Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 10
Nove




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Sábado | 16 de Julho

Sentada no banco duro do ônibus, Helena observava o sol frio de julho e as árvores floridas que destacavam-se entre os prédios enquanto seus dedos brincavam, inquietos, com a manga comprida da blusa listrada.

Ela olhou novamente a tela do celular. Faltavam quinze minutos para as duas, e o trajeto restante do ônibus não demoraria mais que sete. Em resumo, ela não se atrasaria; mesmo assim, não parava de pensar no tempo que gastara para escolher a roupa que estava usando.

Naquele sábado, o almoço tinha sido por conta de Daniel: um macarrão especial que ele costumava fazer quando Lena era mais nova e que, para ela, tinha o gosto da infância. Enquanto lavava os pratos, a garota anunciou que sairia à tarde e, de costas para o pai, não viu o pequeno sorriso satisfeito que ele abriu; o homem adorava ter razão.

Ela, enfim, havia entrado em seu quarto, após o banho e ainda enrolada na toalha, por volta de 12:40. Abriu as portas de correr do guarda-roupa e… soltou um suspiro de frustração. Pela primeira vez em muito tempo, não conseguiu escolher de primeira o que iria vestir.

Bom, suas cores preferidas eram mesmo cinza e preto, então ela não estava reclamando, exatamente, do predomínio desses tons em seus cabides. No entanto, a bandana vermelha, os piercings, os penteados e as camisas xadrez de Marina lhe vinham à cabeça, e ela se sentia meio ridícula com a possibilidade de aparecer diante dela com os mesmos moletons que usava todos os dias na escola.

Pelo menos estava frio. Assim, independente do que escolhesse, haveria pelo menos as mangas longas, e poderia esconder as marcas irritantes dos hematomas do muay thai.

Quando Helena finalmente entrou no ônibus, o relógio em seu celular marcava quase uma e meia da tarde.

─ ─ ─

Naquele dia, o céu estava claro e frio, e Lena ainda sentia o cheiro familiar do perfume de Marina mesmo depois que elas se cumprimentaram, com um breve abraço, e começaram a caminhar pela praça.

Era, ao mesmo tempo, curioso e agradável vê-la sem uniforme; ela usava jeans escuros de cintura alta, uma camiseta branca com um nozinho na cintura e um suéter aberto, de lã, que parecia confortável, além de uma mochila pequena, de couro, brincos de argola e os cabelos trançados na raiz e soltos no comprimento. E, antes mesmo que Helena começasse a ter consciência demais de sua própria escolha de roupas, Marina sorriu e elogiou, espontânea e efusivamente, sua blusa listrada. E aquilo pareceu o suficiente.

─ E como foi o primeiro dia de férias? ─ a garota abriu seu típico sorriso pequeno e gentil nos lábios ao fazer a pergunta, mas ele minguou no instante seguinte. ─ Espero que melhor que o meu…

Lena comentou brevemente sobre a pizza e o macarrão do pai, mas estava mais preocupada com o incômodo que transparecera na fala de Marina.

─ Seu dia começou ruim? ─ ela indagou, e, ao dizer aquelas palavras, sentiu o familiar aperto no estômago, se perguntando se Marina, na verdade, estava querendo dizer que se arrependia da ideia do passeio.

Mari, porém, afastou a ideia com um torcer de lábios.

─ Na verdade eu fiz um pouco de drama… mas é porque minha mãe tava um saco hoje ─ ela bufou, e Helena ergueu as sobrancelhas e sorriu de leve; gostava de ouvir Marina falar, independente da temática, e de conhecer, aos poucos, os pequenos detalhes de sua vida.

─ Quer desabafar?

Mari olhou para Lena e abriu um sorriso pequeno com a proposta.

─ Não é nada de mais, na verdade… mas minha mãe é meio complicada ─ e nesse ponto ela revirou os olhos. ─ Ela é minha mãe, eu amo ela e tal. Mas quando eu tô de boa em casa e ela tá de folga dos plantões… começa a implicar. Só hoje ela já reclamou do meu quarto, da roupa que eu escolhi, do meu cabelo, falou que eu tava precisando arrumar meu armário… 

Helena fez uma careta.

─ Meu pai também não pode me ver de boa que começa a lista de todos os cômodos sujos, as bagunças do meu quarto, do banheiro que eu disse que ia lavar… 

Marina deu uma risada pelo nariz e concordou com um murmúrio. Mesmo que estivessem falando sobre mães, e para Lena aquele assunto fosse como uma pequena farpa que, às vezes, voltava a incomodar, com Mari esse tipo de conversa era confortável: ela não se sentia como se fosse incompleta ou, de alguma forma, deslocada da situação.

E então Marina subitamente parou, interrompendo a linha de pensamento da amiga. 

─ Ai, Lena, eu nem comentei com você… ─ ela começou, enquanto tirava a mochila pequena das costas. ─ Eu trouxe minha câmera, gosto muito da praça e do museu nessa época, aí queria tirar umas fotos daqui. Você se importa?

Desde o momento em que elas haviam parado no meio da praça, diante de nada exatamente, Helena estava em silêncio, um pouco curiosa, observando enquanto Marina mexia na mochila e falava. Até que uma câmera semiprofissional surgiu, e a surpresa de Lena se manifestou em um sorriso.

Marina era incrível.

─ ─ ─

Nos corredores do museu, as vozes das duas ficavam levemente ampliadas, com aquele eco característico de locais grandes e com pé-direito alto. Para ser aberto ao público, o prédio antigo havia sido extensamente reformado ─ ainda mantendo, do lado de fora, a fachada clássica ─, e suas salas eram pequenas galerias, com temáticas variadas: pintura, fotografia, instalações, áreas interativas, tecnologia… em resumo, era possível “gastar”, com tranquilidade, uma tarde toda perambulando por cada ambiente. E parecia ser exatamente esse o plano de Marina, com a total e completa conivência de Helena.

─ Essa é sempre uma das minhas salas preferidas ─ a guia turística da vez abriu um sorriso, quando elas estavam no segundo andar, e, também sorrindo, Lena se deixou ser guiada.

Elas entraram em um ambiente semiescurecido, com um pedestal pequeno num dos cantos, paredes completamente brancas e, no teto, um aparelho que projetava em todas elas imagens e formas meio abstratas flutuando. Apesar do grande movimento do museu, aquela sala estava tranquila.

─ Olha isso ─ Marina sorriu e se aproximou da mesinha alta, e só então Helena percebeu que era um tipo de suporte para um tablet.

Subitamente, algumas das imagens projetadas desapareceram, e ela viu seu nome surgir, dançando numa das paredes, numa letra cursiva delicada, com um desenho de sorriso no final.

Mari ria, empolgada. Lena riu junto com ela.

Longos minutos se esticaram ali. Dependendo do lugar em que as garotas ficassem, as imagens se projetavam sobre elas, deixando a pele, o cabelo e as roupas em tons absurdos e divertidos. Elas se substituíam diante do tablet, desenhando, enchendo a sala de risadas, e Marina, tirava fotos em tons de neon cuja qualidade ela se preocuparia em avaliar depois.

Foi só quando algumas crianças entraram na sala, curiosas, e começaram a brincar com o tablet, que as duas lembraram que havia outras salas para visitar.

─ Sua vez de escolher alguma ─ Marina propôs, de volta ao corredor de paredes claras. 

Helena ergueu as sobrancelhas.

─ Você não disse que eu não conhecia o museu?

Marina, porém, encolheu os ombros e abriu o encarte que mostrava um mapa completo do museu, cada sala de uma cor diferente.

─ Pode ser na sorte também.

Helena abriu um sorriso de lado e observou o mapa, mas, logo em seguida, olhou para o lado e tomou sua decisão: a poucos passos de onde elas estavam, havia toda uma sala dedicada a poesia. E, mesmo que literatura não fosse sua matéria preferida do colégio, seu pai, ao longo de sua infância e adolescência, havia lhe atiçado o suficiente o interesse sobre isso para que, àquela altura de sua vida, ela pudesse discorrer com tranquilidade sobre o assunto.

E algo lhe dizia que Marina gostaria da ideia.

─ ─ ─

Elas estavam sentadas frente a frente, numa mesinha quadrada da lanchonete. O sol começava a se pôr, e a decoração do local era aconchegante, o que combinava com tempo um pouco frio.

Marina estava revendo suas fotos, decidindo quais apagaria, e Helena, brincando com o porta-guardanapos sobre a mesa, apenas a admirava, o mais discretamente possível. Assim, quando seu celular vibrou subitamente, e ela leu a mensagem de Gabriela, engasgou com a própria saliva e teve que disfarçar o susto.

Como tá indo o date?

Lena xingou Gabi mentalmente e, nesse mesmo instante, Marina ergueu os olhos da câmera.

─ Tá tudo bem?

Ela torceu para não corar.

─ Tá sim. É minha amiga do muay thai. Parece que… ela brigou com a mãe.

O leve sorriso de Marina se transformou em uma pequena careta.

─ Ah, isso é uma merda. Espero que fique tudo bem.

Não é um date, idiota

Helena ergueu os olhos logo que terminou de enviar a mensagem e abiu um sorriso pequeno.

─ Vai ficar… ela às vezes exagera também.

Marina havia voltado a analisar suas fotos, quando, de súbito, abriu um sorriso largo e ergueu os olhos negros para Lena, com um olhar animado e meio travesso.

─ Eu sei que você falou que não queria sair nas fotos, mas… eu tirei essa sem querer e gostei muito. Se quiser pode apagar, mas… 

Helena ergueu as sobrancelhas ─ estava com um certo receio e muita curiosidade ─ e se inclinou para frente, para ver a câmera que Marina virava na sua direção. E então, na telinha retangular, viu o enquadramento muito bem-feito de uma das quinas da sala de projeções do museu, que na foto parecia bem mais escura. Vários rabiscos e desenhos aleatórios se projetavam nesse fundo e, no centro, um pouco recuada, na figura alongada, de jeans escuros e blusa listrada, que olhava para a câmera meio de lado com um sorriso que, de longe, parecia muito suave no rosto. Em toda a foto, as mistura de cores parecia irreal, meio onírica.

Lena se surpreendeu ao perceber que não detestava tanto assim sua figura naquela imagem.

─ E aí? ─ Marina indagou, e seus olhos brilhavam de expectativa.

Ela abriu um sorriso de lado.

─ Eu gostei. Não precisa apagar, se não quiser…

Mari abriu um sorriso largo quando voltou a segurar a câmera.

A lanchonete estava cheia, provavelmente devido ao período de férias e os preços habitualmente baixos, e os pedidos estavam demorando a sair. Assim, quando os sanduíches finalmente chegaram à mesa de Helena e Marina, elas estavam concentradas na telinha da câmera, debatendo sobre as fotografias.

Lena pegou uma batata frita.

─ Você deveria postar essas fotos. É sério. Elas são incríveis.

Marina corou muito levemente e olhou para baixo, brincando com um dos saquinhos de ketchup.

─ Eu meio que… posto. Tenho um insta pra isso. Mas eu tenho vergonha de divulgar, sabe… fico vendo outras páginas do tipo e as fotos são sempre tão boas. Não acho que tô no mesmo nível.

Helena deu uma risada pequena e comeu outra batata.

─ Cara, sei lá… pra mim, arte não é uma competição. E se fosse, não seria justo. Seria como se me colocassem pra lutar com, sei lá, um mestre com 20 anos de experiência, que a vida toda teve academia, estrutura, tudo mais. Não sei se faz sentido, mas… ─ e, a essa altura, Lena franziu a testa levemente ─ eu não acho que você deveria se comparar com as outras pessoas. Cada uma tem a sua caminhada, sabe? E a sua arte é linda. Você ainda tá no ensino médio e tirou umas fotos aí que muito adulto não tira… Tá, foi mal, falei demais… mas eu não menti.

Marina tinha o rosto apoiado em uma das mãos enquanto ouvia o discurso de Helena e soltou uma risada pelo nariz quando ele terminou.

─ Obrigada, Lena. Você é maravilhosa.

Helena comeu mais uma batata e, sem poder fazer nada, sentiu seu rosto esquentar.


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