Coco escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 4
Sentimentos alemães e cadeiras anti-gravidade.


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora ç.ç



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— Hm… Olá?

O que é isso? Seria uma miragem? Sua mente lhe pregava peças? Kevin se levantou com todas essas perguntas rondando sua cabeça. Estreitou os olhos, para ter certeza. A moça estranhou e repetiu o cumprimento.

— Olá? – Apontou, relutante, para a bandeja que Kevin segurava. – Isso é para vender?

A surpresa de Kevin por encontrar uma possível cliente foi substituída pela enorme força de vontade que precisava para não responder com sarcasmo. Ora! Não, não era para vender, ele só gostava de exibir para os desconhecidos os doces que ele tinha e ninguém podia comprar! Respirou fundo, lembrando que esse comportamento causara sua demissão em dois estabelecimentos, e sorriu, preparando-se psicologicamente para responder perguntas tolas:

— Sim.

Uau! Kevin conseguiu! Com essa primeira resposta, ele sentiu crescer uma estranha confiança. Só precisava agir com calma, responder o mínimo necessário para os clientes, e ninguém se ofenderia ou reclamaria com sua nova chefe. Não queria que Coco pensasse que ele estava sabotando o próprio desempenho por birra, para fugir de ter que compensá-la pelo prejuízo que havia causado. Vai que, achando que ele não queria cooperar, ela decidia aumentar o valor devido? Kevin preferia não arriscar! Embora aquela garota estranha parecesse mais inofensiva que um gatinho recém-nascido, bruxas tinham uma péssima fama, e, quando avançou irritada em sua direção, Coco pareceu bastante assustadora.

A cliente estendeu algumas moedas amigavelmente.

— Você tem trufas com recheio de maracujá?

Ok, Kevin. Duas palavras!

— Deixe-me ver. – Com isso, já tinha dito duas frases. Kevin estava orgulhoso de si mesmo! Remexeu as trufas que Coco havia separado para ele, mas logo estreitou os olhos, notando algo estranho naqueles doces.

Que raios de sabores eram aqueles?

Trevas interiores”? “Solidão”? “Weltschmerz”?? Kevin até mesmo encontrou uma trufa com o estranhamente específico sabor “frustração de ter de interromper sua rotina por causa de uma visita inesperada”. Cá entre nós, esse sabor nunca fez muito sucesso nem mesmo entre as amigas bruxas da Coco. Qualquer um que já tenha experimentado essa situação sabe que não é um sentimento para se repetir.

— Ahn… Parece que não tem de maracujá…

— E de morango?

Se tivesse alguma trufa de morango, ele faria questão de jogá-la no lixo. Kevin não sabia que alguém realmente gostava de morango, sempre achou que as pessoas fingiam apenas para posar com sobremesas chiques.

— Não… – A mulher deu um olhar decepcionado, e Kevin resolveu tentar a sorte. – Mas tem outros sabores, olhe… Que tal uma trufa sabor… ahn… “saudade de onde nunca se esteve”? Espere! Tem também… “apatia”? – A interrogação era mais para si mesmo do que para a cliente, que agora se afastava devagarinho esperando que Kevin não notasse sua saída. Ele ainda lia os rótulos das trufas, a testa levemente franzida e os lábios entreabertos. – Tá de brincadeira, né?! – bradou, pensando em Coco, mas, temendo ser mal-entendido pela cliente, Kevin ergueu o rosto para se explicar, só então percebendo que já estava sozinho.

Como ele venderia esses doces? Aliás, eram mesmo doces? Lembravam-lhe emoções-engarrafadas, tirando o fato de não ter garrafa nenhuma, e a experiência de Kevin com essas poções de sentimentos não tinham sido boas. Kevin passara sua festa de formatura chorando atrás da máquina de refrigerante porque a fada que era bartender exagerara na melancolia da sua bebida; ele não gostava de metade da turma, e a outra metade ele não se importou em conhecer, mas ainda assim, estava em prantos porque nunca mais veria aquelas pessoas, quando isso na verdade era um sonho se realizando.

Kevin não sabia, mas aquela foi a última festa em que a fada trabalhou como bartender. Parece que ela gostava de pregar peças e sempre trocava as bebidas dos clientes, se divertindo com as confusões que surgiam. A empresa recebeu inúmeras reclamações e ela teve que sair.

Mas as emoções dos sabores lhe pareciam desconhecidas, e a curiosidade falou mais alto do que a cautela. Não deveria, mas pegou uma trufa aleatoriamente (e continuou pegando outras trufas “aleatoriamente” até sair um sabor interessante, descartando “Solidão” e “L’appel du Vide”) e a encarou desconfiado. Weltschmerz. Alemão? Sentimentos alemães eram sempre intensos. Kevin, que não levava jeito para hesitação, resolveu arriscar.

Dois minutos depois, Kevin entrava novamente na doceria, com os passos determinados em busca de Coco. A bruxa estava arrumando uma prateleira, de pé em uma cadeira equilibrada sobre outra cadeira, ainda sobre uma terceira cadeira.

— O que passa na sua cabeça?! – Kevin perguntou alto. Coco se assustou, desequilibrando-se, e se segurou firme na prateleira para não cair, quase derrubando um dos vidros de biscoitos. Deu um suspiro curto, aliviada, e olhou de lado para o novo funcionário.

— Você não vai ficar feliz enquanto minha doceria ainda estiver de pé, não é? – Recompondo-se, ela continuou arrumando os potes de vidro e porcelanas, ignorando a posição completamente antinatural de seu andaime de mobília improvisado. – O que você quis dizer com isso?

— Como você quer vender esses doces? Doces de sentimentos, qual é! A maioria daqueles sentimentos não são desejáveis, sabia? Aliás, nem são doces, são poções!

— Essas são minhas receitas.

— Sim, mas eu preciso vendê-las para lhe pagar, e você não me deu nada que dê para ser vendido! Ninguém vai comprar isso!

— Por que ser tão rude? Os doces são bons, pode experimentar se quiser. Minhas amigas adoram.

— Os doces são ótimos! – admitiu à contragosto. – Mas são estranhos e causam sensações estranhas, e as pessoas não vão querer comê-los. Suas amigas já conhecem você, mas já é raro que outros confiem o bastante para vir comprar comida aqui, e você ainda assusta eles com esses sabores?

— Então você comeu algum? – Ela perguntou, com o sorriso ansioso de uma criança que mostra um desenho para os pais, ignorando a crítica irritada de Kevin. – Qual? E o que achou? E como está se sentindo?

— É o melhor chocolate que eu já comi na minha vida – Kevin murmurou, com uma expressão emburrada. – Mas agora eu estou tão decepcionado! Não é bem decepcionado, mas não sei dizer direito o que é. Meio cansado? Eu não sei que palavra era aquela no rótulo!

— Você começou logo com um sentimento que não conhecia? Por acaso era weltschmerz? – Coco chutou, após pensar por alguns segundos. Sentou-se na cadeira do topo como se ela estivesse firme no chão e encarou Kevin com curiosidade. – Esse é um dos melhores…

— Você pode por favor descer daí para a gente conversar direito?

A coluna balançou perigosamente enquanto Coco descia, mas, como das outras vezes, as cadeiras olharam para as leis da física e responderam “não, obrigada!”. Chegando ao chão, ela cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha sobre o olhar incisivo.

— O que você está sugerindo, exatamente, Kevin?

— Você não tem doces “normais”? Alguma coisa que as pessoas olhem sem desconfiança?

— Está dizendo que eu não devia vender as minhas receitas? – Coco soltou os braços, com uma aparência tão desolada que Kevin se surpreendeu com o receio de tê-la magoado. Geralmente, não era uma de suas preocupações, já que nem sempre percebia a rispidez de suas opiniões. Pamela era quem costumava alertá-lo para ser mais atencioso, e Kevin quase podia sentir a desaprovação dela, instigando-o a consertar a situação.

— Não, veja bem… Não quis dizer isso. É a sua loja, e se os clientes estão gostando dos seus produtos, então não tenho que me intrometer nisso. Mas acho que você atrairia mais pessoas se oferecesse doces comuns também. Depois que confiarem na sua loja, com certeza vão experimentar suas receitas mágicas. E vão adorar.

O argumento foi o ápice da eloquência de Kevin, que falou com a delicadeza de quem explica algo a uma criança. Coco ainda tinha aquele olhar desconfiado, mas sorriu quando ele repetiu o elogio. Ela se orgulhava muito de suas receitas.

— Você parece entender uma coisa ou outra sobre vendas.

— É porque eu já fui demitido de muitos comércios.

— Coisa estranha de se vangloriar… Mas por que não tentar do seu jeito? – Coco deu de ombros. – Afinal, qualquer pessoa que aparecer aqui vai ser um cliente a mais do que eu tenho atualmente.

Assim, no breve intervalo de 2 h, Kevin foi de desempregado à atendente de lanchonete, e de atendente de lanchonete à “orientador de vendas” de uma bruxa. Talvez pagar aquela dívida não fosse tão desagradável quanto parecia.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ♥