Aroma europeu escrita por Camélia Bardon


Capítulo 3
Parte II - O senhor da fortaleza


Notas iniciais do capítulo

E chegamos ao final! Obrigada a todos que chegaram até aqui ♡ pretendia postar antes, mas tive alguns contratempos. Prontos para o final da visão da Clarinha? Boa leitura!



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O senhor da fortaleza

 

A sra. Zawadzki sempre ensinou ao filho de que ele saberia estar apaixonado por uma mulher quando, ao olhá-la, seu coração desse tantas reviravoltas dentro do peito a ponto de ele pensar estar sofrendo um infarto. No entanto, toda vez que ele estudava Edwiges, tudo que sentia, única e puramente, era uma calmaria sem explicação. Nada de reviravoltas. De duas, uma: ou sua mãe estaria equivocada ou então ele não estaria apaixonado. 

Sua mãe que o desculpasse. Seu estado de espírito frequente era “reviravoltas dentro do peito a ponto de sentir estar sofrendo um infarto”. Era hiperativo, afinal. Talvez… não funcionasse sempre do mesmo jeito. 

Soube disso quando atravessaram o Atlântico e adentraram as Américas. Receberam a notificação no salão de jantar (ou, pelo menos, era como Haskel o chamava, visto que eram poucos passageiros que conseguiam pagar todas as refeições). Ele e Edwiges geralmente se viravam apenas com uma refeição por dia. Nada saudável, no entanto era o que conseguiam pagar.

Faltando quatro dias para chegarem, escutou o estômago dela roncar no beliche de baixo. O coração de Haskel comprimiu-se dentro do peito, ao passo que colocou a cabeça para fora e ela olhou para ele, os brilhantes olhos castanhos de quem havia sido pega no pulo.

— Sinto muito… — começou ele, encabulado.

— Pelo quê?

— Pela fome. Não foi isso que planejei. E a intenção era apenas o melhor para você. Entende?

Edwiges riu graciosamente.

— Se levar em consideração que, teoricamente falando, quem atrapalhou seus planos fui eu e que não teríamos que apertar as refeições não fosse isso… 

— Não diga sandices. Fui eu quem a convidou.

— Por acaso estamos competindo culpas, sr. Zawadzki?

E ela também sempre errava a pronúncia do nome. Era adorável. Maldição.

— Não estamos, angielski — Haskel riu, voltando a deitar-se na cama. Ouviu-a batucar a madeira da cama.

— Que bom. Porque já estamos chegando ao destino. Pode me compensar dividindo comigo uma refeição mais decente que uma sopa aguada.

O polonês gargalhou com a oferta, e ela entendeu aquilo como um “sim”. Talvez fosse doida de se contentar com somente aquilo. 

Desde a ocasião da música e do beijo, não tinham repetido o ato. Haskel supôs que Edwiges teria ficado constrangida e de que não seria uma boa ideia continuar com aquilo, não quando ela era uma dama. No entanto, depois de aceitar de bom grado uma sopa aguada por dia, ele cogitou que a inglesinha poderia sentir algo forte por ele, também.

Valia a pena ver para crer.

 

O navio atracou no Porto de Santos, e os dois entreolharam-se. Ar livre! Agora, ar fresco… 

— Céus, que calor! Chegamos em outro continente ou no inferno? — indagou ela, quase atirando o cachecol longe.

— Calma! Podemos comprar roupas em São Paulo — por sua vez, visto que os marinheiros nas docas os olhavam com cara feia, Haskel segurou-a pelos ombros e apertou-os com delicadeza. — Vamos, antes que fiquemos sem a passagem de trem.

— Ainda há um trem?!

Rindo, Haskel ofereceu o braço a ela, que o aceitou como se isso fosse protegê-la de todo o mal decorrente. O prédio da Bolsa do Café erguia-se imponente bem próximo à estação de trem. Haskel sabia apenas o superficial sobre a viagem: navio de Londres, chegada em Santos, trem do Valongo até a Estação da Luz, e de lá somente Deus sabia. Às vezes, podia ser que nem Ele soubesse. Contudo, não deixaria Edwiges saber que não fazia ideia do rumo seguinte.

A inglesa, por sua vez, olhava tudo com ares ensimesmados. Como nunca tinha ido mais longe do que de Liverpool a Londres, Haskel conjecturou que ela se sentia em outro planeta.

Pagaram as passagens e compraram um tal de bauru numa lanchonete próxima. Foram pela aparência, pois ainda não entendiam o básico da linguagem do novo país. Haskel sabia “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “por favor” e “obrigado”. Teve sorte de estar ao lado do banco. Correu para trocar as libras pelos réis brasileiros, enquanto Edwiges apenas sorria e acenava com a cabeça com as tagarelices da dona do estabelecimento. Despediram-se da mulher com um aceno de mão, já sabendo que o trem se aproximava pela fumaça no horizonte.

Com as malas em mãos e tendo noção de onde estavam, ele pigarreou, atraindo a atenção da inglesa para ele.

— Eu acho… que não conseguimos nos passar por brasileiros — Haskel comentou, indicando os olhares curiosos que os rodeavam.

— Confesso que isso está me constrangendo, um pouco.

— Estão te olhando porque a senhorita é bonita — sorriu ele.

— Quem me dera!

E lá foi o corar violento.

Sentindo-se como se tivesse cumprido seu dever, ele tomou sua mão para embarcarem no trem que os levaria a uma nova vida. 

 

Encontraram um canto pequeno e feio, porém confortável, na Freguesia do Ó, na Zona Oeste da cidade. Isso tudo porque ouviram da ambulante que lhes vendia quindins ⎼ e falou com Edwiges num francês arrastado ⎼ que estavam aceitando trabalhadores no canavial da região. Edwiges e Haskel entreolharam-se, pensando na mesma conclusão: antes um pássaro na mão do que dois voando.

— Quem diria. Um canavial — Haskel comentou, girando a chave de casa por entre os dedos. — E numa casa que mal se dá para andar, de tão suja.

— Se vai pedir desculpas novamente, quem trabalhará no canavial serei eu, homem!

Haskel não conseguiu conter a risada com o comentário da garota. Sentando-se numa das únicas mobílias da casa ⎼ um sofá puído ⎼, ele sorriu para Edwiges, contente de não estar sozinho na jornada. Por sua vez, ela recostou-se em seu peito, passando um braço por dentro de sua cintura. Para deixar a posição mais confortável para Edwiges, ele também passou o braço ao redor de seus ombros. No entanto, ao senti-la remexer em seus bolsos internos, ele ergueu uma sobrancelha.

— Que está fazendo, angielski?

— Estou… — finalmente, ela encontrou o que tanto procurava: o saquinho de sementes de rosa, que Haskel carregava para cima e para baixo, com medo de perder. — Estou relembrando-o do que veio fazer aqui. Procurar uma vida melhor. Mais tranquila. E eu aceitei acompanhá-lo, não foi? Se a vida melhor for numa casa feia, reformamos ela com o dinheiro do trabalho no canavial.

Emocionado, Haskel voltou seu olhar para Edwiges e seu saquinho de rosas. Abriu um sorriso. Encorajada a continuar, ela se ajeitou no sofá, de frente para ele. Os olhos castanhos brilhavam.

— Sim! Podemos construir uma casa como as de Notting Hill. Ela ficará linda. Podemos… pintá-la de branco, e plantar rosas e trepadeiras no jardim da frente. E, no jardim dos fundos… pode plantar o que desejar. Ou plantar nos corredores, se não houver fundos. O que acha da ideia?

Como uma criança ao ganhar um doce, ela debruçou-se sob seu peito, apoiando-se com as mãos, entusiasmada. A única luz do cômodo, proveniente de uma vela, iluminava seu rosto, deixando-o em foco. Haskel sorriu junto a ela, levando uma mão para a bochecha da garota. Fez ali um carinho com o polegar.

— Essa é a hora em que você fala alguma coisa, querido — Edwiges riu, nervosamente.

— Ah, eu amo você, mulher… 

Observou seu rosto corar com a confissão. No entanto, seu coração palpitou após matutar se não estaria se precipitando. E se ela não sentisse o mesmo? E se apenas estivesse ali pelo espírito aventureiro e, ao cansar-se daquela vida, pulasse para outro lugar? Haskel prendeu a respiração, aguardando uma resposta.

— Que ótimo… achei que estivesse sozinha nessa!

Como é que é?

— Não precisa fazer essa cara. Acha que estaria aqui ainda se não amasse, bobo? Eu é que pensei que… o navio… havia sido, sabe…?

Conforme ela ia falando, seu tom baixava gradativamente. Ainda com a mão em seu rosto, Haskel riu, num tom entre a sinceridade e o nervosismo. 

— Coisa de momento — completou ele.

— É… não ria, estou falando sério — Edwiges murmurou. — Não sou interessante. Na verdade, me acho tão igual a todas as garotas, que é como se eu fosse invisível… 

— Está louca? — indagou ele, arqueando as sobrancelhas. — Te considerar comum sequer é uma opção! Você é adorável! Escutou o que disse para mim agora há pouco? Como espera que eu seja indiferente à senhorita, quando se importa tanto comigo?

Se Edwiges estava encabulada, agora seu sorriso abria-se aos poucos, contagioso.

— Além disso — ele continuou contornando o rosto da garota com o dedo indicador —, adorável não só no coração. A acho mais bonita do que um pôr-do-sol.

— Mais do que um pôr-do-sol? — repetiu ela, rindo.

— Ah, sim! Muito mais. Até pouco tempo, pensava não haver nada mais belo do que o pôr-do-sol. Contudo, a madame provou que eu estava equivocado em meu pensamento.

— O senhor sabe escolher as palavras muitíssimo bem. Mas continuo não sendo nenhuma madame.

— Poderia ser, se quisesse… 

A inglesa encarou-o, afastando-se o suficiente para estudar todas as linhas de expressão de Haskel. A vela já começava a aproximar-se de seu fim, o cotoco no pires exibindo-se como atração principal. 

— O que quer dizer com isso?

— Poderia ser a minha madame… 

Seu rosto iluminou-se, deixando a luz da vela no chinelo.

— Ora essa, acabei de dizer que a amo, que é a criatura humana mais adorável e gentil que já tive o prazer de conhecer, e que o pôr-do-sol é só bonitinho perto da senhorita, e queria que eu deixasse por isso mesmo?

— Ah, não! — Edwiges gargalhou. — Não, só estou surpresa. Nunca pensei que seria pedida em “madame” … 

— É um modo de se ver as coisas, sabe?

Ela revirou os olhos e, ainda rindo, deixou a vela de lado. Haskel, observou as chamas bruxuleantes dançarem e criarem desenhos na parede sem reboco. Edwiges, por sua vez, passou uma perna para o outro lado do sofá, ficando assim sob o colo dele. Haskel agradeceu silenciosamente pela luz encontrar-se distante.

— Qualquer situação, pequena ou grandiosa, que surgir em minha vida a partir de hoje, quero compartilhá-la com você. Pois você tornou-a melhor, desde o momento em que apareceu nela.

A cada palavra pronunciada, ela fazia Haskel tremer-se inteiro com o tom concupiscente. Também tomou a liberdade de colocar o rosto frente a frente com o dele. Aí, sussurrou:

— Eu aceito ser sua madame, Zawadzki.

Talvez sua mãe estivesse certa. Porque, dessa vez, seu coração deu um pulo, apostando corrida com a respiração.

 

Demoraram a encontrar um cerimonialista que falasse um inglês mediano. E mais ainda para registrarem-se no país. Aprenderam o idioma com certa dificuldade, com a esposa de um dos trabalhadores do canavial. Era até engraçado: dois jovens adultos compartilhando aulas de gramática com criancinhas de cinco anos. Contudo, a sra. Lima era uma professora dedicada e paciente.

Se por um lado, o ano de 1928 foi deixado como o ano de Haskel e Edwiges adequarem-se à vida de casados ⎼ e, é claro, de iniciarem as reformas na casa feia ⎼, o ano de 1929 não foi assim tão gentil. A crise que atingiu os Estados Unidos também teve seus reflexos nos produtos brasileiros, sobretudo o café. Mesmo com Haskel trabalhando com a cana-de-açúcar, os efeitos salariais foram radicais, visto o investimento nas indústrias. E, é claro, também impactou a política no país.

Haskel não tinha noção nenhuma de política (afinal, seu negócio sempre seria para com as flores), no entanto sua querida esposa ⎼ que se mostrava assustadoramente inteligente em quaisquer assuntos que lhe aparecessem ⎼ disse com todas as letras que o país havia sofrido um claro golpe em 1930.

Os anos da ditadura getulista (expressão usada por sua esposa) foram até que estáveis. Mesmo que, em seu meio, o mundo tenha entrado em outra guerra caótica. Os veteranos chamaram-na de “Segunda Guerra Mundial”. Ao seu final, em 1944, Haskel e Edwiges terminaram de construir sua tão planejada casa em estilo inglês. E, com seus quarenta anos, sua esposa anunciou que esperava um filho.

Um filho! Céus, Haskel nunca havia sequer pensado nessa probabilidade. Estava junto de Edwiges há tantos anos que pensava que ambos fossem estéreis. E nunca haviam comentado sobre o assunto. Haskel sentia-se à beira de um penhasco, só esperando o cutucão para despencar.

— Mas, angielski… como vai gerar uma criança, à esta idade? — indagou, preocupado, falando em inglês, como faziam apenas em casa. Costume, para não esquecer, agora que o português era o idioma predominante.

Edwiges nada mais fez do que segurá-lo pelos ombros e trazê-lo mais para junto de si. Ele voltou os olhos azuis para a esposa, que lhe devolveu um olhar doce. Não conseguiu não sorrir um pouco.

— Pelo método tradicional, ora essa. É apenas uma criança, meu querido. Não é mais uma guerra. 

— Eu sei… é que… não acha assustador?

Ela mordeu o lábio inferior, pensativa. Depois, correu a ponta dos dedos pelo cabelo do esposo, carinhosamente.

— É um pouco, sim. No entanto, quando que deixamos de fazer algo por medo da resposta? Atravessamos fronteiras para chegar até aqui, e o senhor me diz que está aterrorizado com uma criança a caminho? 

— Sempre foi mais corajosa que eu — ele desculpou-se, rindo nervosamente.

— É você quem pensa…

Haskel ergueu a cabeça, segurando as mãos da esposa em frente do peito.

— Como assim? Tem algo que eu não saiba?

— Tem muita coisa que eu não conto para você, querido — ela sorriu, com a doçura costumeira. — Coisas que eu escondo até da minha consciência, pois se o coração cochichar muito para ela, eu ficaria louca. Mas… um filho? Eu não consigo sentir medo. Só… só amor. Acha muita loucura eu sentir amor por uma coisinha que eu nem conheço?

— Acho — admitiu ele, o que fez ambos rirem. — Mas é uma espécie de loucura boa. Penso ser melhor amá-lo antes de nascer do que odiá-lo antes de nascer.

— Tem razão — Edwiges sorriu carinhosamente, voltando a traçar a linha do couro cabeludo do esposo com os dedos finos. Ainda pensava no que iria responder, pelo silêncio. Depois de algum tempo, retomou: — Sabe no que eu penso?

Novamente, ele encostou a cabeça no peito dela, erguendo o olhar com curiosidade.

— Em quê?

— Se minha mãe gostaria de ver um neto crescer… 

Era a primeira vez que Edwiges tocava no assunto, dezessete anos depois. Haskel temia estar em um assunto onde estivesse pisando em ovos. Engoliu em seco e decidiu ser melhor escutar primeiro o que ela teria a dizer, para depois opinar.

— Meu pai faleceu quando eu era mais nova, eu devia ter uns 10 anos… ele lutou na Grande Guerra, sabe? Mamãe me contou, anos depois, que ele morreu na Campanha de Gallipoli. Lembro bem pouco dele — ela iniciou a narrativa, embalada pela melancolia. — Se eu fechar os olhos e me concentrar, consigo o ver. Cabelos castanhos, olhos cor-de-mel. Ele era bem altivo, como você.

Haskel sorriu com o comentário, incluindo um próprio para demonstrar que acompanhava a narrativa:

— É mais parecida com ele ou com a sua mãe?

— Bem… sempre achei que tinha os cabelos dele e os olhos da minha mãe — Edwiges sorriu, agradecida. — Não sou nem um pouco altiva… 

— Não mesmo. É pequenina que quase dá para esconder debaixo de meu sobretudo.

— Ora essa…! 

— Continue, por favor — incentivou Haskel, voltando a calar-se.

Edwiges colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. Por pouco conseguiu esconder as mãos trêmulas. 

— O que eu quero dizer é que… eu não me recordo tanto do meu pai quanto me recordo de minha mãe. Portanto, é sempre ela que me vem primeiro à cabeça. Não acredito que haja nada depois da morte, então… parei para pensar que nunca consegui dar uma despedida justa a nenhum dos dois. Nenhum dos dois saberá que conheci você ou que teriam um neto ou uma neta um dia. Isso é um tanto triste.

Haskel assentiu com a cabeça, desencostando a cabeça do peito de Edwiges. Em seguida, replicou sem olhar diretamente para ela:

— São muitos pensamentos desorganizados. Por que os guardou por tanto tempo?

— Não sei. Acho que estava com medo de você achar que não tem tanta importância para mim quanto meus pais foram um dia… 

— E por que eu pensaria isso?!

Ela hesitou, talvez parando para pensar naquilo somente naquele instante.

— Pois… é injusto pensar assim, sentir tanta falta, quando ainda tenho você e, agora, mais ele ou ela a caminho… 

— Mas é claro que não! Só porque tem outras pessoas importantes em sua vida, quer dizer que as outras ficam num canto escuro da cachola? — Haskel brincou de propósito para arrancar-lhe uma risada. — Ah, querida… só tome cuidado para não pensar mais no passado do que no presente ou futuro, sim?

Edwiges fez que sim, tomando as mãos do marido para repousá-las em cima da própria barriga. A gravidez ainda era muito precoce, no entanto suficiente para ser reconhecida por ambos como um evento iminente. Haskel sorriu quando ela se inclinou para frente a fim de beijar sua testa e o redemoinho no topo dos cabelos loiros. Sempre que fazia essa sequência de gestos, Haskel traduzia como “eu amo você”, ao modo dela. Então, nada mais fez que retribuir a fala, em voz alta:

— Eu também amo você, angielski.

 

A pequena Maria Helena recebeu o nome das duas avós, adaptado de Margisa da parte polonesa e, Helen, da inglesa. Era a alegria da casa. Dona dos cabelos castanhos da mãe e olhos claros do pai, era a criatura mais linda que ele já havia visto. Haskel e Edwiges alternavam-se entre o trabalho (e ele finalmente conseguira trabalhar como floricultor depois de anos no canavial!) com a bebê e o trabalho secular. No entanto, jamais reclamavam de ficar mais algumas horas acordados ou abdicar de algum passeio com um casal de amigos. Não tinham mais idade para aquilo, afinal.

Se por um lado, Haskel preocupara-se com a gravidez tardia da esposa, por outro, admirava-a ainda mais por cuidar de Helena tão bem. Viu como obrigação cuidar das roupas, louças e afins, visto que era gratificante o sorriso da esposa no final do dia. Ela sempre se recostava com o pequeno pacote de amor no colo e cochilava em seus braços.

Quando mais novo, Haskel temia que encontrasse uma esposa e se cansasse dela com o tempo. Principalmente, se tivesse filhos. Contudo, não podia estar mais errado. Pensar de onde saíra, até Londres e agora São Paulo, reconstruído uma vida do zero ao lado de quem amava… isso, solteirice nenhuma poderia comprar.

Até que Edwiges adquiriu um hábito curioso. 

A Freguesia do Ó, que antigamente não passava de uma catedral, um punhado de casas, e o canavial, agora também tinha uma escola e ruas lotadas de comércios e casas. Com seus quase sessenta anos, Haskel observou a mulher e a filha postarem-se no muro de casa e observarem os garotos do ginásio desfilarem pela rua na saída das escolas. Rapazinhos firmes, com seus 16, 17 anos, que lançavam olhares curiosos à garota e a senhora.

Edwiges, por sua vez, ocupava-se de assar pães e biscoitos. Acenava para eles com a cabeça, e quase todos a ignoravam.

Com exceção de um. Louro, alto e esguio, como Haskel fora em sua juventude. Um dia, Haskel escutou a esposa a aventurar-se a dizer do seu murinho:

— Venha cá, menino! — e Haskel poderia imaginar ela mais nova chamando a filha para tomar banho, enquanto esta corria pela casa pelada. Era exatamente o mesmo tom. Haskel imaginou que o menino tivesse se aproximado com cautela da esposa. — Como se chama um menino educado como esse?

— Bernardo — respondeu ele, introvertido. — Muito prazer, senhora.

— Senhora a sua avó — gargalhou Edwiges, deleitando-se. — Meu nome é Edwiges. Sempre te vejo passando, você está com fome? E não esquente que toda a vizinhança me conhece. Aqui não é a casa da bruxa.

— É claro que é, mamãe — Helena acrescentou, brincalhona. — A senhora acha que ninguém sabe da plantação de ervas no jardim atrás do do papai?

— Menina… — a mãe não evitou a risada, junto ao garoto. Haskel então levantou-se para verificar qual era a nova. Ao vê-lo, a esposa abriu um sorriso. — Este é meu esposo, Haskel. E este é Bernardo, querido. Ele sempre dá oi para mim e para a Lena.

E Haskel estendeu a mão para o rapaz, que a apertou com vigor. Depois, sorriu e retornou para os jardins, visto que eram seu sustento.

 

A partir daquele dia, Edwiges e Helena tinham encontrado um novo amigo. Bernardo passava pela casa para tomar café quase todos os dias e, quando não aparecia, a esposa consumia-se em preocupações. Já Haskel, guardava uma muda de rosa para entregá-lo quando retornasse. Viram o garoto e a filha crescerem com uma amizade respeitosa.

 Não era uma vida grandiosa, mas era sua vida grandiosa. 

E, enquanto crescia, Helena acompanhava a mãe em suas “olhadelas de muro”. No entanto, quando a mãe faleceu, ela parou de fazer isso. O ano era 1988. Ano da bênção do fim da ditadura. Haskel esperava falecer primeiro que a esposa, mas a vida gostava de lhe pregar pequenas peças. 

Agora, era Bernardo que lhe auxiliava com a floricultura. E, quando falecesse também, ele cuidaria de seus gerânios, dálias e rosas. Haskel nunca esqueceria o dia em que o garoto – agora, já adulto – lhe serviu uma xícara de café e se sentou com o velho na mesa da cozinha.

— Você sabe, sr. Zawadzki — começou Bernardo, brincando com o pote de açúcar. — Nunca vou me esquecer do senhor e da senhora Edwiges. 

Haskel tinha a impressão de que ele apenas estava dizendo isso porque iria para o Rio de Janeiro fazer faculdade. Bernardo não era lá muito sentimental; se a oportunidade lhe surgira, ele aproveitaria.

— Claro que sei — Haskel abriu um sorriso parcialmente desdentado. — Você também é inesquecível, garoto. 

Bernardo apenas sorriu, tomando um gole de café de sua própria xícara. 

— A casa é tão vazia sem ela… — comentou. Vendo que o viúvo nada mais diria que um aceno positivo com a cabeça, prosseguiu: — O senhor sabe que, muitas vezes que passei a tarde com vocês e com a Leninha, eu estava evitando ficar em casa? Não me entenda mal, eu amo os meus pais, mas às vezes eles são insuportáveis. 

Haskel assentiu com a cabeça mais uma vez. Tinha adquirido o hábito de manter-se silencioso na maior parte do tempo, diferente da juventude. Praticamente todo o bairro sabia do temperamento difícil dos pais de Bernardo, então não podia dizer que era implicância do jovem. Bernardo também tinha avós poloneses, e Haskel sabia que eram dois extremos: ou eram bondosos como ele, ou então explosivos e narcisistas, como os pais de Bernardo.

— Fico feliz, moleque. Vai me ligar lá do Rio?

— Claro que vou. Claro que vou — repetiu ele, talvez para se convencer, e então levantou-se para despedir-se do amigo idoso. Apertou sua mão com delicadeza e olhou a hora no relógio da cozinha. — Boa noite, senhor. A gente se vê na sexta?

— Na sexta, sim. Cuidado na volta, cinco casas do lado é muita coisa.

Bernardo riu, fraco, e deixou a casa inglesa para ir para a própria. Já Haskel terminou seu café e andou meio capengando até a estante da sala, buscando o retrato da esposa. Bernardo tinha lhes dado de presente uma televisão, mas Haskel só a usava para assistir Vale Tudo, O Primo Basílio e o Jô Soares, visto que qualquer outro programa nacionalista lhe dava nos nervos. 

Analisou o rosto tímido e sorridente da esposa, em sua versão mais nova, e acabou por sorrir também. Arrastou-se até a poltrona da sala e lá se sentou, abraçado com seu retrato. 

Dormiu em pouco tempo, e permaneceu dormindo, contente por saber de a esposa e ele terem feito Bernardo feliz. Lá fora, chovia.

O que ele não sabia é que o garoto se lembraria dos dois até ele próprio ficar velho. E contaria para sua filha. Se tivesse filhos, ela passaria para eles, e assim por diante. Sem querer, Bernardo manteve viva a história da Casa das Flores da rua, da duquesa má de Liverpool e do senhor da fortaleza. Mas, é claro, com um toque de imaginação a mais.



❀❁❀

Papai,

Se houvesse flores com cheiro de imaginação, elas teriam um aroma europeu. Por sorte, eu conheço o cheiro de amor muito bem. Sabia que amor e imaginação andam juntinhos no meu jardim mental?

Obrigada por me contar histórias e me permitir floreá-las também.

Com carinho, da Clarinha.


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Notas finais do capítulo

E foi isso :3 eu quis focar mais no relacionamento dos dois ao longo dos anos do que nos dois velhinhos, como vimos no primeiro capítulo, já que era uma coisa da qual já sabíamos também.
Digam pra mim se esse final foi digno, eu amo conversar com vocês! Um beijão no coração docês, quem sabe não nos vemos numa próxima? ❀ ♡