Blades of Chaos escrita por Madame Andrômeda


Capítulo 6
O Encontro - Parte I




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O ar gélido costumava acentuar as dores consequentes do meu braço flagelado, e mesmo sob boas doses do meu remédio entorpecente, ainda conseguia sentir o desconforto agudo do meu machucado percorrendo-me da ponta dos dedos até meu ombro.

Levei em consideração o detalhe de ter abusado dos limites da minha condição – ter socado o saco de boxe com aquele grau de intensidade e recebido o golpe fatal de Lola em meio a minha derrota imprudente realmente elevou os impactos incômodos do meu estado.

Agora, a mesma garota que havia contribuído com meu ferimento, estava a me oferecer apoio ao me guiar com uma gentileza pouco característica dela até o estacionamento da academia.

Como ainda não estava tão próximo do horário de recolher, era notável a transição concentrada de alunos pelos campos da academia. Dois nerds tinham seus cadernos arrancados pelas mãos trogloditas de bullies noviços e apanhavam sem chance de revidar ao tentarem obter seus pertences de volta. Mais adiante, um grupo de cinco Preppies – grupo pertencente da alta elite tanto da escola quanto da cidade, reconhecidos por serem viscerais lutadores de boxe e por desprezarem todos aqueles inferiores socioeconomicamente a eles – estavam a duelar fazendo uso de uma imperiosidade notória contra somente dois Greasers.

Aquela disputa acirrada havia conseguido atrair uma audiência de Jocks debochados, estes que eram os verdadeiros “reis” de Bullworth, os brutamontes esportistas ilustravam o topo da hierarquia escolar – tendo Mandy Wiles como a tão proclamada “rainha” das outras bem selecionadas animadoras de torcida pertencentes ao restante grupo dos Jocks. Tudo em Bullworth girava em torno da liderança deles. Depois vinham os Greasers, Preppies e Bullies. Os nerds eram a classe mais suscetível a ataques vindo de todos os outros grupos.

Dentre os berros bárbaros dos Jocks, tais instigavam mais a troca de socos e chutes entre os Preppies e Greasers, algumas destas exclamações de incentivo eram os clássicos: “Ih, se fosse comigo, eu não deixava!”, “Quebrem a cara desses greaseballs de porrada!” ou “Chutem esses mauricinho de papai logo, eu já teria ganhado essa merda sozinho!”.

E em meio a esse habitual caos acadêmico, Lola tinha me direcionado até sua motocicleta estacionada próxima ao ônibus escolar inoperante que fazia divisória com a oficina dominada primordialmente pelos Greasers e o estacionamento em questão. A moto dela tinha um aspecto empoeirado, e um tom vermelho-vinho bastante apagado pelo seu estado desgastado. Mas ao todo, me passava mais confiança do que algumas bicicletas quebradiças que tive a infelicidade de conduzir no passado.

Lola desvencilhou seu braço do meu e abrira o zíper da pequena bolsa porta-malas localizada na traseira da motocicleta para recolher dois capacetes. Ela lançou subitamente um destes capacetes na minha direção após me dar uma piscada provocativa, e sua face demonstrou satisfação cristalina pelo meu reflexo ágil ter capturado seu arremesso repentino. Logo mais, a greaser recolheu um outro item do acervo de seu automóvel. Fora desse modo que ela veio a trajar duas luvas de motociclista que não acobertava os dedos no encaixe de suas mãos alvas.

A partir de um único gesto que indicava familiaridade em tal feito, Lola subiu na sua motocicleta e ajustou seu capacete em uma sequência bastante fluída. Uma chave foi removida do bolso de sua jaqueta, e a inserção desta resultou no acionar do motor.

Os olhos astutos dela ainda estavam visíveis pelo espelho protetor do capacete, e com o intuito claro de me estimular para acompanhá-la, Lola rodou o guidão direito da motocicleta. O barulho de motorização me fez comunicar-me com ela utilizando um tom de voz mais elevado.

― Nunca andei de moto. ― Alertei, receosa. Deixei a fita do capacete apoiada no meu pulso mais forte para apanhar um prendedor de cabelo em um dos bolsos da minha jaqueta.

Após ter prendido boa parte do meu cabelo amotinado em um coque desalinhado, reparei na usual malícia exalada por Lombardi em resposta ao meu comentário, mesmo um pouco mais oculta pelo capacete o qual a acobertava no momento.

― Está intimidada? ― Sua voz abafada trouxe à tona a questão em uma incitação zombadora.

Rolei os olhos e bufei ríspida. Era bem capaz que eu acabasse provocando uma guerra somente por ter sido desafiada ou zombada. E Lombardi por ter o conhecimento ávido dessa tendência horrível minha decidiu a ser injustamente hábil em trazer isso ao favor dela.

― Você sabe muito bem que não estou intimidada coisa nenhuma. Só estou analisando onde irei me segurar, e por onde devo subir sem pagar um mico, visto que nunca fiz isso.

Prossegui em enfim encaixar o capacete para proteger meu crânio na viagem e ajustei a fita para prendê-la no limite máximo ainda que a sentisse um tanto solta mesmo assim.

― Suba pelo lado esquerdo com o apoio do pé da moto e você tem duas opções para se apoiar. ― Orientou de forma didática a princípio, mas encerrou com uma sugestão lasciva. ― A primeira é chata, onde você pode deixar suas mãos para trás e segurar nas alças na parte de trás da moto. E a segunda é muito melhor onde você poderia se segurar em mim.

― Agradeço a proposta, mas irei analisar por mim mesma qual opção é a melhor. — Respondi-a, tendo um sutil sorriso estampado em meus lábios. O capacete ocultava isso, mas não podia deixar de achar graça na previsibilidade das investidas afetivas de Lola. A maneira como ela ia com sede ao pote chegava a ser risível. Eu não me sentia desconfortável, do contrário teria sido muito mais brusca ao negar suas tentativas prévias. O problema era que acabava afetada pela possibilidade de ceder a esses galanteios inusitados.

Sim, Lola tinha uma personalidade deturpada e moralidade bem questionável, sem falar de um histórico de relacionamentos cheios de volatilidade. Mas ela também é a primeira garota a me cortejar e me desafiar simultaneamente. Ela é cálida, impiedosa e marcante de todas as formas – boas e ruins. Por mais que odiasse admitir, ela seria alguém com quem eu gostaria de persuadir laços profundos. Isso se o lado ruim dela não superasse o seu singelo aspecto positivo.

Era uma batalha de quereres sob um incêndio a se alastrar. Deixar-se queimar nas chamas de desejos destrutivos ou definhar sufocada na fumaça desejosa das sombras do que poderia ter sido consumado. De todo modo, eu já estava queimada o suficiente por outras decorrências.

Segui com a orientação que me foi dada e escalei a moto com só um pouco de ressalva por conta da maneira como me posicionei ter sido bem menos dinâmica em comparação a de Lola. Imediatamente posicionei minhas mãos para alcançarem a parte de trás da moto para evitar saciar os desejos avulsos da greaser. Contudo, o fato de nossas coxas estarem tão próximas a ponto de compartilharem o calor uma da outra já parecia o suficientemente perigoso.

― Pronta?

Antes que eu pudesse concordar, Lola dera partida no veículo, pegando um impulso notório e ruidoso para absorver uma velocidade adequada para condução. Enquanto ela manobrava para frear do local onde estava estacionada e seguir caminho para a estrada, meu olhar se voltou para contemplar o tumulto da briga entre as gangues dos Preppies e dos Greasers. O resultado daquela disputa me surpreendeu. Mesmo com a vantagem numérica unida às habilidades combativas adquiridas através de muito empenho e prática, os Preppies haviam perdido para os dois Greasers naquela ocasião.

Os mauricinhos de trajes Aquaberry requintados grunhiam em agonia no chão devido a pancada que haviam recebido, e os Greasers comemoravam extravagantemente semelhante ao modo que Johnny Vicent comemorava sua vitória antecipada da nossa eventual corrida de bicicleta. Ali, reparei com mais profundidade o poder que os Greasers endossavam.

Os marginalizados eram mais resilientes contra aqueles que os desafiavam porque sabiam como sobreviver perante à desigualdade. Os privilegiados, por sua vez, diante de apuros, não sabiam como se recuperar por não terem enfrentado tamanha dificuldade antes.

Quem sou eu perante a esse dilema? Alguém que vive na margem da elite e que agora se encontra em desvantagem social e física. Aquela que vaga à deriva de acusações as quais podem me levar à ruínas a qualquer instante.

Minha maior força guia está no feito de não subestimar meus oponentes, que quando combinado com minha aptidão à adaptação, constituem garantias de que não serei jogada no chão toda arrebentada por qualquer motivo. Então acima de tudo, devo exercer o bom-senso para não ir longe demais nos desafios que vier aceitar para lustrar meu ego ferido de duelista incapacitada.

E também não devo sucumbir em tentações impulsivas. Duas coisas essenciais para evitar uma possível queda irreversível no combate com uma das gangues mais ardilosas de Bullworth.

~

O passeio de moto estava a ser estranhamente terapêutico. A cidade de Bullworth – remota e cheia de divisões as quais denotavam a separação de classes, assim estimulando a formação das gangues – tinha o seu encanto na perspectiva mais afastada. Por ter crescido na divisa de Bullworth e Northways, sempre me senti uma forasteira em ambas as cidades. Enquanto Bullworth era divisória e caótica, Northways era rigidamente monotípica e arcaica, com a única similaridade entre elas sendo a inamistosidade de seus cidadãos contra divergências. E essas definições serviam também para as duas escolas das quais vim a fazer parte: a academia Bullworth e En Garde eram polares opostos. No entanto, ambas possuem a mesma proporção de hostilidade competitiva em todos seus núcleos sociais.

De uma maneira peculiar, sentia-me livre. Existia uma certa liberdade em ser alheia, em ter sido derrotada diversas vezes e estar desamparada perante circunstâncias maiores. Pois sei que se me recuperar disso – se o assassino de Serena for descoberto e eu conseguir concluir meu ano letivo em Bullworth sem grandes sequelas –, poderei ser capaz de ultrapassar muitas outras dificuldades ao longo da minha jornada. Ou ao menos assim espero.

O vento da movimentação acelerada da condução de Lombardi permeava meu corpo por inteiro. Quando estávamos passando pela beira da esquina da praia, respirei profundamente o aroma de maresia e fiz uma das minhas mãos soltar-se do apoio da garupa enquanto a outra me mantinha ainda assegurada ao meu assento. Minha intenção era acompanhar a correnteza de ar devido ao aprumo que ela me fornecia. Cerrei os olhos desfrutando de uma leveza estupenda, entreguei-me à ventania e me imaginei sobrevoando tudo ao meu redor.

Subitamente, Lola freou o automóvel com agressividade calculada, perturbando meu estado de calmaria e ocasionando em meu desequilíbrio. Por conta desse espanto desconcertante, acabei levando minhas duas mãos para me agarrar no corpo responsivo e acalorado de Lola em busca de um apoio mais sustenido do que obtive nos apoios da parte de trás da moto.

― Lola! Por acaso está querendo me matar do coração?! ― Vociferei, minhas palmas aflitas apertavam a base da cintura dela ao longo em que o restante do meu corpo se pressionava em suas costas. A textura de sua jaqueta agia como um condutor de calor estático dentre o atrito, e meu queixo quase repousava em seu ombro.

Nossos corpos estavam quase tão próximos quanto da ocasião em que viemos a duelar. Foi inevitável conter aquele irritante rubor aquecido de se apossar das minhas bochechas, mas me convenci que a razão dele era pela minha fúria diante da turbulência repentina ao invés do contato íntimo o qual estava a partilhar com Lombardi.

― Precisava encontrar uma forma extrema para trazer sua atenção exclusivamente a mim de novo, querida! ― Retrucou, indignada. ― Estava avisando que estamos nos aproximando de onde quero nos levar e como você estava distraída com seus próprios pensamentos.

Lola retornou a conduzir a motocicleta em uma velocidade branda. Havíamos virado a curva para adentrarmos o centro de Old Bullworth Vale. Era moderada a circulação de pessoas com trajes polidos de suas respectivas profissões, e a iluminação opaca provinda dos postes de luz irradiava o nosso percurso pelos derivados estabelecimentos operantes na cidade.

Percebi então Lola bufar em dissabor por não ter recebido minha atenção no momento que almejava, e vim a encontrar graça nessa demonstração de insatisfação. É a primeira vez que enxerguei a faceta da frustração perturbando de fato Lola Lombardi – aquela que era aparentava sempre tão presunçosa e inabalável.

Por uma pequena fracção de segundos, essa postura mimada e emburrada me fizera lembrar de Pinky. Que curioso. A greaser e a preppie que tanto se desprezavam, na realidade, tinham semelhanças de comportamento bastante tangíveis afinal.

― Bastava você falar um pouco mais alto. Existiam tantos meios de chamar minha atenção. ― Adverti ponderadamente.

Uma alteração de estado foi-se efetuada na presença de Lola a partir da minha advertência. Perceptível como a ardência vinda de uma queimadura na mão após tê-la colocado sob um fogaréu, a malícia característica dela retomou a superfície.

― Oh, mas esse foi tão mais recompensador. Vejo que enfim percebeu por si mesma a opção mais segura para andar de moto comigo. ― Apontou enquanto ajustava-se no seu assento em busca de estar mais acomodada em meus braços. Logo, percebi: ainda estava praticamente abraçando-a para me segurar em meio à condução, tudo devido àquele susto infeliz.

O pior é que, fiquei tão acomodada com a quentura e a estabilidade calibrada pelo entrelaço dos meus braços envoltos na cintura dela, que passei a sentir meu corpo esfriar gradualmente ao ter me afastado e voltado a me segurar firmemente na parte de trás da moto.

― Você se torna cada vez mais perversa. Desse jeito, uma hora dessas eu vou acabar te estapeando, seja por acidente ou intencionalmente. ― Ameacei sem manifestar garra alguma.

― Como eu adoraria vê-la tentar. ― Instigou fazendo um bom uso de sua tonalidade felina no mesmo instante em que estacionou a motocicleta na lanchonete Burguers, somente um tanto mais a diante do centro. ― E finalmente chegamos.

Com a mesma agilidade da qual se valera para subir na moto, Lola realizara sua descida com graciosa desenvoltura, removendo seu capacete em sequência. Me vi mesmerizada pelo momento onde a vi bagunçar os curtos cabelos sedosos para trás e depois ajeitá-los de modo caprichoso. Fora somente por um vislumbre de segundo que me mantive a contemplá-la.

E acabou sendo o suficiente para que ela reparasse e me retribuísse com um sorriso ardil e sedutor. Seu olhar entregava pura satisfação – seria porque ela teria recebido minha almejada atenção indivisa agora?

Decidi me desvencilhar desse transe ao desviar o olhar primeiro, e enquanto ela guardava o capacete em sua bolsa porta-malas, a entreguei meu capacete removido e aproveitei sua distração momentânea para descer do veículo sem que ela estivesse me observando com tanto foco. Sua persistente fixação me constrangia de certo modo. Isso e a minha inexperiência em escalar e declinar de motocicletas.

Logo quando pus meus pés no chão, Lola moveu-se para segurar minha mão ao proclamar:

― Venha querida, vamos lanchar! Tenho dois tickets de alimentação para combos com batata e milkshake incluso!

~

No pretexto de esbanjar cordialidade, Lola requisitou para que eu escolhesse uma mesa da minha preferência enquanto ela se manteria na fila para recolher nossos pedidos. Vim a optar pela mesa situada ao lado da janela, com a vista direcionada para o farol da praia de Old Bullworth Vale. Soltei meus cabelos para deixá-los arrumados de um só lado do meu ombro e deixei meu prendedor em meu pulso. Em questão de poucos minutos ininterruptos passados dentre quatro voltas da luz reluzente do farol clareando áreas específicas da vasta costa oceânica, Lola retornou com uma bandeja com dois cheeseburguers de proporções generosas, dois pacotes médios de batatas fritas para acompanhar e uma única taça de milkshake de morango, com uma cereja no topo enfeitando a cobertura de chantilly.

Lola sentou-se na cadeira à minha frente e depôs a bandeja sobre a mesa. Imediatamente, a greaser recolheu uma única batata e a devorou enquanto me contemplava. Ela apoiou seu rosto sobre o queixo e me desafiou, tal como sempre fazia.

― Vamos jogar um jogo de perguntas. ― Propusera sem pestanejar. ― Uma pergunta por vez. Eu faço a primeira.

Antes mesmo que eu pudesse fornecer qualquer oposição à aquele jogo, Lola indagou.

― Você já ficou com alguma garota?

― Não.

Aproveitando a brecha de não precisar dar detalhes da minha resposta, a retornei de maneira curta e direta. Meio a isto, peguei um dos cheeseburgers convidativos à minha frente e dei uma mordida farta ao consumi-lo. Em seguida, saboreei algumas batatas.

― Você já quis? ― Lola pressionou a questão. Ela permanecia a desfrutar as poucas batatas de seu pacote preguiçosamente, e a direcionar sua atenção totalizada em mim com o intuito de extrair algo mais concreto do que eu havia respondido.

― Não era para ser uma pergunta por vez? ― Contestei arqueando uma sobrancelha. Deixei o meu cheeseburger na bandeja mais vez e encostei meu corpo para trás na cadeira da lanchonete ao cruzar os braços, encarando-a com ar de provocação combativa.

Seu habitual sorriso felino realçou o resplendor de seus lábios rubis e nos mantivemos a encarar uma a outra ao longo que Lola veio a se manifestar em contrapartida.

― Sim, mas sua resposta foi rasa demais para que eu ficasse satisfeita.

― Você é impossível. ― Revirei os olhos após dar uma risada debochada perante ao apelo dela. Foi impossível não ceder: ― Sim, já quis. Eu sou lésbica. Satisfeita agora?

― Muitíssimo satisfeita eu diria. Sua vez.

O brilho de seu olhar dilatado ressaltava a veracidade por trás de sua afirmação. A vi mordiscar os lábios com certo grau de sutileza, sua postura era focada e sua mão continuava a servir de apoio para seu queixo. O corpo delineado dela se mantinha descaradamente inclinado para persistir estar o mais próximo possível de mim, por mais que eu tivesse me afastado um tanto com meu gesto anterior de me lançar para trás no meu assento.

― Qual é o seu lance com o Johnny Vicent? ― Perguntei sem muita cerimônia.

Reparei na mudança do semblante de Lola com essa pergunta. Seus olhos acastanhados ávidos pareciam estar a recordar dos resquícios de uma história instável de volatilidade. Os segundos foram preenchidos pelos sons ambientais da lanchonete. Até ela revelar.

― Bom, ele é o meu ex-namorado. ― Disse com desdém e prosseguiu com o mesmo tom de voz abstinente de apreço ao que comunicava. ― Ele sempre cruzou fronteiras para me ajudar a me estabelecer ao me deixar ser associada com os Greasers, e como nunca tive um protetor como ele, foi um relacionamento bastante lucrativo. Acho atraente o temperamento errático dele, adoro saber o quanto ele me deseja e fico deslumbrada com a influência que ele tem sobre os outros. Ele é um líder de pulso firme, mas ele me vê como uma posse a ser mantida. O que ele espera de mim é algo que não posso oferecer, e no final das contas, ele é tão manipulável e egoísta quanto todos os outros garotos com os quais já me envolvi.

― Então você gosta de garotos e garotas?

― Achei que era para ser uma pergunta por vez? ― Replicou e arqueou uma sobrancelha da mesma forma que fiz antes, retribuindo na mesma moeda ao realizar o questionamento que fiz antes. Ela desfez sua postura somente para mimicar o cruzar dos meus braços.

― Bom, você me fez duas. Então eu te farei duas também. ― Correspondi a implicância.

― Justo. ― Saciada com nosso impasse, dessa vez ela quem cedeu à minha contestação. ― Sim, eu sou o que chamam de bissexual. Ao contrário de outras garotas de Bullworth, não tenho receio em vivenciar minha sexualidade como ela é.

A última parte de seu pronunciamento tinha me intrigado. Quando estudava em En Garde, pouco se especulava sobre a sexualidade dos estudantes. Tinha até mesmo rumores rolando à solta de expulsões e cortes de bolsa de estudos caso fosse descoberto qualquer conduta imprópria dentro da escola, e como não sabiam bem a extensão do que era considerado “conduta imprópria”, nem relacionamentos heterossexuais eram formados com frequência por lá.

― Vamos dar uma pausa no jogo de perguntas para que me responda isso melhor. Você conhece garotas de Bullworth que gostam de outras garotas? ― Interroguei, estupefata, buscando compreender mais dos arredores onde fazia parte e as consequências dele.

― Ora, se eu as conheço? ― Lola me lançara um olhar perplexo diante da minha interrogação, sua voz endossava convicção no que dizia. ― Querida, você também conhece uma delas. Você e Gauthier são boas amiguinhas, não são? Ela nunca te contou sobre a preferência dela por mulheres?

Um redemoinho de descrença atordoou-me. Movi meu corpo contra a mesa para me aproximar de Lola e ouvi-la mais atentamente. Poucas coisas agora me surpreenderiam, mas essa hipótese absurda sem dúvidas é uma delas. Isso deve ser um engano, não?

Lola, ao perceber meu conflito interno através de minhas feições provavelmente vertiginosas, decidiu me conceder mais informação sem que eu sequer perguntasse mais a fundo.

― Fico surpresa que não saiba. Pinky te bajulava até mesmo antes de você sair de En Garde e estar sob investigação da polícia. ― Ao prosseguir com sua elucidação, Lola adaptou sua fala para mimicar a voz fina, cheia de suspiros e excessivamente feminina de Pinky com a mesma exatidão de uma atriz de Hollywood no auge de sua carreira. ― Ela dizia: “Sou amiga de uma das duelistas que está neste campeonato de esgrima; Thea Walsh, todas as vezes que a via nos eventos que meu tio me levava na escola dela, eu perdia o ar!”. E também recitava coisas como: “Oh, a Thea chegou na final do campeonato, ela está tão deslumbrante naquele traje!”.

― Como você poderia saber uma coisa dessas? Você e Pinky nem são amigas. ― Contra-argumentei, ainda cética, apesar de estar espantada com a precisão da imitação da Pinky feita por ela.

― Amigas definitivamente nunca fomos. Mas isso não impediu que fôssemos amantes um dia.

― Céus, como isso é possível? ― Por pouco não acabei ficando boquiaberta. Meu lanche estava esquecido e meus braços cruzados acabaram repousando na mesa para apoiar meu rosto.

Lola por sua vez tinha pego um dos canudos e degustou sutilmente de alguns goles do milkshake de morango. Presenciei-a também devorando o restante das batatas. Foi uma pausa necessária para que eu conseguisse absorver melhor as informações que ela me daria a seguir.

― Sabia que existe um barzinho LGBT no norte de New Coventry? ― Lola apontou com propriedade. ― Ele é frequentado normalmente por rapazes que buscam outros rapazes. Mas de vez em quando, tem uma concentração de garotas querendo se descobrir sem saírem das normas da sociedade.

Dei brecha para que ela continuasse sem interrupções.

― Sempre frequentei lá, é um ótimo local para se obter bebida antes de completar maior idade, porque pouco regulam as pessoas que entram e saem, justamente por ser um lugar que procuram para se esconder, não para se expor. Ano passado, Pinky entrou lá e eu a vi.

Ao ter terminado de comer todas as batatas do seu pacote, Lola se aproveitou do meu estado de choque perante o seu testemunho e recolheu algumas batatas do meu pacote para si mesma descaradamente.

― Primeiro, eu a subornei para que me desse dinheiro em troca de manter o segredo quanto a sexualidade dela. ― A encarei de modo rígido e reprovador perante aquela informação. Lola aderiu uma postura defensiva, levando sua mão para o próprio peito realçando indignação contra o meu julgamento silencioso ao continuar a se explicar. ― Hein, não me olhe assim! A princesinha miserável tem dinheiro para passar a vida inteira dela sem preocupações, eu nem sei se conseguirei fazer faculdade! Enfim, ela implorou para que eu não contasse e marcou um dia para me dar o dinheiro.

Lola balançou sua mão desviando a severidade de seu ato indigno. Mesmo com o olhar endurecido, ainda me mantive aberta para que ela permanecesse a declamar seu relato.  

― A partir desse encontro tudo começou. Foi durante a noite, através dos dormitórios femininos. Pinky me pagou e ameaçou me destruir caso eu contasse isso para alguém. Ela parecia tão desesperada, por isso eu perguntei porque ela tinha tanto medo de que soubessem. Daí ela me contou sobre como a família dela era tradicionalista, que ela estava prometida para casar com o primo dela a fim de manter a linhagem deles, e que ela só queria beijar uma garota antes que precisasse seguir de acordo com o que a família queria que ela fosse.

A imersão de Lola em suas palavras era notória. Ela voltou a debruçar-se sobre a mesa e a afundar o queixo na palma da mão enquanto bebericava o milkshake. Sua postura aparentemente relaxada parecia evocar um ar de sobriedade coerente com o seu relato.

― Aí eu fiz o que toda pessoa misericordiosa faria na minha posição: eu a beijei. ― Dera ênfase nessa parte ao ter fixado seus olhos aquecidos e cheios de segundas intenções sobre mim enquanto traçava sua narrativa envolvente. ― Ela retribuiu. E inevitavelmente, acabamos tendo outros encontros onde nada dizíamos, somente trocávamos beijos e carícias.

Desfiz minha posição com o corpo todo inclinado na mesa e retornei a encostar minhas costas no assento acolchoado. Meu rosto poderia estar impassível, pendendo a uma seriedade irreverente, mas minha mente explodia ao tentar imaginar Lola e Pinky se beijando – todo o ódio e desprezo que ambas destilavam uma contra a outra seria pressentível até para pessoas que pouco as conheciam. Vislumbrar instantes românticos entre elas era desconcertante, para dizer no mínimo. No entanto, era verídico, pois o que seria mais eficaz em despertar uma repulsa mútua se não o rancor provindo de uma relação que acabara mal?

― Isso durou cerca de umas duas semanas, se não me engano. Até que começamos a conversar mais. Foi aí que ela me contou sobre o quanto te admirava e te assistia religiosamente, sobre as expectativas massacrantes da família dela, sobre ela nunca ter gostado de garotos e abominar a ideia de estar com um. No final, sempre discutíamos, porque enquanto as vivências dela são válidas, na minha perspectiva, elas ainda são fúteis.

Percebi Lola cerrar o punho sob a mesa quando ela proferiu a última sequência de sua frase. Pude me atentar no modo como uma aversão raivosa parecia se apossar de sua essência.

― Eu disse: “Consiga uma boa quantia de dinheiro, faça uma conta no banco quando fizer 18 anos e coloque tudo o que juntou lá. Vá embora de casa e nunca mais volte. Viva como deseja viver sem se preocupar com ninguém além de si mesma”. ― Enfaticamente, ela gesticulou o dedo indicador da mão que não estava cerrada apontando-o na minha direção como se estivesse dentro do momento em que falava com a Pinky. ― Porra, eu queria ter essa opção! Todo o dinheiro que conquistei foi me aproveitando das fraquezas dos outros, mas eu daria tudo para ter a opção de pedir para o meu pai me dar dinheiro para o que eu precisasse. E se ele não me aceitasse como bissexual, me limitaria a mandá-lo ir à merda, sairia de casa com o dinheiro que acumulei e pronto.

Um ressentimento latente se fazia presente em sua voz. Era evidente a ânsia de Lola em obter ganhos estupendos em tudo o que fazia, mas talvez essa tendência dela tivesse nascido por conta da desigualdade de sua vida em comparação a vida de Pinky. Ambas eram tanto opostas quanto semelhantes, pois se Pinky estivesse na mesma situação que Lola, existiria uma possibilidade muito grande dela ser tal como a greaser é agora. E vice-versa.

― Mas não, claro, a Pinky já sofreu lavagem cerebral da família incestuosa dela. Ela quer se encaixar. Quer o carinho da mãe, a aceitação do pai, mesmo às custas da felicidade dela. Pinky rejeitava minhas sugestões. Nós brigávamos. E depois nos beijávamos. Esse era o ciclo.

Lola desenhou um círculo no ar com o dedo que antes estava apontando para mim. Mas logo em seguida, ela inseriu um risco abrupto no círculo invisível que havia formado para expressar visualmente a sua declaração final.

― O desfecho se deu em uma dessas brigas. Em um dos nossos encontros, Pinky ficou paranoica demais de ter sido vista por alguém enquanto me beijava, e ao invés de tranquiliza-la, eu a chamei de mimadinha covarde. Já estava me cansando daquela situação ridícula. Claro, beijá-la era prazeroso. Conversar com ela não era ao todo inteiramente desagradável. ― Deu de ombros enquanto refletia bem dentre o transe de sua própria recitação. ― Mas eu estava à beira de enlouquecer com a paranoia insana dela. Então, ela me chamou de vadia inconsequente, disse que estava cansada da minha insensibilidade grosseira, que jamais iria me encontrar de novo, e me ordenou a nunca contar o que passamos juntas para ninguém. E se encerrou por isso aí mesmo. Nunca comuniquei isto a ninguém. Só até agora, o que foi um deslize sincero pois na minha concepção, ou você já sabia ou pelo menos suspeitava diante do quanto ela te idolatra.

― Eu... ― Expressei, quase em palavras, ainda tendo de ter um período para processar melhor todo aquele relato. ― Não fazia ideia.

Lola sorriu altiva com um ímpeto aclamado, tal como se estivesse irradiada devido ao meu estado chocado. No intuito de me despertar, ela pegou uma batata do meu pacote e a colocou mais no meu campo de visão para que assim me alimentasse antes que o alimento esfriasse. Agradeci silenciosamente e me dispus a devorar as batatas, me recuperando do choque.

― Então ela sabe bem como se manter no armário. ― Lola concluiu.

Alguns minutos de silêncio remoeram a nossa interação, e dentre eles, pude finalmente terminar de comer meu cheeseburger e as batatas. Lola fez o mesmo com o seu lanche. Era peculiar me encontrar em um silêncio quase confortável com Lombardi, principalmente após a confissão de seu relacionamento passado com Pinky.

Peguei o outro canudo disponível para consumir o milkshake pela primeira vez. Lola decidiu tomar um gole pelo canudo posto do seu lado da mesa ao mesmo tempo. Em vão, tentei restringir minhas bochechas de corar por conta da proximidade de nossos rostos nesse instante. Após termos finalizado o milkshake juntas, o sorriso de Lola tornou-se explicitamente mais malicioso e impiedoso quando ela voltou a se encostar em seu assento.

― Agora que já saneei suas dúvidas quanto ao tópico do meu ex-namorado e minha quase namoradinha, vamos retomar ao nosso jogo de perguntas. É a minha vez. ― Ela declarou sem rodeios. Inquieta, ela apertou os ombros contra seu próprio corpo, e acabou soltando um suspiro extasiado em meio à sua questão em pauta. ― Como você nunca se envolveu com uma garota antes? Você é lindíssima. De princípio, não entendia a fascinação de Pinky pela sua pessoa, pois só via relances de você mascarada duelando nos campeonatos televisionados que Pinky tanto acompanhava. Só que ao vê-la agora, eu também perco o ar.

Lisonjeada, e sem saber lidar com elogios, vim a comprimir meus lábios em uma linha fina, e então soltei uma respiração que pouco me dei conta que estava prendendo ao respondê-la.

― Creio que nunca conheci alguém com que tivesse afinidade. Eu nunca estive no “armário” de fato. ― Acabei bagunçando um pouco meus cabelos em um ato de nervosismo mal contido. ― Tenho o privilégio de ter uma família com boas condições financeiras, mas que nunca se importou com o modo que eu vivia. Então minha situação é bem diferente da sua e da Pinky. Porém, minha mãe faleceu quando eu era muito nova e meu pai nunca foi muito apegado à família, ele se importa única e exclusivamente com a profissão. Devo ter puxado essa característica dele, pois tudo o que me importava era com a esgrima desde a descobri na minha vida. Outros aspectos da minha personalidade foram negligenciados ao longo dos anos e talvez continuariam sendo, se eu não tivesse me tornado incapaz de duelar.

Sempre me foi complexo revelar aspectos pessoais meus para as pessoas, mesmo antes de toda a minha vida ter virado de cabeça para baixo após o assassinato de Serena e à minha lesão permanente. Talvez o espanto ocasionado pela descoberta do vínculo passado de Lola com Pinky tenha anestesiado alguma parte do meu cérebro que racionava essa minha dificuldade de abertura. Não sei ao certo, mas Lola parecia ter reparado no resultado e seus olhos reluziam um contentamento o qual mesclava-se muito bem com a sua malícia.

― Viu só? Isso sim é uma resposta satisfatória. ― Comemorou seu apreço pela minha declaração expansiva. ― Sua vez.

― Eu não sei ao certo o que te perguntar. ― Relutante, acentuei. ― Mas por que você se tornou tão fascinada por mim? Entendo, você me considera atraente. Contudo, como posso saber que sua tentativa de se envolver comigo não é um meio de prosseguir com a sua vendeta contra a Pinky, devido ao fato dela aparentemente gostar de mim também?

Passei a encarar Lola com firmeza e de queixo erguido para que aquela se sentisse sob investigação centralizada. Não queria mentiras, não queria armadilhas de forma alguma, independente de ceder ou não às suas investidas inescrupulosas que davam pouco espaço para suposições em função do seu comportamento cerimonioso e habilidades manipulativas.

Só que Lola se mantinha pouco afetada pela dureza do meu olhar. Ela inclinou-se sobre a mesa, predatória, e se aproximou de mim para sussurrar em tom deleitado e tantalizado:

― Eu me atraio por você não pelo dinheiro da sua família e nem por você ser uma excelente esgrimista tal como Pinky se atrai. ― Revelou sem pudores. ― Me sinto atraída por saber que mesmo sendo investigada por um assassinato, você ainda expressa sua fúria tão claramente. Você aceitou ir a este encontro comigo sem nem pensar, aceitou a corrida contra o Johnny, pelo o que sei, logo de imediato. O modo como você se manifesta é genuíno e delicioso. Você é mais honesta que noventa por cento das pessoas nessa espelunca de cidade e isso é motivo suficiente para que eu fique caidinha.

Assim que encerrou sua proclamação arrebatada, Lola conduziu sua mão até o canto direito do meu rosto aquecido e com suas unhas pintadas de preto ainda expostas pela sua luva de motociclista, veio a distribuir carícias desejosas de modo a me despertar calafrios quentes. Ela dedilhou minha pele até a metade da extensão do meu maxilar ao se afastar e por fim pleitear.

― Agora minha última pergunta é relacionada ao rumo do nosso encontro. Você gosta de cinema ao ar livre?

― Nunca fui a um. Sempre tive vontade.

Prontamente, ela se levantou da cadeira e pegou a cereja que estava no canto da taça do milkshake, consumindo-a com um entusiasmo palpável. Lola fez um gesto para que eu me levantasse e a acompanhasse, e sem oferecer muita resistência, assim o fiz.

― Ótimo! Espero precisamente saciar todas as suas vontades. Iremos para um agora mesmo.


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