Aroma europeu escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
Parte II - A duquesa má de Liverpool


Notas iniciais do capítulo

Voltamos mais cedo do que o esperado com um capítulo também maior do que o esperado e.e Tive de dividir a segunda parte em dois capítulos, senão iria ficar muito maçante para ler. Temos aí a visão da Clarinha do negócio todo, espero que vocês gostem ♡



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Aroma europeu, por Clarissa Garcia

 

A duquesa má de Liverpool

 

Quando Edwiges tomou seu primeiro barco, em 1927, de Liverpool a Londres, não imaginou que voltaria ao mar. Tinha completado seus 21 anos, e não sabia se estava pronta para encarar um novo mundo, sozinha.

Sua mãe, ao saber que mesmo após a Grande Guerra contratavam mulheres para cargos públicos, insistiu para que se mudasse para a capital. 

— Vá, minha filha — disse a sra. Hill. — Há boatos de que o rei não viverá muito mais, então pegue seus pertences e largue essa cidade malcheirosa. Ou trabalhe, ou tenho certeza de que arranjará um bom marido. Pode até largar sua velha mãe aqui.

De início, Edwiges riu. No entanto, vendo que a mãe não iria largar mão da ideia, arrumou sua mala e as economias deixadas pelo pai e partiu.

Londres, ao contrário do que havia figurado de suas leituras, não passava de uma cidade nebulosa e feia. Sim, horrorosa; cheia de prédios e carros, e o barulho… por Deus. Se por um lado Edwiges havia se acostumado às ocasionais feiras de peixe em Liverpool, por outro a buzina dos carros londrinos era absolutamente irritante.

Tal barulho a fez procurar pela cidade inteira um canto recluso para morar, nem que isso a fizesse ter de atravessar toda ela novamente até o trabalho. Por falar nele, o tal trabalho era carimbar passaportes de estrangeiros. Estrangeiros, não, corrigia-se ela dia após ela. Imigrantes. Estrangeiro era um nome grosseiro para quem fugia dos problemas do país natal e vinha para o Reino Unido. Procurando sabe-se lá o que nessa cidade feia. 

Todo dia deparava-se com indianos, caribenhos, africanos e, vez ou outra, italianos, poloneses, romenos e ucranianos. Edwiges aprendera diversos cumprimentos em diversas linguagens, porquanto que não eram raros os dias em que se deparava com viajantes que não tinham a mínima noção do inglês. Nesse caso, eram bons-dias e boas-tardes, seguidos de bem-vindos e boas-sortes. 

No entanto, um dia desses, Edwiges se surpreendeu. Começou como um belo dia normal e chuvoso. Ao passar do dia, ninguém apareceu. Mas, faltando quinze minutos para trancar tudo e tomar o rumo de casa, Edwiges observou um jovem destrambelhado adentrar o local com botas de borracha barulhentas e um guarda-chuva quebrado. 

— Um momento! — pediu ele, com um inglês carregado. — Um momento, senhorita.

A jovem arqueou as sobrancelhas, matutando o quanto o dia para aquele homem deveria estar difícil. Decidiu ser generosa e realocou os papéis de admissão em frente de si, ao mesmo tempo que estudava a fisionomia da nova figura. 

Alto. Ombros largos. Talvez por isso ele andasse um tanto curvado. Loiro. Qual era mesmo aquele tom de cabelo? Ah! Cor de cravo. A flor. Para ela era, ao menos. Nariz longo, mas que combinava com o rosto. Olho azul mediterrâneo. Mas que aparentavam muita frieza. Seria mesmo? Edwiges nunca julgava à primeira impressão, no entanto era divertido brincar de adivinhar personalidades. Ela sempre errava. 

— Não me disseram que aqui chovia tanto — resmungou ele, pendurando o sobretudo ensopado na ponta do guarda-chuva, cujo qual foi apoiado na parede do balcão.

Que figura curiosa!

— E, no entanto, é a característica mais marcante do país! — riu ela, observando o homem tirar uma pasta refugiada no fundo da camisa. Cheia de papéis, é claro. Ele entregou-a a Edwiges, suspirando.

— Pensei que fosse o chá… 

— O chá, céus!

Inevitavelmente, ela gargalhou com o tom simplista do homem, com uma mistura de sotaques que não conseguiu identificar de prontidão. Muito otimista e sorridente para um imigrante. Edwiges supôs que fosse um dos do grupo com sorte. 

Tratando-se de imigrantes, Edwiges classificava-os como desafortunados e os prósperos. Os do primeiro grupo eram os que não tinham opção a não ser retirarem-se de sua terra natal. Já os do segundo grupo tinham o privilégio de viajar antes que a desgraça batesse em suas portas.

Pigarreando para si própria, ela abriu a pasta e separou os documentos que seriam necessários do lado esquerdo. Os outros objetos ⎻ um relógio de bolso, uma bússola e… aquilo eram sementes? ⎻ ela passou cuidadosamente para o lado oposto, enquanto o homem caçava algo a mais nos bolsos da calça.

A inglesa leu o nome tendo certa dificuldade com a pronúncia, franzindo a testa. Definitivamente, polonês. Haskel… 

— Zawadzki — elucidou ele, de imediato. Zavatsqui. Como era diferente a pronúncia. Vendo que ela permanecia encarando os papéis, absorta, acrescentou: — Significa "fortaleza".

— Que interessante — comentou Edwiges, sincera. — Que está achando do Reino Unido, senhor da fortaleza?

— Com todo o respeito, senhorita? Feia e cinzenta. E o Tâmisa fede a peixe morto.

Edwiges ergueu o olhar para ele, num misto de surpresa e curiosidade. Em resposta, Haskel deixou do lado da pasta um saco de libras, como pagamento pelo visto. Ela ergueu uma sobrancelha, fechando a pasta e grampeando a cópia dos documentos no arquivo pessoal.

— O dinheiro está aí, contado. Pode confiar, dona.

— Acredito no senhor.

Rabiscando com pressa os dados necessários, ela devolveu os documentos originais para a pasta, junto ao relógio de bolso, a bússola e o provável pacote de sementes. Em seguida, retornou a pasta ao dono, que a enfiou debaixo do braço novamente. 

— Está tudo certo. Aproveite a estadia — sorriu ela.

— Obrigado, dona. Mas não vou ficar muito tempo. Não pela cidade ser feia, é claro.

— Ah, não? — indagou, coletando as moedas do saco e jogando-o no lixo.

— Não. Eu vou para o Brasil. 

— Por que para lá? 

Haskel deu de ombros, fazendo o chapéu que usava cair na palma das mãos e ele rir graciosamente da situação. Já Edwiges, após contabilizar o dinheiro, ergueu-se na ponta dos pés para alcançar a grade que fechava o balcão, trancando o setor pelo dia. 

 — Tempos difíceis. Meu falecido pai descendia de judeus, mas ele e eu não somos. Para algumas pessoas, poloneses são obrigatoriamente judeus. Apesar de ter olhos claros… e os rumores que discorreram após a Grande Guerra… entende o que eu quero dizer? — pigarreou ele, ligeiramente constrangido. — Ouvi dizer que estão precisando de trabalhadores, agora que estão mandando os seus homens para treinarem com armas.

Ela suspirou. Claro que entendia. Não podia se dar ao luxo de se compadecer de toda alma que lhe aparecesse, mas aquele era um caso novo: um intermediário no grupo dos prósperos e desafortunados. Teria de encontrar um nome para o novo grupo. Portanto, não podia deixar de ficar curiosa, como uma criança. Era sua maior qualidade e, simultaneamente, seu maior defeito. 

— Mantenho-me dividida entre lamentar por eles e congratular o senhor pela oportunidade.

— Não há porque manter-se dividida quando pode ter duas opiniões, dona — sorriu ele, voltando a colocar o chapéu, resmungando enquanto deste escorria um filete de água.

— Tem razão, senhor — ela devolveu o sorriso, encarando o guarda-chuva estropiado. Logo depois, passou o olhar para o próprio, preto e grande. Por último, Edwiges espiou o clima lá fora, mordendo o lábio inferior. — Me permite perguntar para que lado vai?

— Kensington, madame.

— Notting Hill ou Chelsea? 

— Chelsea — riu ele, como quem diz "preferia Notting Hill, mas foi o que deu".

— Aceita a carona? — Edwiges indagou, sacudindo o próprio guarda-chuva, em tom de propaganda. — Tenho de passar por lá, de qualquer modo, não seria um incômodo.

— Ah, por favor. Hoje não estou com sorte.

Ela riu, erguendo uma sobrancelha para o sobretudo ensopado. Fechou o único botão de seu cardigã e jogou os cabelos castanhos para trás, preparada para o tempo feio. Edwiges abriu o guarda-chuva sem muita cerimônia, trancando a porta atrás de si, ao passo que ele (por ser mais alto), tomou-o de sua mão para auxiliá-la.

— Por que diz isso, senhor?

— Ora, madame. Primeiro, a chuva. Depois, perdi minhas sementes de tulipa. E, me lamentando, esqueci do horário de estar presente para autenticar o visto. Conto com o saco de chá em meu bolso para me aquecer, ainda.

— Chá de saquinho? Que ultraje!

Gargalhando, ele deu de ombros, desculpando-se. Com a voz rouca, Edwiges pôde comparar o som a um trovão, ainda mais em sintonia com as gotas de chuva chocando-se contra o guarda-chuva e o barulho das botas pisando as poças d'água pela calçada.

— E como eu poderia ter outro tipo de chá, dona?

— Se seu negócio são flores, o meu é chá — riu ela, caçando no fundo da bolsa um pacote de camomilas que adquirira com o boticário antes do horário de serviço. Repassou-a à Haskel, quando pararam para atravessar a rua. — Muito melhor que o de saquinho. Ferva a água e deixe-as em infusão. Saberá que está pronto para ser adoçado quando o cheiro puder ser sentido ao longo de toda a casa — concluiu, com uma risadinha baixa.

Ele aceitou o pacote, surpreso. Girou-o na mão, com uma curiosidade quase infantil.

— Dá para se fazer chá com elas? Obrigado, mas não sei se posso aceitar. Mal sei seu nome!

— É claro que dá. Só não o tome antes das nove da noite. E claro que pode aceitar, estou salvando sua vida desses… infames comerciais — dito isso, ela riu, mantendo o sorriso ainda por um tempo enquanto estendia a mão para a figura alta ao seu lado. — Edwiges Hill, de Liverpool, ao seu dispor. Quer dizer, agora de Notting Hill, mas vamos ver até onde a vida vai me levar até o túmulo.

Equilibrando o pacote de camomila na mesma mão que segurava o guarda-chuva, ele tomou sua mão com delicadeza e ergueu-a até onde pudesse alcançar sem precisar curvar-se muito. Depois, depositou nas costas da mão coberta por uma luva um beijo, que Edwiges quase torceu para poder sentir na pele. Quase.

— Como a santa — o homem riu, deleitado com a própria piada. — Prazer em conhecê-la, madame Hill.

— Ah, por favor, não me chame assim. Me sinto uma duquesa má!

— E não é? — Haskel ergueu uma sobrancelha, pândego ao sinalizar para atravessarem a rua com o saco de chá. Isso fez a inglesa rir da estranheza do homem.

— Não existem duquesas em Liverpool, só marinheiros e bêbados. E as mulheres ou são donas de casa ou bêbadas, igualmente. 

— E a senhorita se enquadra em qual grupo?

Rindo com certa maldade, ela pigarreou:

— Uma dona de casa que se contentaria com a bebida caso o marido não fosse dos melhores.

— Essa é uma boa resposta. Nem tudo se encaixa em apenas dois grupos, não?

— Recentemente — há pouco mais de vinte minutos, acrescentou ela mentalmente —, descobri que é verdade. Às vezes abre-se exceções para uma intersecção entre eles. Confesso que essas exceções são devidamente interessantes.

Haskel nunca saberia que Edwiges estava referindo-se a ele, portanto permitiu-se um flerte indireto.

— Eu compartilho da opinião — em resposta, ele sorriu misteriosamente.

Prosseguiram a caminhada dividindo suas opiniões e compartilhando histórias na medida do que o pouco tempo lhes permitiu. Ele, sobre Varsóvia e a vida como floricultor e agricultor. Ela, não tão grandiosamente, sobre… sobre a vida, na grande cidade feia.

Parando em Chelsea como prometido, Edwiges experimentou o tão famoso cavalheirismo inglês, de uma forma engraçada. Nunca pensou que fosse dividir o título de dama e cavalheiro, no entanto… aquele era um dia distinto. Trocando o peso dos pés, Haskel devolveu-lhe o guarda-chuva, sob a promessa de que compraria um novo, muito em breve. Levou as camomilas ao peito, com uma expressão que Edwiges não conseguiu decifrar.

— Bem… obrigado por… por… — encabulado, ele se interrompeu, pigarreou e recomeçou a frase: — Pelo visto. E pela carona. E pelo chá. E a conversa — finalizando a lista, riu nervosamente.

E pelo cavalheirismo!

— E pelo cavalheirismo, é claro. 

Curvando-se ligeiramente para trás para abrigar-se da chuva, Haskel riu mais descontraído.

— Disponha, senhor da fortaleza. Foi para mim… absolutamente gratificante e… ah, do que estou falando? Entendo de chá e números, perdoe-me.

— Perdoada — gargalhou ele, coçando a nuca. — Mas falei sério. Foi uma recepção bem melhor do que a esperada. Muito obrigado.

Como não sabia o que responder, Edwiges apenas meneou a cabeça positivamente, abraçando-se à sua bolsa. Sorriu, para não passar em branco.

— Quando… quando partirá para a América?

— Daqui a uma semana. Antes, quero ter certeza de que vi todos os cantos deste lugar. 

— Entendi. Bem, então não vou tomar mais de seu tempo — ela engoliu em seco, desta vez apertando o cabo do guarda-chuva. — Espero que faça uma boa viagem.

Haskel deu um sorriso de canto, abaixando o chapéu para que mais um filete de água escorresse pela lateral do rosto. Segurando a risada por respeito, Edwiges deu um passo atrás, e tomou o caminho para Notting Hill, olhando para trás apenas uma vez, em nome da curiosidade que ditava todos seus movimentos.

Encontrou-o parado junto ao batente da porta, olhando-a partir. Então, por impulso (e também: por que não?) acenou para ele. A sua surpresa foi ele ter acenado de volta. Agradecendo pela distância disfarçar seu rubor, e sentiu seu peito contrair-se, com certa dor.

Oh-oh.

 

De certa forma, Edwiges esperava vê-lo novamente. Ele sabia onde trabalhava e ela também sabia onde ele residia. Só não esperava que ele fosse vê-la todos os dias após o trabalho. Em algum deles, choveu. Outros, nem mesmo o clima nebuloso apagou o brilho de ambos.

Servindo de guia (segundo Haskel, ao menos), passearam por toda Londres ao longo dos três primeiros dias, antes que esta se tornasse apenas uma vaga lembrança aos olhos do polonês. 

No entanto, ao final do dia 4, ela recebera a notícia do falecimento da mãe. Há apenas quatro meses residia em Londres, e não estar por perto quando isto ocorreu lhe trouxe dor ao coração. Mesmo que já estivesse idosa, Edwiges esperava ter algum tempo a mais. Isso a fez repensar se deveria ter ido tão longe. Mesmo assim, guardou o luto para si. Não serviria de nada chorar por algo que não poderia consertar. 

Ao longo do quinto dia, permaneceu confortavelmente quieta. Não chovia, e podia-se até ver breves reflexos da luz do sol por entre as nuvens. E Haskel notou a diferença do estado de espírito de sua acompanhante quase que por acidente.

— A senhorita já sonhou em viajar o mundo, srta. Hill? — perguntou ele, ao final do dia.

— Sim e não — ponderou ela. — Nunca sonho demais. Tenho medo de sonhar com uma vida e, ela ser tão destoante da que vivo, que prefira viver nela e esquecer a real.

— É um modo triste de se enxergar a vida. Qual o motivo de tamanha melancolia, se me permite perguntar?

Edwiges deu de ombros, suspirando pesadamente.

— De certa forma, não tenho nada mais a perder. Meu pai faleceu quando ainda tinha oito anos, aprendi a conviver com a perda. E minha mãe… bem, minha mãe faleceu ontem. Então…

— Espere um minuto — ele interrompeu a narrativa e a caminhada. Ela já havia esquecido por onde andavam naquele dia. Olhou ao redor e identificou a Victoria Square, bem à frente da estátua da Rainha. — Sua mãe faleceu ontem?

— Sim, senhor.

— E está bem com isso?!

Bem não é a palavra. Encontro-me conformada. Não exatamente insensível, mas se me permitir ficar nunca mais viverei sem chorar pelos cantos. Algum dia, talvez, eu chore. Mas, por enquanto, ainda não é uma opção.

— Compreendo — foi tudo o que ele disse, atiçando a curiosidade da inglesa.

Pigarreando e colocando uma mecha dos cabelos castanhos para trás, ela pigarreou. Isso fez com que os olhos azuis voltassem sua atenção para ela, involuntariamente.

— Compreende, senhor?

— É claro. Não há modo correto ou errado de se encarar uma morte. Seja chorando até se entupir o nariz ou guardando a memória num canto empoeirado da mente… ambas são aceitáveis.

Edwiges abriu um largo sorriso, sentindo o coração um pouco menos gélido do que quando acordara. Como resultado, conseguiu arrancar um sorriso de mesmo teor de Haskel. Ele tinha um sorriso tão diferente. Centenas de vezes melhor que os dentes apodrecidos dos velhos marinheiros.

Despertando do breve torpor, ela escutou apenas o final da frase seguinte:

— … férias?

— Perdoe-me — pigarreou ela, franzindo a testa. — O que disse?

Foi a vez de Haskel pigarrear, desta vez optando por sentar-se em um dos degraus da escadaria da Victoria Square, do lado oposto ao olhar orgulhoso estampado na estátua da Rainha.

— Estava lhe fazendo um convite. Imaginei que… entraria de férias na próxima semana, devido aos feriados de final de ano. E lhe perguntei se gostaria de me acompanhar, como se fossem suas férias… visto que ficará sozinha aqui. 

Edwiges piscou, sentando-se ao seu lado para ouvir, soturna.

— Se o problema for dinheiro, não precisa esquentar a cabeça pensando nisso. E… sei que nos conhecemos a menos de uma semana, mas… — e, parando para soltar uma gargalhada nervosa, ele finalizou: — Não sou nenhum aproveitador. Estou preocupado com sua sanidade mental, vivendo sozinha aqui nessa cidade feia. Novos ares podem ser algo bom… entende o que quero dizer?

— Claro que entendo — suspirou a inglesa, assimilando tudo que tinha escutado. — Eu… posso responder após pensar com mais calma?

— Mas é claro que sim, dona! — voltando a falar em seu tom descontraído de praxe, ela sentiu o coração mais leve. Sentindo seus olhos sobre ela, voltou o olhá-lo fixamente. — Acha que eu faria um convite desses e ainda exigiria uma resposta instantânea?

Rindo mais cedo do que o esperado, Edwiges assentiu com a cabeça. Sua mãe teria gostado de conhecê-lo. Sempre dissera que a garota era calada em demasia, mas algo nele a deixava confortável para falar um pouco mais. Isso podia ser perigoso, mas o que poderia fazer? Mandá-lo embora num navio para a América, e pronto? Ela ficaria alterada se o fizesse? Conseguiria mesmo tomar uma decisão como aquela em um dia?

Pelo visto, teria de adiantar o fluxo de seus pensamentos.

 

❀❁❀

 

No final das contas, pensou que a mãe teria vergonha de dizer que tivera uma filha que trocara a vida confortável no Reino Unido por uma nova no Brasil. Sequer era bem-falado pelas pesquisas que fizera. Haskel contara-lhe boatos de que o atual presidente do país passava por uma “crise de meia-idade ao legalizar o partido comunista e, meses depois, torná-lo ilegal novamente”. Uma mulher idosa que escutou-o dizer tais palavras no barco torceu o nariz para ele, que nada mais fez do que abrir um sorriso zombeteiro de volta.

Seriam 20 dias de viagem, e mesmo ainda sendo suas férias, ela não iria voltar. A perspectiva de uma nova vida a encantava a ponto de só ligar para as consequências depois. Poderia voltar, afinal. Contudo, a companhia do polonês revelara-se melhor do que a "degustação" da semana em Londres. Sentia que ele era confiável.

Pior. Chegou à conclusão de que ele poderia ser amável.

— Ouvi dizer que preparam um café doce e forte — comentou ela, à altura da primeira metade em alto-mar. Seus dedos congelavam, e ela encontrava-se ansiosa para o tão falado clima tropical que a aguardava. — E que o tomam como nós tomamos chá!

— Se duvidar, madame Hill, até mais.

— Mais? — gargalhou, olhando pela janela da acomodação. Nada além do mar. — Não há mais nenhum livro para se ler?

— Já leu todos os três, duquesa — mais uma fala dita em seu tom de troça. 

— E o que sugere que eu faça agora para matar meu tédio, senhor Zawadzki?

Haskel esticou os pés no beliche de cima, inclinando o corpo em direção à porta. Edwiges não entendeu o que ele pretendia com aquilo, porquanto que ergueu uma sobrancelha e colou o ouvido à porta, igualmente.

— Bem. uma ideia. No entanto, não sei se vai agradá-la.

— Só saberei confirmar ou negar quando ouvi-la, não é?

Ah, céus. Tanta convivência com Haskel e já pegava para si os maus hábitos e a malcriação que tanto fazia jus a ele. Onde estavam seus modos?

Como se tivesse criado uma pupila à altura, o homem com olhos de cravo apenas riu.

— Está ouvindo a música, angielski? — indagou ele, chamando-a de “inglesa” em sua língua materna.

De fato, ela escutava em alguma acomodação próxima o som de uma vitrola ligada. Uma música lenta e romântica. Fechou os olhos ao escutá-la, recordando dos casais dançando em pubs em Birmingham. Seu coração acelerou também com o baque surdo (em seguida da queda suave de uma boina) dos seus pés de Haskel ⎻ cobertos apenas por uma meia furada ⎻ atingindo o chão. Edwiges deixou o livro de lado e permaneceu encarando-o com seu olhar diligente.

— A senhorita dança?

— Eis aí uma ótima pergunta — ela deu de ombros, sentando-se na cama de baixo. — Nunca me tiraram para dançar, para que eu julgue saber ou não.

Parecia ser a resposta que ele aguardava, pelo brilho maldoso que surgiu em seu olhar.

— E gostaria de tentar?

— Não sei o que está esperando — riu ela em resposta, levantando-se de prontidão.

Se Edwiges havia adquirido sua malcriação, ele também poderia ter adquirido parte de seu cavalheirismo britânico. Observou-o estender a mão para ela, com um sorriso convidativo.

— Madame?

Aceitando a mão, ela sorriu de orelha a orelha, embalada pelo som da vitrola ao longe. Aproveitou para abrir um pouco mais a porta, e o som tornou-se ligeiramente mais próximo. 

Por sua vez, Haskel chutou a boina para debaixo do beliche e conduziu-a em frente de si, o que fez a inglesa rir descontraidamente. Posicionando uma mão na base de suas costas, ele indicou para ela apoiar-se em seu ombro. Com a outra mão, segurou a dela, de modo tanto quanto desajeitado.

— Agora é só rodopiar feito uma bailarina de caixa de música. Aquele papo de dois pra lá, dois pra cá… é pura história para boi dormir. Aí, olhe — e nesse ponto, ele foi demonstrando conforme falava: — Geralmente, é assim que se faz. Isso mata seu tédio?

Sim. Com certeza, por definitivo. Segundo seu coração batendo em descompasso no peito? Absolutamente. Isso foi ao menos o que ela pensou. Já o que disse, passou perto:

— Terei de terminar a música para saber, senhor!

Rindo do comentário dela, ele aventurou-se a girá-la, levando-a ao chão e de volta, mesmo que a música deixasse a desejar, visto o ritmo do movimento.

— Céus! — Edwiges gargalhou, radiante. — É assim, geralmente?

— Ah, isso não geralmente. Isso foi acréscimo meu. Um… bem ruim, para ser sincero.

— Eu gostei… Por que não tenta de novo? Desta vez, me prepararei devidamente.

Mais confiante, Haskel sorriu para ela. Seria impressão a dela as bochechas coradas? Não, não. Deveria estar imaginando coisas. Mas que os dedos dele tornaram-se mais úmidos, disto podia ter certeza.

Abrindo um sorriso de escanteio, ela fechou os olhos para sentir novamente o frio na barriga. Desta vez, Haskel levou-a mais para baixo, quase rente ao chão. Não preparada para aquilo, arquejou em surpresa. Já ele, feliz com o resultado, diluiu seu sorriso de zombaria e substituiu-o por outro.

Mais… suave? 

— Agora, pode dizer que sabe dançar, madame — murmurou ele, trazendo-a de volta com mais delicadeza do que anteriormente.

Engolindo em seco e sentindo a mão que pousava tranquila sob o ombro dele palpitar involuntariamente, Edwiges procurou lembrar-se de como respirar. Mas tudo em que conseguia pensar, no momento, era o quão terrivelmente perto estava. E de como a música aproximava-se do final. Embora com o amanhecer eu saiba que irá embora, dizia a letra, esta noite estará comigo.

Observando-o passar a língua sob os lábios, ela moveu a mão do ombro para a nuca e deleitou-se ao sentir os poucos pelos ali presentes eriçarem-se conforme o fazia. Quanto à Haskel, que já tinha suas mãos à altura de sua cintura, nada mais fez que um mero movimento para a puxar para mais perto.

— Temo dizer, senhor — ela arriscou dizer, em um tom que, de tão baixo, deixava a música ainda mais alta —, que talvez só saiba dançar assim se o senhor for o condutor.

Em sincronia, ambos cederam à magia da música. Ela, deslizando a ponta dos dedos pelos cabelos cor de cravo. Ele, correndo a mão por toda a extensão de seu braço até a bochecha, de onde pôde segurar-lhe o rosto com mais firmeza e encerrar a distância entre ambos.

Edwiges experimentou a explosão de cheiros e sabores que vieram com aquele beijo. Será que ele teria sempre aquele cheiro de chuva? Ou seria o mar confundindo seus sentidos novamente? E o cabelo: que maciez! Não durou segundos até que sorrisse entre os lábios. 

Sem que nenhum dos dois precisasse abrir os olhos, Haskel passou gentilmente o polegar por sua bochecha e encostou a testa na dela, em paz.

— Não vejo problemas em conduzi-la na dança, angielski. Já que… me deu essa honra.

Talvez aquela viagem viesse a ser mais agitada do que o esperado, afinal…


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Notas finais do capítulo

pra quem quiser saber que música os dois dançaram, foi Tonight you Belong to Me, do Gene Austin: https://www.youtube.com/watch?v=VNEK_ai144I

Ai, gente ♡ e aí, essa primeira parte correspondeu às expectativas de vocês? A gente se vê no último capítulo ♡