Catarse escrita por WinnieCooper


Capítulo 2
Durante




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792455/chapter/2

Ela me levou para um ponto específico. Várias pessoas vestidas de preto estavam em volta de um caixão que estava sendo imerso no buraco. Enquanto várias pessoas choravam e jogavam flores em cima do caixão. Fiquei observando a cena fúnebre sem pensar em muita coisa. Senti-a tocar em meu braço, erguer seus lábios em meu ouvido e sussurrar.

— Celebração fúnebre dos trouxas é algo fascinante. Queria te mostrar isso.

Desviei meu olhar da cena e a encarei. Suas orbes verdes me analisando. Querendo saber minha opinião diante do encontro inesperado que ela me propôs. Eu não sabia o que lhe responder. Não sabia nem o que pensar disso tudo.

— Você vem assistir enterros trouxas com frequência? – estava curioso e era a única coisa que me passava pela cabeça.

— É por isso que leio o jornal. Sempre me interesso pelo obituário deles. – ela sorria diante daquela informação estranha que havia me entregado. – Daqui a pouco os seguiremos e vamos para a casa do morto. Que no caso de hoje é... – ela pegou seu jornal novamente. – Frank Roland. Professor de literatura da King's College London.

— Está dizendo que vamos até a casa deles? – perguntei com receio. Não gosto de enterros, não gosto de velórios.

— Já comeu a comida dos trouxas? – ela me olhava seria. Parecia querer me convencer. – Os trouxas cozinham bem melhor que os bruxos. E ele era professor, com certeza várias pessoas irão para prestar as condolências e levar comidas diferentes.

— E... – não entendia onde ela queria chegar com aquele papo estranho.

— E... Que ninguém irá nos notar lá. E precisamos de comida num primeiro encontro.

Ela virou seu rosto sorrindo para a cena do morto sendo ainda enterrado. Várias pessoas chorando, se abraçando buscando algum conforto. E eu só olhava para ela. Admirando a cena sorrindo. Havia algo de natural naquilo tudo para Astoria. Eu só não entendia o que era.

Segui seu protocolo de um primeiro encontro estranho. Seguimos os familiares, eles entraram num carro e rapidamente ela chamou outro carro que chamava táxi. Seguimo-los. Eu só pensava no quanto tudo aquilo parecia natural para ela. Andar pelas ruas da Londres trouxa. Pegar um trem. Usar dinheiro trouxa. Usar um carro trouxa. Assistir a enterros. Visitar velórios e comer as comidas que eles faziam. Aquela garota era estranha em vários níveis. Por isso seus pais pediam desculpas frequentes pela filha e cultuavam a mais velha.

— Sua irmã e seus pais não sabem que faz nada disso? – perguntei não me aguentando de curiosidade.

Ela começou a rir e me encarou. Parecia querer ver minha reação quando revelasse seu segredo.

— Minha família me considera um aborto. Melhor elogio que recebi em toda minha vida. – ela olhou para frente. O motorista do carro olhando para nós dois estranhando a conversa. Finalmente chegamos à casa do falecido e ela me arrastou para fora e pagou o motorista com dinheiro trouxa.

Aproximamo-nos da casa. Eu não me sentia bem em fazer isso. Mas para ela era algo natural. Segurou em meu braço e caminhamos juntos entrando na residência. Já estava lotada de pessoas. Várias levando comida. Várias se abraçando dizendo palavras de conforto. Outras só conversando e rindo de alguma situação que haviam lembrado depois de muito tempo sem se verem pessoalmente.

Astoria parecia alheia a aquilo tudo. Caminhou direto para a cozinha. Puxou-me para a mesa lotada de comidas dos trouxas de diferentes tipos e aromas. Entregou-me um prato e começou a colocar um pouco de cada coisa em seu prato. Eu não sei como ela conseguia comer diante daquilo tudo. Mas parecia delicioso, já que ela dava garfadas em cada coisa diferente em seu prato e seus olhos demonstravam prazer em tudo que provava.

— Está perdendo um banquete e tanto. – me avisou apontando para meu prato que permanecia vazio. Não conseguia pegar nada pra comer.

— Oh muito obrigada por virem. – uma senhora de cabelos castanhos parou ao nosso lado. Astoria deixou seu prato na mesa. Abraçou a mulher num abraço forte e a vi colocar sua boca em seu ouvido sussurrando palavras de conforto.

— É uma perda tão grande em tantos níveis. Eu sinto muito. – dizia como se conhecesse o defunto.

— Conheciam meu marido? Eram o que dele? – a mulher perguntou saindo do abraço com os olhos marejados.

— Alunos. – ela me puxou para ficar ao seu lado e colocou sua mão pelo meu braço. – Amávamos as aulas de literatura dele.

— Ah sim... – a mulher tirou um lenço e começou a passar pelos seus olhos.

— Na verdade eu e meu namorado começávamos a nos beijar e ele nos dizia para sair da aula e saciar nossos hormônios antes de voltarmos e prestar a atenção em Shakespeare.

Astoria começou a rir. E eu comecei a suar com medo dela nos descobrir. A abracei pelo ombro e sorri para a dona da casa. Como que para confirmar o que minha suposta namorada da aula de literatura dizia.

— Isso realmente é algo que Frank diria. – ela pareceu convencida. – Com licença, preciso cumprimentar outras pessoas.

E ela saiu de perto de nós. Astoria retirou seus braços do meu e se desfez do meu abraço. Pegou seu prato de comida e voltou a se deliciar.

— Espera aí. Você me trouxe para um velório...

— Cerimônia fúnebre...

— Para que eu consiga de alguma forma retirar os fantasmas do meu passado. Como se fosse uma terapia?

— Eu não sei. Eu não te conheço direito. Vim pela comida. – ela apontou a mesa. — A parte mais difícil já passou. – ela afirmou. — Sente-se e curta nosso primeiro encontro.

Ela então sentou-se na mesa e eu a segui. Finalmente peguei algumas comidas que ao meu ver não pareceram tão feias. Comecei a experimentar as comidas trouxas. Eram realmente deliciosas. Bolos de carne com cebola, purês com salsichas, tortas de diferentes recheios salgados e doces. Quando vi já havia experimentado todas as comidas e Astoria me observava, como sempre, sorrindo.

— Um maravilhoso cardápio para um primeiro encontro não é?

Não respondi, fiquei reparando nela, como estava fazendo o “encontro” inteiro. Ela era tão diferente. Não se importava com as pessoas e nem com o ambiente em que estávamos ela só aproveitava tudo e tentava absorver as melhores coisas de lá.

— Você é sempre assim? – perguntei.

— Assim como? – Ela estava pegando um suco num copo não me encarava.

— Consegue arrancar as melhores coisas das piores situações.

Ela parou de fazer o que estava fazendo e me olhou. Aqueles lindos olhos verdes me analisando. Sempre tentando entender minhas reações.

— Chama-se catarse. – disse a resposta como se eu entendesse tudo. – A libertação com certas atitudes de traumas que estavam reprimidos dentro de você.

— Catarse? Vir aqui ter um primeiro encontro é uma catarse.

— Não para mim. Já faço isso há algum tempo. Libertar-me das amarras do passado. – ela aproxima seu rosto do meu. Tão próximo, consigo ver uma constelação de pintas em sua bochecha. – Esse primeiro encontro é uma catarse só para você.

E terminando de dizer isso ela sela nossos lábios brevemente. Eu, entorpecido pelo ato dela, não reajo de imediato. Ela logo se afasta. Vejo-a se levantando da onde estava sentada.

— Vou ao banheiro. Já volto.

Quase grito para que ela não me deixe sozinho num velório com trouxas. Mas não faço nada.

 Começo a observar as pessoas à volta. A cozinha está cheia de mulheres pegando comida e levando pra sala. Outras organizando a louça. Tudo aquilo estava me deixando desconfortável. O lugar. O cheiro. Os trouxas. A situação. Se Astoria queria me conquistar extravasando meus problemas num velório estava fazendo isso errado. Levantei-me e comecei a caminhar para fora da casa. Foi quando me esbarrei com a mulher do falecido novamente.

— Ah olá. Você era aluno de Frank não é? – ela parecia cansada. Notei olheiras e suas pálpebras vermelhas.

— É... – tentei pensar em uma resposta convincente. – Ele era uma ótima pessoa.

— Não acha que isso é realmente falso? – me perguntou, parecia querer desabafar, acho que ela não esperava que eu respondesse a pergunta. – Todos a minha volta dizendo o quanto ele era maravilhoso, o quanto era uma pessoa ímpar. Ele tinha defeitos, todos aqui sabem. Todos sabemos que vamos superar. Que um dia a dor vai desaparecer como veio, de repente. Só precisamos saber para onde caminhar. Ninguém é perfeito. E sabe o que é pior? Todos estão me trazendo pepinos em conserva. – ela levantou um pote de vidro na altura dos meus olhos. – Ele ama pepinos em conserva. Eu odeio. Ele come antes de dormir, assistindo a um filme, lendo, como se fosse pipoca, ele ama. Eu odeio.

Olho para ela não entendendo metade do que ela disse. Ela logo volta a falar.

— Ele amava. Agora é passado. Ele costumava ser “é”. Agora ele é “era”.— terminou voltando a andar para longe de mim. As palavras dela voando nos ares na frente de meus olhos, dentro de meu pensamento... Passado.

— Ninguém deve carregar a culpa de um erro do passado. – a voz de Astoria soou atrás de mim.

Senti como se ela lesse meus pensamentos, como se me entendesse mais do que todas as outras pessoas que convivi minha vida inteira em apenas algumas horas.

— Vamos embora. – ela segurou meus braços e começamos a caminhar para longe daquela casa. Longe daquelas pessoas tristes. Longe do clima mórbido e dos sentimentos aflorados ao máximo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!