A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 1
A Queda de Celeste




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O ar, a diferença de temperatura, o sentimento de confusão que cresce em meu peito a cada metro que me distancio do meu lar, e a pergunta que se repete incansavelmente em minha cabeça: como eles puderam fazer isso comigo? Nós éramos uma família, anjos deveriam ser proibidos de expulsarem irmãos e irmãs de sua casa.  

Tento ganhar equilíbrio com as minhas asas para poder controlar a queda, mas todas as tentativas são em vão. Minha expulsão do Paraíso foi tão abrupta e violenta que me fez inerte a qualquer tipo de resposta até ser tarde demais e meu corpo já estar em queda livre, vou de encontro ao chão terrestre como uma bola de fogo despejada pelo céu. Ou como um cometa vindo do espaço.  

Minhas costas doem, faíscas voam de mim pela velocidade que atingi, sinto como se minhas asas estivessem em processo de combustão espontânea e meu corpo fosse explodir a qualquer momento. Está chegando o momento, eu sinto, não sei se vou ser capaz de sobreviver ao impacto. Sei que os anjos possuem certas habilidades sobre-humanas na Terra, mas nunca coloquei a prova tudo que ouvi no céu, era uma celestial relativamente nova, nunca saí do Paraíso antes. Minha inexperiência apenas intensifica meu medo pelo território estranho.  

Observo de relance o cenário a minha volta, esse é o momento da verdade, a temida colisão entre a minha outrora realidade divina e a súbita sobrevivência em solo terrestre. Se me prendesse apenas a teorias e descrições do que aprendi sobre os humanos, diria que estava no meio de um ataque de pânico. Nunca senti o meu coração bater tão rápido em toda a minha existência, o choro entalado na garganta, sensação de vertigem, o oxigênio não parece suficiente, meu peito sobe e desce tentando se agarrar ao mínimo que consigo absorver do ar a minha volta como se precisasse dele para não morrer. Curiosamente, anjos não precisam respirar, sequer possuem formas humanas no céu, mas assim que fui jogada de casa assumi a minha forma terrestre, e junto dela algumas de suas particularidades.  

O impacto dói, sinto meu corpo ser consumido pela água e arrastado para baixo, forço minhas pernas e braços para cima e consigo nadar até a superfície. A água borbulha a minha volta e solta uma fumaça que quase instantaneamente se dissipa, minha temperatura devia estar muito além da capacidade humana no momento da colisão. Assim que chego na beira do lago me jogo na terra molhada e descanso meu corpo extremamente dolorido, como se todos os meus ossos estivessem quebrados. Fecho os meus olhos e tento não pensar em nada, muito menos nos últimos acontecimentos. Concentro no silêncio a minha volta e na necessidade de me curar, sinto meus ossos se regenerando e as partes machucadas do meu corpo logo estão em perfeito estado. Um dos dons angelicais.  

Se pudesse encontrar uma forma de descrever o que estou sentindo agora, diria que os sentimentos humanos me afogam como constantes ondas do mar quebrando em minha cabeça, todos intensificados pelo que acabei de passar. Me levanto e olho a minha volta em completo desespero, eu conheço a concepção do frio, medo e confusão, mas nunca os senti no céu. Aproximo meu braço dos olhos e observo atentamente todos os pelos arrepiados, o contorno com a ponta do dedo, os fazendo arrepiar ainda mais. É uma sensação entranha, não sei se gosto. Olho para o céu e meus olhos ficam marejados, logo lágrimas começam a escorrer, desesperadamente tento as secar esfregando minhas mãos por onde caem. Me sinto sozinha, abandonada e sem fé. 

Minha família me deu as costas sem motivo algum, raiva me corrói, esse sentimento desconhecido apenas cresce em meu peito até o momento em que não consigo mais contê-lo. Respiro profundamente uma última vez e quando expiro o ar, solto junto o grito entalado em minha garganta. Toda a dor e angustia o acompanham, as lágrimas retornam com força e começo a engasgar com a intensidade do que estou sentindo.  

Caminho em círculos sem destino algum, continuo chorando e sem saber como reagir diferente, minhas mãos parecem agir sem meu comando ao retorcerem os dedos a cada grito dado. Um último grito é lançado em direção ao lago, reservo o meu mais profundo desespero para esse momento. Assim que abro minha boca e as ondas sonoras escapam, mais uma demonstração da minha origem sobrenatural é feita. O grito é lacerante, poderoso e carregado de ódio, fazendo a água se dividir, assim como Moisés separou o Mar Vermelho. Meu fôlego acaba e eu despenco no chão sem forças, observo a água voltar ao normal agarrada em minhas pernas quase em posição fetal. 

Não resta mais nada dentro de mim, estou vazia. Continuo na mesma posição por horas, estática, as lágrimas nunca me abandonaram, desisti de querer controla-las. Como os humanos conseguiam viver desta forma?  Tantos sentimentos, tantas sensações...

Conforme a claridade começa a diminuir e o frio toma conta do meu corpo, desperto do meu estado catatônico e cruzo meu braço contra o peito tentando aplacar o tremor. O silêncio é quebrado com o barulho de passos atrás de mim e viro depressa em alerta, não sei o que esperar: 

— Você fez um belo show mais cedo – ele diz com a voz calma, não consigo ver de onde, seu corpo está encoberto pela escuridão da floresta.

Permaneço em silêncio, estou tão vulnerável que a ideia de lutar pela minha sobrevivência me desgasta ainda mais, se ele quisesse me matar não encontraria resistência alguma. Talvez o desconhecido estaria me fazendo um favor, talvez eu merecesse morrer, como alguém expulso pelo céu é digno de caminhar pela terra?  

Ele se aproxima, dou um passo para trás: 

— Está com frio? - pergunta, em seguida joga um sobretudo masculino em minha direção. Visto o tecido seco e quente sobre meu corpo nu, permaneço distante e desconfiada. 

— H-Há quanto tempo você está aqui? - Quando finalmente falo, o som sai engasgado e gaguejo, como se fosse a primeira vez que proferisse palavras. Mas de fato era, no céu os anjos se comunicam de forma telepática. Mas eu era uma entusiasta humana, sempre estudei diversas culturas e suas línguas, por isso sabia exatamente o que e como responder. 

— Mais do que você imagina, senti que algo estava prestes a ocorrer, quando cheguei você estava caindo. Como me encontrava próximo, vim conferir o que estava acontecendo, sorte a sua.

— Passou horas me observando? 

— Sim, não sabia se era perigosa. Deve ser para te expulsarem... Me diga, o que você fez para ser indignada do Paraíso? - Sua entonação é maliciosa e a curiosidade genuína.

— E-Eu não sei... Não me lembro. - Respondo sincera.

— Adoro mistérios, talvez possa lhe ajudar a solucionar este. - O homem misterioso me oferece sua mão em um cumprimento, gesto que se retribuído, estarei aceitando sua oferta de assistência.

Minha cabeça gira com o volume de pensamentos que passam em questão de segundos e o turbilhão de emoções que sinto. Confiar ou não, continuar sozinha em minha jornada ou usar de sua ajuda para descobrir o que aconteceu comigo? Olho para o céu escuro uma última vez, as estrelas brilham com uma intensidade fora do comum, horas atrás eu era uma delas.

Uma lágrima escorre dos meus olhos, a seco com a manga do casaco prometendo ser a última que permitirei cair. Chega de lágrimas, repito mentalmente, meu corpo deveria ser incapaz de produzi-las depois das várias horas que passei chorando incontrolavelmente. Me aconchego no sobretudo e, relutante, aceito sua proposta. Mas antes peço para que me mostre seu rosto.

O homem caminha para fora das sombras, ele é facilmente trinta centímetros mais alto que eu, isto que a estatura de minha forma humana não é baixa. A pele morena, os olhos castanhos tão intensos que se tornavam pretos dependendo da forma como a luz da lua os atingia, o cabelo liso e a barba cuidadosamente feita que contorna seu rosto, são escuros como o breu do qual saiu por entre as árvores para que pudesse enxergá-lo. Veste um terno inteiramente negro, destacando ainda mais o tom bronzeado de sua pele, seu rosto demonstra impaciência ao falar: 

— Você vem? - Ele balança insistente a mão estendida. - Última chance, dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe... - Antes de permitir que termine a contagem coloco minha mão sobre a sua. 

— Não tens medo de mim? Me viu sobreviver a queda, repartir as águas do lago... Por quê? - Questiono abatida.

Suas sobrancelhas arqueiam, os lábios formam um sorriso debochado, como se a pergunta fosse tola e a resposta óbvia. Ele me puxa para um abraço forçado, aproxima a boca do meu ouvido e sussurra: 

— Por que eu também não sou humano. - Confessa se divertindo.  

O pouco que consigo afrouxar dos seus braços com força sobre-humana em minha volta me permite arquear as costas para trás e nossos rostos não permanecerem tão colados, encaro seus olhos ficarem completamente negros. Definitivamente não é humano, muito menos angelical.


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