pequena, como qualquer outra coisa naquele lugar. Não havia carros no estacionamento e a pintura das paredes de madeira estava gasta, dando-lhe um aspecto sujo e velho. Poucas pessoas relaxavam nos sofás da recepção, próximas a uma lareira de pedra, e falharam em esconder a surpresa ao ver quem entrava. Parecia que a pousada era o ponto de encontro das pessoas daquela cidadela. 

Yuqi andou rápido até o balcão, incomodada com tanta atenção que recebia. Uma mulher loira com um sorriso simpático atendeu-lhe:

— Bom dia! Em que posso ajudar?

— Eu preciso de um quarto. Ficarei uma semana.

Ela assentiu e pegou duas fichas, entregando-as para a professora que as preencheu com pressa. A loira foi até uma salinha ao lado da recepção e voltou, três minutos mais tarde, totalmente diferente; parecia outra pessoa. Suas mãos tremiam enquanto segurava a chave, e tinha o corpo encolhido, como se estivesse com medo.

— O único quarto disponível é o 209. E-Eu jurava que tinha mais um quarto livre, mas não encontro a chave — falou meio temerosa, esperando que Yuqi a desculpasse por algo que ela nem fazia ideia. A menção do número do quarto fez com que algumas pessoas prestassem ainda mais atenção na conversa. Sussurros começaram a preencher o silêncio de antes, uma agitação diferente crescia no ambiente.

Yuqi pegou a chave e não respondeu mais nada, assustada com a reação. Aquelas pessoas eram estranhas. Aquela cidade era estranha. Tudo que a rodeava parecia estranho até demais. 

— Por que as pessoas estão me encarando tanto? Estou tão fedida assim? Qual o problema delas? — Indagou para Lucas entre sussurros apressados e passos largos. O homem estava perambulando pelo local, observando as armas de caça e as imagens de grandes lobos espalhadas pelas paredes, e fez pouco caso da situação. 

— Não se preocupe com elas. — E tomou a frente, indo até as escadas; ficou parado na frente da porta, esperando pela mulher. Deu uma olhadela para trás e reprimiu um sorriso. Ele nunca parava de sorrir? — Não estão acostumadas com turistas.

O quarto 209 exalava um cheiro nauseante de mofo e carpete velho, contudo, era aconchegante. Tinha uma cama de casal, um frigobar e um banheiro pequeno. Eram os itens básicos para a sobrevivência de Yuqi por uma semana.

Não havia telefone algum, porém. Precisava buscar outro meio de avisar a família que estava presa naquele lugar por um tempo. 

A mulher jogou os pertences em um canto qualquer e pulou na cama macia, quase gemendo de prazer. Lucas trancou a porta e observou o lugar, balançando a cabeça em negação.

— Já estamos nesse nível de intimidade? — Ela perguntou enquanto olhava-o andar pelo lugar, avaliando cada canto. Não sentia mais tanto medo dele, só não estava acostumada com tanta amigabilidade de um desconhecido. 

— Parece que esqueceram uma mala aqui — comentou, ignorando a perguntar feita. Ele abriu a mala sem hesitar; algumas peças caíram para fora e ele as guardou com cuidado. Olhou para a mulher e praticamente ordenou: — Vá tomar um banho. Eu levarei isso aqui para a recepção.

Meia hora havia se passado quando Yuqi saiu do banheiro com roupas novas e cheirosas. Sentia-se renovada, mesmo que cansada. O homem estava sentado na beirada da cama, a esperando.

— Muito obrigada pela ajuda — disse ela, deitando ao seu lado. — Ainda acharei um jeito de te recompensar.

— Pode começar me recompensando agora...

— Como assim? — Levantou minimamente a cabeça, observando o perfil arrebitado dele.

— Preciso de um lugar para ficar esses dias. Ajudo com as despesas do quarto, só me deixe dormir aqui.

— Não é estranho me pedir uma coisa dessas?

— Não — respondeu. Sua voz soava realmente sincera, não via problema algum na situação. — Assim como você desconfia de mim, eu desconfio de você.

— Eu não sou suspeita.

— Quem disse que não? — O olhar ofendido que recebeu fez com que ele risse alto. Jogou-se ao lado dela, apoiando a cabeça na mão. — Não nos faremos mal algum. 

A mulher passou um tempo observando os olhos castanhos de Lucas. Ele era um homem bonito, bem vestido e simpático. Se quisesse a matar, roubar ou qualquer outra coisa, já teria o feito há muito tempo, não?

Não sabia responder, só estava contando com o seu sexto sentido. Ele não parecia uma pessoa ruim, foi prestativo desde o começo...

Qual era a diferença entre ele e um cara qualquer que conhecia na balada e levava para dentro de casa? Os dois tipos poderiam ser perigosos.

Ou uma boa companhia. 

— Problemas em casa? — perguntou ela de repente, tentando encontrar algum motivo para que ele não quisesse voltar ao próprio lar. 

— Mais ou menos isso.

A professora fechou os olhos e se deixou levar pelo farfalhar baixo das folhas do lado de fora. Era tranquilizante. Tanto para o corpo, como para a mente. Uma pequena fresta da janela estava aberta e a claridade que entrava embalava o sono que chegava. Estavam no inverno e — Yuqi sabia — dali alguns dias a neve começaria a cair. Ainda mais por estar em uma região montanhosa. Como faria para se locomover pela neve? O seu jipe aguentava, entretanto, o seu senso de direção seria bem afetado. Não que fosse ele fosse muito bom normalmente. Talvez se tivesse um pouco mais de noção geográfica, não estaria presa naquele lugar. 

— Isso não importa agora — murmurou para si mesma, espantando os pensamentos preocupantes e se concentrando na própria respiração calma.

— Vai dormir? — Lucas questionou, observando os olhos pesados da mulher fecharem cada vez mais. 

— Por favor, não me roube e nem me mate. Eu só quero dormir — brincou com um fundo de verdade. Poderia ser loucura o que estava fazendo, mas, ela só queria paz por um momento e descansar.

O homem riu e puxou um dos travesseiros, colocando-o atrás da cabeça da mulher para que ela pudesse deitar melhor. 

“Frio... Muito frio.

 Já conhecia aquele lugar e ainda podia escutar os próprios dentes rangerem involuntariamente como da outra vez. Estava na mesma situação; os braços doíam, as pernas doíam, a cabeça doía. Não conseguia falar.

A neve caia sem piedade, impedindo que tivesse uma visão coerente do ambiente ao redor. Enxergava alguns palmos à frente do rosto, apenas. Os uivos dos lobos podiam ser ouvidos mais uma vez e ela se adiantou, virando a cabeça para o lado com cuidado. Escutou os ossos reclamarem e gemeu baixo.

Viu um vulto cambaleante surgir do meio das árvores brancas. O vulto foi se aproximando, lento, até não suportar o próprio peso e cair no chão.

O mesmo baque surdo. O mesmo corpo encolhido e trêmulo.

Yuqi engatinhou com cuidado até a pessoa. O sangue em seu próprio corpo não circulava mais, por isso sentia que poderia perder os dedos da mão a qualquer momento. Sofreria uma amputação espontânea.  

O corpo inerte na neve se contorceu um pouco, chorando alto. Era um som perturbador.

Algo passou correndo ao seu lado direito. Depois do esquerdo. Estava os rodeando. Seriam os lobos? Ou algo pior?

Ela aproximou o rosto da face roxa da pessoa caída, um pouco desesperada e completamente com medo. Dois olhos escuros e sem vida a observaram de volta. Uma voz horrenda berrou, não parecendo pertencer a este mundo:

— ME SALVE, POR FAVOR...”.

A professora abriu os olhos de supetão, segurando um grito na garganta. Virou a cabeça em todas as direções para se certificar de que ainda conseguia movimentar o corpo. Os pesadelos estavam começando a assustá-la de verdade.

Enquanto limpava um fio de baba da boca, reparou em Lucas deitado ao seu lado a olhando compenetrado; parecia estar em outro mundo, como se tivesse dormido de olhos abertos. 

Yuqi tossiu e se remexeu, fazendo com que o homem voltasse a si, um pouco abobado. Era extremamente desconfortável estar sob aqueles olhos perdidos. 

Oferecendo o costumeiro sorriso amigável, ele levantou-se da cama e comentou:

— Agora que está acordada, aproveitaremos essa noite fria. Serei o seu guia hoje. Mostrarei um total de cinco coisas que existe de interessante aqui. 

Duas semanas. 

Já fazia duas semanas que Yuqi estava presa naquela vila, mais especificamente naquela pousada velha e mal-cheirosa. O inverno estava rigoroso demais e só conseguia sair para ver o carro na oficina ou tomar um café muito quente no posto de gasolina. Lucas havia montado um roteiro para aproveitarem minimamente algumas paisagens bonitas, no entanto, tudo fora por água abaixo assim que os flocos de neve começaram a cair em uma quantidade preocupante.

Não era como se pudessem fazer muitas coisas por ali mesmo.

A maior parte dos dias os dois estavam juntos, deitados lado a lado na cama, compartilhando algumas histórias engraçadas ou marcantes de suas vidas. Comiam juntos, escutavam músicas juntos, arrepiavam-se com os uivos perturbadores dos lobos à noite, ficavam olhando pela janela juntos e dormiam juntos também.

A amizade tinha crescido em uma velocidade surpreendente e bonita, tanto que Yuqi agradecia a Lucas sempre por não a deixar tão sozinha no dia a dia e por ter resolvido ajudá-la com o jipe na estrada.

Havia mandado uma carta simples à família, já que parecia ser o único meio de comunicação existente ali. Explicou brevemente sua situação, garantindo que estaria em casa logo. 

Contudo, naquele dia em especial, a professora se sentia irritada e impotente. Uma sensação quente começava a perturbar em seu interior; sentia que algo ia acontecer, mas, não sabia dizer se era bom ou ruim.

O mesmo sexto sentido que a havia feito mudar o caminho uma semana atrás estava a enlouquecendo mais uma vez.

— Vou pegar alguns biscoitos com a cozinheira, quer vir?

— Não, muito obrigada — respondeu a Lucas, contendo um suspiro triste. O homem deu de ombros e saiu porta a fora, mas, parou na soleira e virou para trás. Fitou a mulher deitada de barriga para cima, com uma calça jeans preta e um casaco verde. Mal-humorada, a professora indagou: — O que foi? Perdeu alguma coisa?

— Eu, não. Você, sim. Cadê a vontade de viver? Até parece uma alma penada tristonha pelos cantos.

— Eu preciso ir embora, preciso mesmo! Minha família deve estar preocupada. Eu preciso voltar à minha vida — argumentou do nada, sentindo aquele incômodo na boca do estômago aumentar um pouco mais. 

— Fique calma, logo tudo isso acaba. E depois não adianta chorar falando que está com saudade de mim. De um jeito ou de outro você vai embora, então por que não aproveitar o tempo que resta? — Sorriu mostrando os dentes branquinhos, em seguida arrumou o cachecol no pescoço. Yuqi acompanhou o trajeto das mãos grandes no pescoço fino, admirada com a delicadeza dele, mesmo sendo um brutamontes de grande. Lucas a olhou de novo, porém, voltou para a cama, ficando de pé ao seu lado; esticou a mão direita e puxou-a pela ponta do casaco, forçando-a a levantar o tronco. Ficaram alguns segundos se encarando em silêncio e com um sorriso brincando em seus lábios. — Vamos sair daqui! Você precisa se distrair e eu já sei o que faremos.

Sem discutir mais, Yuqi seguiu o homem para fora do quarto.

O cenário coberto pela neve era infinitamente mais atraente e bonito para a professora do que o quarto mofado e sujo. Ela caminhava encolhida em seu casaco, afundando os pés no solo escorregadio e perdida em pensamentos.

Estavam em silêncio fazia um tempo, apenas aproveitando a companhia um do outro e o frio rigoroso. Se Yuqi  não estivesse tão preocupada e frustrada, com certeza estaria se esbaldando entre as árvores brancas e os montes gelados; era um passeio que gostaria de fazer em suas férias.

E ficaria contente de ter Lucas ao seu lado também, distraindo-a e enchendo seus dias de folga com sua presença divertida e intrigante.

Estavam cada vez mais distantes da pousada e da cidadela, e cada vez mais próximos de uma parte da floresta que a Song não conhecia. 

De repente, Lucas parou e olhou para o lado; um meio sorriso beirava os lábios rosados pelo frio quando resolveu se aproximar da mulher um pouco mais; os casacos grossos se roçaram levemente.

— Você gosta de mim?

— Por que perguntar isso do nada? — Rebateu a professora, contendo o ímpeto de se afastar e impedir que a conversa tomasse rumos estranhos.

Não podia fingir que não sentia uma leve "queda" por Wong Yukhei e seus mistérios; a aproximação dos últimos dias espantou qualquer mal-estar que tinham e transformou toda a irritação em — talvez — interesse.

— Por que não? É uma pergunta simples... Boba, até.

Mais um passo para o lado e Lucas jogou o braço direito em cima dos ombros da mulher, abraçando-a de lado. A diferença de altura era engraçada e adorável. 

— Responda você primeiro: gosta de mim? 

— Responder uma pergunta com outra é golpe baixo! — O homem reclamou brevemente, ao mesmo tempo que soltava uma risada graciosa. Arrumou o cachecol no pescoço e pigarreou antes de falar de novo: — Sim, você é... legal.

— Legal? Poxa, obrigada — ironizou, contrariada. Algo dentro de si pareceu se remexer ainda mais desconfortável; ela queria ouvir alguma coisa à mais. Um elogio mais interessante. Ou talvez uma declaração indireta. A queimação e o sentimento estranho oscilavam cada vez que parava para pensar na situação em que estavam.

— Não fique decepcionada. Você também é bondosa, engraçada, gentil e confiável. Eu gosto de você. 

— Agora me sinto bem melhor. — Ainda estavam presos no abraço e caminhavam um pouco mais devagar, mas, quando o homem parou abruptamente e se pôs a sua frente, Yuqi patinou um pouco no gelo até conseguir parar.

— Quero que olhe nos meus olhos enquanto responde minha pergunta. Preciso testar uma coisa...

— O quê? Você é muito estranho! — Ela não recebeu resposta, por isso apenas suspirou e organizou alguma frase coerente em sua mente. Suas mãos pareciam suar dentro dos bolsos e, definitivamente, não era pela temperatura alta do ambiente. — Eu não posso afirmar com certeza, mas... gosto de você também — brincou, mordendo o canto interno da bochecha. O homem assentiu e olhou em volta; não havia nada a não ser árvores, gelo e mais árvores. 

— Ah, foda-se! — Foi a única fala de Lucas antes de se inclinar para frente e grudar seus lábios nos da professora. Um pouco surpresa e até assustada, Yuqi só foi capaz de corresponder ao ato quando as mãos dele desceram de seus ombros até sua cintura. 

E foi maravilhoso quando trouxe o corpo esguio para mais perto do seu e deixou-se levar pelo momento. Foi um beijo delicado e calmo, uma conexão de bocas durante alguns segundos. Foi ele quem quebrou o beijo, desgrudando seus lábios frios dos lábios meio quentes dela.

— Só isso? — Yuqi murmurou um tanto decepcionada, queria mais contato; precisava sentir mais o gosto adocicado da boca convidativa do homem. Agora que haviam se beijado pela primeira vez, ela esperava que pudessem aproveitar um pouco mais. 

— Se você quer mais, venha pegar — respondeu dando um grande passo para trás. Song demorou para tomar a iniciativa e quando começou a correr atrás do homem, este já estava bem longe. A neve atrapalhava sua visão e o frio incomodava as juntas do corpo, mas se esforçava ao máximo para acompanhá-lo. 

— Onde está você? — gritou para o vazio. Levou a mão direita até os lábios e os tocou com cuidado, lembrando do contato bom que tiveram há pouco. Apoiou-se em uma árvore e algo cutucou sua mão.

Preso em seu tronco estava um cartaz meio gasto pelo tempo, porém ainda legível. A única coisa que a fez realmente parar e observar com maior atenção aquele papel foi um nome. Ela conhecia aquele nome.

Aproximou-se devagar, achando que estava vendo demais. Olhou em volta e haviam mais árvores com o mesmo cartaz que ela não havia notado antes.

DESAPARECIDO

NOME: WONG YUKHEI

IDADE: 26 ANOS 

VISTO PELA ÚLTIMA VEZ NA POUSADA DALI

Qualquer informação, contatar a guarda local

Yuqi engoliu em seco, sentindo seu mundo perder um pouco dos sentidos. Apoiou-se no tronco gelado mais uma vez e respirou com rapidez, sentindo seu nariz e garganta rasgarem com o ar frio que entrava com velocidade. 

— Você já desis... — A frase morreu aos poucos na garganta de Lucas, que saiu de trás de uma montanha de neve. Quando a expressão assustada da mulher virou em sua direção, só conseguiu murmurar: — Você está bem?

— Wong Yukhei, que merda é essa? Você é algum fugitivo? — Sua voz ficava mais alta cada vez que falava, ecoando pela floresta de forma desesperada. 

— Não é isso, Yuqi. É algo mais... Vai além da sua compreensão. — O homem andou alguns passos vacilantes e cuidadosos, com as mãos na altura dos ombros e os olhos arregalados. Ainda estava cedo para ela saber, tinham algum tempo para aproveitar.

— Está me chamando de burra, por acaso? A situação me faz criar suposições que você não gostaria de saber.

— E-Eu precisei mentir, você não entenderia. Não me ajudaria...

— Essa conversa está estranha demais. Não faz uma porra de sentido! Por que mentiu pra mim, seu desgraçado?

Era visível o quão descontrolada Yuqi estava. A cada palavrão que os lábios trêmulos pronunciavam, Lucas parava os passos e suspirava. 

— Eu juro que quero te explicar, mas não posso. Ainda não. — Suspirou, soltando com força uma fumaça quente de suas narinas. Quando chegou perto o suficiente, buscou a mão da mulher e a apertou entre as suas frias. A professora fez menção de se soltar, contudo, Lucas segurou-a de um modo mais firme e a forçou a olhar para si. Seus dedos seguraram o rosto de Yuqi com delicadeza, sentindo o olhar dela mais congelante do que a própria neve. — Você confia em mim?

— Isso não importa, mas eu não confio mais. 

— Sabe, não é... 

Um uivo soou ao longe e Lucas se calou, de repente parecendo preocupado. Suas sobrancelhas se contorciam tanto que nem parecia o mesmo homem de feições bonitas.

Depois de alguns segundos, pareceu aliviado com um sorriso fraco nos lábios e, então, convicto quando estalou a língua e riu sozinho por um curto tempo.

Song Yuqi observou as mudanças na expressão dele de perto, ainda mais confusa com a mudança rápida entre elas. Lucas era realmente um lunático? O que estava fazendo ali ainda? Por que não conseguia fugir daquela loucura?

Ele mordeu os lábios e abaixou a cabeça, ponderando por um tempo; em seguida, levantou os olhos escuros até a mulher de novo. Por um momento ficaram naquela posição, apenas se encarando e sentindo a neve umedecer suas faces.

O homem a abraçou, não sendo correspondido de imediato. A professora ficou parado como se fosse uma estátua de gelo, sentindo o outro pressionar o corpo contra si com força e carinho. Lucas logo se afastou, indo sentar embaixo de uma árvore; limpou um pouco do montinho de neve ao seu lado e convidou a mulher para o acompanhar. 

— Você promete ter paciência para ouvir uma história complicada?


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