Oblivion escrita por Lucca


Capítulo 20
Quem é Jane Doe


Notas iniciais do capítulo

Penúltimo capítulo.
Segue o ritmo de finalização.
Um capítulo centrado na alma feminina, no que é ser mulher. Um convite para seguirmos nossas jornadas retornando a nós mesmas.
Engraçado que esse capítulo já estava no arco inicial dessa história, mas casou tão bem com tantos relatos que ouvi sobre o final de Blindspot.
Sem mais enrolação. Fiquem com a história.
Boa leitura



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O tempo passava rápido, mas as vidas deles tinha um ritmo muito diferente. O novo trabalho secreto era muito menos exaustivo, deixando tempo suficiente para curtirem a família e ainda se dedicarem a outras atividades. Eles se adaptaram muito mais rápido do que imaginavam a paz. Experimentavam coisas novas e retomavam antigos projetos engavetados num passado que já parecia tão distante.

Jane e Kurt resolveram não contar compartilhar a notícia sobre os gêmeos com a família e amigos. Queriam fazer uma surpresa para o momento do nascimento. Disseram apenas que era um outro menino e não dois.

Abusando do histórico do passado e da compreensão de todos, o casal ainda pediu para não terem visitas no hospital. Pretendiam reunir todos em sua casa para registrar de forma inesquecível as reações quando se deparassem com os gêmeos.

O parto ocorreu a termo, logo nos primeiros dias da 37ª semana de gestação. Os gêmeos eram perfeitos. Ao mesmo tempo que lembravam o irmãozinho Ben, tinham características singulares e semelhanças com os irmãos Krugers.

A escolha dos nomes foi bem fácil para o casal. Concordaram que queriam nomes italianos para celebrar os bons momentos que tiveram em Veneza, cidade onde viveram seus primeiros momentos como um casal normal e palco do famoso pedido de casamento. Mais tarde foi também nesse lugar que conseguiram solucionar o problema do prêmio colocado sobre a cabeça de Jane, uma aventura nada romântica e carregada de tensão, mas que marcou uma nova fase do casamento dos dois.

Bastaram acompanhar as primeiras horas de vida dos bebês para terem certeza de que a semelhança física não era capaz de disfarçar suas diferenças de comportamento. Lucca era muito mais dependente emocionalmente. Chorava sentido se tivesse que aguardar alguns minutos no berço. Exigia mais o contato com Jane e dormia bastante. Lorenzo era mais calmo, interessado no novo mundo ao seu redor e fixava atenção em tudo com que tinha contato: a chupeta, a manga do macacão e as falas de Kurt, Avery, Bethany, Jane. O bebezinho simplesmente parecia prestar atenção a tudo que lhe fosse ofertado de novo.

Trinta horas após o parto, mamãe e bebês puderam ir pra casa. A primeira noite foi tranquila, mas todos continuaram bem cansados, afinal eram gêmeos. Além disso, Ben tinha apenas 1 ano e 7 meses. O garotinho sentiu bastante ter que dividir a mãe com os irmãos e acabou dormindo na cama do casal. Bethany que já tinha completado 5 anos estava mais tranquila, querendo ajudar em tudo.

No dia seguinte, receberam os amigos. Todos vieram carregados de balões e presentes. A sala da casa que era bastante ampla, pareceu pequena para acolher todos. Avery os recebeu e salientou para aguardarem ali mesmo. Claro que suspeitaram que havia algo errado. Eram ex-agentes do FBI e foi uma luta imensa para eles disfarçarem durante toda a gestação de Jane, engolindo cada vez que sentiam vontade de comentar que tinha alguma coisa errada ali: os cuidados excessivos de Kurt, Jane concordando e cedendo em descansar, as visitas frequentes de Avery, o estoque de fraldas. Mas ninguém queria ser o primeiro a levantar suspeitas sobre o casal de amigos. Não nessa família que aprendeu a ferro e fogo a confiar uns nos outros.

Enquanto Avery foi buscar alguns petiscos na cozinha, Rich não se conteve:

— Ok, eu tô nervoso, eu confesso. Tem alguma coisa errada aqui.

— Shshshsh Rich! O melhor é fingirmos normalidade. E, seja lá o que for, normalidade, por favor! – Patterson disse revelando sua tensão.

— Você também, Patterson? Pensei que as suspeitas eram só minhas, mas se até você concorda... – Christopher desabafou.

— Gente, só vamos torcer para o bebê estar bem. – Reade disse evitando falar sobre possíveis deficiências que eram sua maior preocupação.

— Meu Deus, você acha que o bebê pode ter alguma deficiência ou algo do tipo? – Boston disse num sussurrou pasmado e levou as mãos a boca.

— Não é nada disso, pessoal! O bebê está bem. Todos estão bem. Se houvesse algum problema, Jane teria me contado. – foi a vez de Roman tentar afirmar algo mais para si mesmo que para o grupo.

— Claro, Jane nos contaria. Como sempre contou para que pudéssemos ajudá-la. – Tasha foi sarcástica porque era seu jeito de reagir imaginando a amiga carregando sozinha o peso da preocupação com o bebê sendo que poderiam tê-la ajudado de alguma forma que nem ela mesma sabia como seria.

Ainda estavam trocando teorias e desabafos quando Kurt veio descendo a escada todo sorridente com Lorenzo no colo. Os amigos se voltaram para ele e vestiram o melhor sorriso que tinham.

— Que bom que vieram! Vocês não têm noção do quanto é importante para mim e para Jane que estejam aqui. Esse aqui é o novo membro da família: Lorenzo Kruger Weller.

Todos suspiraram e rodearam Kurt babando no bebezinho.

— Own, ele é lindo. – tia Patterson disse.

— Tem um jeitinho do Ben, mas também lembra um pouco o Roman. – Tasha colocou.

— Sério? Será que se parece mesmo comigo?

Nesse instante ouviram a tosse de Jane ao pé da escada tentando chamar a atenção deles:

— Será que podemos ter um pouco da atenção de vocês? – ela brincou. – Lorenzo não chegou sozinho. Esse é Lucca, nosso caçula.

Impossível descrever as caras e bocas de surpresa que todos fizeram. Foi a surpresa mais gostosa dos últimos tempos.

— Gêmeos? Aí, cara, parabéns! – Reade disse dando tapinhas nas costas de Kurt.

— Eu sabia que tinha alguma coisa er.... diferente na sua gravidez. – Patterson fez questão de mostrar que nada lhe passava despercebida.

— Nós todos estávamos aflitos. Não víamos a hora desse bebê nascer pra termos certeza de que tudo estava bem. Ai que alívio! – Tasha foi sincera.

— Nossa, vocês realmente gostam de fazer filhos! Eu já achava que ter mais um era demais e tiveram logo dois! – Rich precisou expressar sua inconveniência bem vinda como sempre.

A família curtiu os bebês que passaram de colo em colo. Abraçaram e parabenizaram os pais babões.

Pouco depois, Kurt convidou os homens a se reunirem no deck do quintal para monitorarem as crianças que estavam brincando no gramado. Avery foi para o quarto estudar, Tasha e Patterson decidiram fazer companhia a Jaimie que subiria ao quarto dos bebês.

— Kurt. – Jane chamou o marido para mais perto demonstrando querer confidenciar algo. – Por favor, dê conta de Ben e Bee lá fora. Avery precisa mesmo estudar.

— Estou levando os dois. Fique sossegada.

Tasha que não estava distante e ouviu o pedido, resolveu intervir:

— Temos uma criança e seis homens. Provem que são capazes de mantê-las sob controle na nossa ausência. Afinal, vocês conseguiam trazer abaixo traficantes em número bem maior durante um resgate com reféns. – e esboçou um sorriso irônico.

— Falou a mulher que escolheu ficar com o grupo mais privilegiados. Vocês estão em três e só vão cuidar de dois recém-nascidos. Eles nem podem correr de vocês ou morder! – Rich revidou.

No mesmo instante, ela estendeu os braços oferecendo Lucca que já começou a se contorcer e chorar:

— Quer trocar, Rich? Eu não tenho medo do quintal e consigo dar conta dos mais velhos enquanto tomo uma cerveja.

O amigo bufou pelo nariz se dando por vencido:

— Ele é tão pequeno que nem sei pegá-lo. Fico com o quintal e a cerveja.

Assim se separaram.

Já no quarto dos bebês, Patt e Tasha se sentaram no sofá cama próximo à janela. Cada uma tinha um dos bebês em seus braços. Os bercinhos ficavam um ao lado do outro na parede perpendicular. Do lado oposto estava a poltrona de amamentação que foi ocupada por Jane. Ela mal sentou e já se recostou demonstrando estar cansada.

— Você parece exausta. Kurt não está dando conta? Quer conversar um pouco conosco sobre mais essa experiência fora do comum na sua vida? – Patterson tentou oferecer algum espaço pra Jane desabafar.

— Todos nós torcendo para chegar o momento em que você finalmente teria paz e ... Deus, Jane, são cinco filhos agora! – Zapata demonstrou seu espanto.

— É... tudo agora é completamente diferente de antes. A adrenalina sobe por outros motivos. Acho que meus hormônios ainda estão em fúria.  Tem momentos que parece que vou explodir de felicidade e outros em que me pego chorando como criança. Kurt tem sido ótimo. Durante o parto, então, ele foi espetacular. Assim que Lorenzo nasceu, precisei incentivá-lo a acompanhar os cuidados com o bebê. Ele estava louco pra ir babar no filho, mas não queria sair do meu lado. Mas sempre que Avery está aqui conosco, ele simplesmente deixa uma das crianças com ela.

— Sei bem como é. Às vezes, tudo que quero é paz para finalizar uma programação simples, mas Chris e Roman entram a cada dois minutos me consultando sobre coisas com a Sophia que poderiam resolver sozinhos.

— Miguel foi me chamar no banheiro pra abrir o pacote de bolachas porque Reade e Roman estavam tão entretidos discutindo sobre as próximas eleições que não lhe deram atenção. Cinco centavos por cada vez que sou solicitada como “mãe” me deixariam milionária.

— Jane então, seria a dona do mundo! – Patterson arrematou.

— Mas tem um lado tão mágico e perfeito. Sei que tem um lado meu que só quer uma família grande pra compensar o que perdi. Mesmo assim, eu olho pra eles e sinto que valeu cada minuto. Ter bebês é tentador demais!

As duas amigas se entreolharam inconformadas e caíram no riso:

— Não, não é tão tentador não! – Patterson foi a primeira a falar. – Mas Roman é como você, Jane. Se dependesse dele, eu já estaria grávida.

— Eu que o diga. Ou vocês acham que vou me casar em seis meses para realizar um sonho romântico? O casamento foi a melhor estratégia pra tirar a atenção de Reade de termos um bebê agora. Miguel ainda é meu bebê.

— Exato! Penso assim também. Quero curtir mais a Sophia.

— Espere! Roman e Jane vieram da África do Sul. Reade é negro e tem ascendência na África. Será que, de alguma forma, eles tem algum vínculo genético que explique essa paixão por reprodução humana? – Tasha disse e já caiu na risada enquanto Jane revirava os olhos.

— Ah, meninas. Eu sei que a maternidade deve ser uma escolha nossa, mas confesso que sonhava com mais sobrinhos. Amo Miguel e Sophia e acho maravilhoso que tenham construído uma família tão linda mesmo fora do convencional. Ainda assim, seria tão perfeito um filhinho seu e de Reade, Tash. E um seu e de Roman, Patterson. Num futuro, quem sabe...

Tasha se levantou com Lucca que estava reivindicando o colo da mãe e foi até Jane. Colocou o bebê em seus braços e abaixou-se na sua frente repousando a mão em seu joelho:

— Não estou afirmando que não vai acontecer. Num futuro, quem sabe. Só estou dizendo que não é tentador o suficiente agora, mesmo com bebês tão perfeitos e inspiradores como os seus. Já que tem bebês de sobra na casa dos Wellers, virei sempre saciar minha saudade de quando Miguel era bem pequenininho.

— Eu também não vejo ser mãe como uma porta definitivamente fechada para mim. Fecho com a Tasha: no presente, quero apenas curtir os seus bebês, Jane. Mas eu entendo sua urgência em ter filhos. Você e Kurt passaram por muita coisa. Suas vidas estiveram por um fio muitas vezes nos últimos anos. É normal depois de tudo quererem ver a vida florescendo nessa família com toda a intensidade que é possível.

— Sim. Eu acho que é isso mesmo. O futuro nunca foi uma possibilidade pra mim antes. Minha vida não nunca importava. De certa forma, ter uma casa cheia de filhos me ajuda a ser mais normal e planejar um futuro para nós além de sentir que sou necessária aqui. – Jane desabafou.

—  Eu já te disse uma vez e vou repetir: você faz falta não só para Weller e para o bando de filhos que resolveram ter, sua vida é importante para todos nós. Aliás, por favor, nos garanta que vai pedir ajuda sempre que precisar. – Zapata finalizou. – O fato de não querermos ter outros filhos agora não quer dizer que queremos distância dos seus bebês. Acho que estou apaixonada.

Quatro meses depois

                A viagem de carro não era tão longa assim, mas ter quatro crianças e Avery dentro de um veículo era intenso mesmo que por cerca de duas horas, por isso chegar ao destino era muito relaxante.

                A família desembarcou num silêncio surpreendente. Todos curiosos olhando ao redor enquanto os anfitriões se aproximavam. Vestindo sorrisos em seus rostos e trajes tradicionais, os Lenape acolheram a família recém-chegada. Eram bem vindos.

                O dia foi de descobertas. Os Wellers estavam ali para agradecer aos nativos que salvaram à vida de Jane. Ela guardou esse desejo por muito tempo. Mas a gratidão foi dividida com a curiosidade regada pelo empenho dos Lenape em mostrar sua cultura.

                Após as primeiras horas de troca, a família percebeu que algo diferente acontecia. Todos se posicionavam com reverencia e respeito em silêncio, dando espaço para alguém passar. Foi então que uma velha índia, se aproximou amparada por dois homens jovens.

                - Você voltou! – disse baixo e rouco, com sua voz já pesando pela idade. – Eu sabia que retornaria. Sou grata aos deuses que tenha vindo enquanto eu ainda vivo. Venha! Preciso falar com você. Há tanto o que dizer... – e apontou para embaixo de uma grande árvore não muito distante dali conte havia um banco entalhado em madeira.

                A velha índia dispensou seus auxiliares e se apoio em Jane para caminha até o local. Assim que se sentaram, a senhora começou:

                - Desde menina, eu ouvia as histórias que minha avó contava assim como ela ouviu da avó dela. São história milenares, tão antigas quanto a própria existência. O tempo passa, muita coisa muda. Mas a essência da vida é sempre a mesma e tudo pode ser bem mais fácil se aprendermos a ouvir. O vento, a corredeira do rio, o piar dos pássaros, o ranger dos galhos das árvores. A vida fala conosco através da natureza e da sabedoria. Por isso é importante ouvir as antigas histórias, beber nelas como alguém sedento que encontra a fonte. Elas guardam a sabedoria que não se esvai com o tempo porque nos guardam a essência de nós mesmo.

                Era tudo tão diferente ali. Nada naquela tribo se assemelhava a qualquer coisa que Jane já experimentara no passado ou no presente. Entretanto, sentia-se fortemente ligada não só as pessoas como àquele lugar. À medida que a velha índia começou a falar, as palavras pareciam ultrapassar a barreira física chegando à sua alma.

                - Estou pronta para ouvir. Pensei que viria até aqui trazer gratidão, mas agora sei que a gratidão foi só o que me moveu para onde eu deveria estar.

                A velha senhora fechou os olhos e assentiu repetidas vezes, bem devagar com a cabeça.

                - Eu sabia. Soube desde a primeira vez que te vi. – e pegou a mão de Jane roçando os dedos sobre a pele de seus braços. – Foram tantos sinais: a tinta cobrindo sua pele, a força com a qual você se negava a adormecer na morte... Tantas vezes eu ouvi as antigas histórias... tantas vezes vislumbrei sinais dela aqui ou ali... Mas foi só quando você chegou que tive a certeza de tudo. A morte te persegue, criança?

                A pergunta fez Jane estremecer. Agora ela estava em paz, mas como negar quantas vezes a morte foi mais real que a própria vida pra ela? Seus pais, seu esquadrão em Orion, a esposa de Nigel – Chris, Mayfair...

                - Desde muito pequena... – respondeu com a voz carregada de emoção.

                A senhora voltou a fechar os olhos e abanou a cabeça lentamente em negação:

                - Não, minha filha. Não é a morte que te persegue. É a vida! Carne e espírito tem a mesma nascente e fluem influenciando-se mutualmente. É preciso entender para ter na nossa pele o perfume do que é sagrado. Toda semente morre pra vida brotar. A morte só parece ter rondar mais que ronda as outras pessoas porque você tem força quase indestrutível que a repele quando todos outros teriam perecido. Essa força que você carrega pode dobrada, amassada, ferida, marcada com cicatrizes ou até queimada pelo medo, mas ela não morre. Está protegida.

                - É muito difícil enxergar assim... – Jane disse cabisbaixa, sentindo-se impotente.

                - Então feche os seus olhos e escute, criança, o que a avó da minha avó ouviu da avó dela. Existe uma velha que perambula por aí, ninguém sabe dizer exatamente onde, mas todos cruzem seu caminho cedo ou tarde. Ancas largas, cabelos mal penteados, algumas vezes carregando um feixe de lenha nas costas. É La Loba, a mulher-lobo a recolhedora de ossos. Ela anda por aí recolhendo todo osso que encontra. Não importa que tipo de osso seja. E quando reúne ossos suficientes para um esqueleto inteiro, ela se aproxima, ergue os braços sobre ele e começa a cantar. E canta e canta. E os ossos vão se juntando e se movendo, retomando a carne e uma nova loba começa a respirar, abre os olhos e sai correndo. Nada a detém. A loba não para. Atravessa o rio respingando água, sobe montanhas, desce vales. Ela procura os raios do sol ou do luar, precisa que eles reflitam em seu flanco. E quando a luz encontra a loba, ela se transforma em mulher e segue livre na direção do horizonte.

                Um silencio se fez. A sábia senhora compreendia que a jovem precisa absorver a história, memorizá-la com todos os seus detalhes.

                Jane permaneceu algum tempo de olhos fechados: ossos, canto, a loba, a mulher. O antigo mito fixou-se sem sua mente. Ela saberia repeti-lo quantas vezes fosse preciso. Mas na sua alma nada fazia sentido. Por fim, respirou fundo e abriu os olhos para encarar a velha índia a sua frente. Estava entristecido por ter que decepcioná-la, mas a vida lhe ensinou que mesmo a mentira mais bem intencionada causava mais dano que bem.

                - Sinto muito, eu não compreendo...

                - Se você compreendesse, criança, não precisaria estar aqui. – a índia disse com um sorriso acolhedor no rosto.

                - A senhora pode me ajudar?

                - Foi para isso que eu te esperei, menina. Toda vida começa com muitos ossos perdidos e será uma jornada para recuperar cada parte. Mas não basta encontrá-las, é preciso cantar sobre elas depois de reunir tudo. O canto é a voz da alma. Somos capazes de amar, mas é preciso entender que o lançar amor sobre um ser amado não traz de volta nossa própria carne. Já se sentiu sozinha, criança?

                - Muitas vezes.

                - O canto da vida é trabalho solitário. E incomoda a muitos. Por isso, não se deixe silenciar.

— Mas eu quase não canto...

— Ah, menina. Não se trata das canções, mas de um canto mais profundo, ancestral, que te impele a buscar por justiça.

— A busca por justiça sempre foi algo muito forte em minha vida.

— Eu sei, soube desde a primeira vez que te vi. Além das crianças – vi que você tem o coração aberto para muitas delas – tem algo mais que você cria?

— Bem, eu gosto muito de desenhar. Quando estou rabiscando aqueles desenhos parece que as coisas vão se encaixando dentro de mim.

— Bom, muito bom. As antigas histórias dizem que a mãe-criadora é também a mãe-morte, é um canto com dupla função: compreender o mundo à nossa volta e dentro de nós para decidir o que deve viver e o que deve morrer, o que vamos levar para o futuro e o que precisa ser deixado no passado. É cantando sobre os ossos que recolhemos de nós mesmo que temos a capacidade de nos mudar e mudarmos o mundo.  Pode parecer que morte nos persegue, mas é só a vida ganhando novas formas, um estágio de transformação, o tornando-se para um bem que está acima de nós.

                - Mas a loba não é selvagem demais? Ela não precisa ser domada?

                - Menina, o que me fez te reconhecer foi que sua calda escapava de suas roupas e suas orelhas pontudas abrirem espaço entre seus cabelos. Continue sendo o que é. O lobo e a mulher são espíritos gêmeos, eles se encontram. Deixe sua mente e seus instintos caminharem lado a lado. Está tudo aí, minha menina. Você recolheu os ossos, os cobriu de carne e correr sem parar até encontrar a luz que precisava para se tornar uma mulher. E agora, minha criança, o que você fará?

                Jane fechou os olhos e deixou tudo que ouviu se enraizar dentro dela. Sua mente estava vazia, mas sua alma pulsava forte. O silêncio durou o tempo que foi necessário e a velha índia cantarolou com seu fiapo de voz, bem baixinho, uma antiga canção, sem apressá-la.

                Quando se sentiu preparada, ela abriu os olhos decidida:

                - Agora eu seu quem sou. E nunca fui Jane Doe. – e seus olhos se encheram de lágrimas, mas seu rosto estava iluminado por um imenso sorriso - Sou Jane Kruger. A vida me persegue pela força que carrego. Sou esposa e mãe. E sou e fui muitas outras coisas também. Algumas deixei ou deixarei morrer. Outras vou insistir em manter comigo, porque é quem sou e o que eu quero. A minha vida e a minha felicidade importam porque é só assim que tudo reluz através de mim e chega àqueles que eu amo.

                A velha índia sorriu talvez o sorriso mais pleno de toda a sua vida. Jane estava pronta e a melhor parte de sua vida estava só começando.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? É mais introspectivo que o resto da história, mas sonhei muito com esse momento. Veio agora porque no capítulo final, apesar de que teremos muito Jeller, terá também o ritmo antigo com o desfecho de cada casal.
Por favor, compartilhem comigo suas impressões. Deixe um comentário.
E, se gostou, por favor, adiciona essa história aos favoritos.
Agradeço de coração.



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