Truque do Destino escrita por Akiel


Capítulo 6
VI - Passado


Notas iniciais do capítulo

Prestem atenção no que Ileanna diz e o que é mostrado nas lembranças. Pode ser que haja diferenças. =P



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VI – Passado

 

“E, então, ela se joelhou perante o Rei, a lâmina caindo no chão. Como prêmio, ela ganhou uma espada da mais bela prata, a marca do Rei desenhada na lâmina. Naquele momento, a Rosa provou sua lealdade e vontade de servir ao Rei. Naquele momento, Ileanna se tornou a Rosa de Auberon”

(Trecho de uma história contada entre os Aen Elle)

 

Fortaleza de Kaer Trolde

O eco da tempestade invocada pela Máscara de Uroboros ainda cai sobre Ard Skellig, as gotas d’água caindo sobre a fortaleza como um toque gentil sobre as janelas, a força da tormenta tendo sido domada pelo poder dos druidas. Em um dos salões de Kaer Trolde, duas feiticeiras, um witcher e um jarl permanecem sentados ao redor de uma mesa, afastados das festividades em homenagem ao rei Bran, mas ainda servidos com as mesmas iguarias oferecidas no salão principal. O pedido por privacidade foi feito pela feiticeira mais nova e o líder dos an Craite não hesitou em atendê-lo, respondendo com o próprio pedido de fazer parte da conversa. Algo a que ninguém se opôs.

O fogo queima lentamente na lareira, as chamas dançando e jogando sombras sobre os olhos dourados da jovem feiticeira, que se mantém calma e impassível sob os olhares dos outros presentes à mesa. Atento, Crach percebe a tensão que parece ondular entre as feiticeiras e o witcher, como o peso de algo deixado em silêncio. Com o queixo apoiado nas mãos, o guerreiro aguarda o final da quietude, que parece se esticar como uma corda prestes a ser arrebentada. As írises douradas do witcher se mantêm inquietadas, indecisas sobre em quem depositar a atenção: Yennefer ou Ileanna. O witcher sente o reflexo da própria tensão emanar da feiticeira de olhos violetas, cujo penetrante olhar se mantém fixo na jovem que permanece com os olhos fixos na entalhada taça de hidromel. Com as mãos sobre a mesa, Yennefer tenta manter a tensão mascarada, assim como a força com o que o coração bate – não tendo se aquietado desde o encontro com os cavaleiros vermelhos em Hindar.

— Eu disse que iria responder as suas perguntas. – Ileanna diz, quebrando o silêncio, mas não elevando o olhar – Podem começar.

— Você realmente é um membro da Caçada Selvagem? – Crach é o primeiro a questionar, a voz baixa e séria, os olhos azuis atentos a qualquer reação por parte da jovem feiticeira.

— Eu era. – a feiticeira de olhos dourados responde, as írises sendo dirigidas para o jarl – Mas isso foi anos atrás.

— Acredito que devemos começar pelo início e não pelo fim. – Yennefer diz, o tom de voz duro e afiado como uma lâmina, o eco do medo e da raiva sentidas com uma aposta impensada.

— E com que pergunta sugere que comecemos, senhora Yennefer? – as palavras deixam os lábios vermelhos envoltas em calma, mas também com uma sombra de desafio, os olhos dourados sendo dirigidos para as írises violetas da mais velha. Não é fácil falar sobre o passado, dar voz às memórias que assombram a mente e fazem o coração doer. Então, a jovem feiticeira deixa que a própria voz se torne mais pesada, reverberando com um desafio implícito, uma defesa contra a dor das lembranças. Contudo, o olhar dourado é mais sincero, revelando o esforço que existe por trás de cada palavra.

Silencioso, o witcher percebe o exato momento em que o olhar violeta treme sob a luz das chamas, o modo como foi chamada abalando Yennefer com a mesma força que um ataque direto. Um lembrete de que Ileanna não se recorda de quem realmente é, do quanto significa para a feiticeira mais velha. E para Geralt. O Lobo Branco vê a tensão na jovem feiticeira tão claramente quanto em Hindar, a postura tão dura quanto uma pedra e um olhar que tenta com toda força se manter inabalável. Decidindo tomar a frente no lugar de Yennefer, o witcher volta o olhar para a feiticeira mais nova, tentando manter o tom de voz o mais neutro possível:

— De onde você é? – Geralt questiona, conquistando a atenção dos olhos dourados – Onde você conheceu Ciri? – mesmo se as respostas são conhecidas, é um início.

— Eu... – Ileanna começa, uma resposta automática na ponta da língua, mas a promessa feita sobre as respostas faz com que a jovem pare e hesite por um momento – Eu nasci nesse mundo. – as írises douradas retornam para a taça de hidromel, os dedos enluvados seguindo as linhas dos entalhes de modo distraído – Quando eu era criança, a Caçada Selvagem veio e me levou para o mundo deles, para Tir Ná Lia. Foi lá que conheci Cirilla, depois que ela deixou a Torre da Andorinha.

— Por que a Caçada queria você? – Yennefer questiona, a voz se tornando mais baixa e suave, o impacto do desafio na voz de Ileanna ainda reverberando pelos músculos tensos.

Antes de responder, a jovem feiticeira levanta o olhar para as írises violetas, encontrando nelas um desejo por respostas que intriga a mente. Para Ileanna, é quase como se Yennefer tentasse montar um quebra-cabeça com as respostas prometidas, remontar algo que foi perdido e, agora, reencontrado. E a feiticeira com olhos de witcher sente que, seja lá o que for que a poderosa feiticeira está buscando, não tem a ver com Zireael. A atenção das írises douradas cai para a estrela no pescoço de Yennefer, o pulsar da magia no pingente despertando sussurros de sonhos insistentes. Tentando afastar as vozes, a feiticeira volta o olhar para a taça entalhada.

— Por causa do poder guardado no meu sangue. Como Cirilla. – a jovem feiticeira responde, um pequeno sorriso esticando os lábios vermelhos – Eu sou algo que não deveria existir e que é comumente chamado de Truque do Destino. – há uma sombra de sarcasmo e ressentimento na voz da jovem de olhos dourados.

— Eu pensei que Truques do Destino fossem apenas uma lenda. – Crach comenta, o olhar azul atraindo a atenção das irises douradas – Eles são tão raros que dizem que apenas um aparece em um intervalo de séculos.

— Mas, como você pode ver, eu sou bem real. – Ileanna diz, o sorriso nos lábios vermelhos se tornando mais largo e forte e a voz perdendo o eco do ressentimento.

— Também é dito que Truques do Destino são a mistura de sangues que não deveriam ser misturados. – o jarl de Ard Skellig continua, o olhar azul observando atentamente a jovem feiticeira – De que sangues você vem?

A pergunta de Crach faz com que a tensão que domina os músculos de Geralt e Yennefer se intensifique, o coração do witcher e da feiticeira pulando uma batida. Entretanto, Ileanna continua a sorrir, deixando que a mente seja dominada por um momento pela memória de uma noite há muitos anos atrás. Uma noite que contém a resposta para a questão feita e que marcou o inicio de uma vida. A mais antiga lembrança. O começo de tudo.

— Eu não sei. – a feiticeira de olhos dourados responde – A mistura nunca foi importante, apenas o resultado.

Anos atrás

A lua se encontra alta e cheia no céu, o brilho intenso afastando as sombras da noite e invadindo o salão do palácio. Sentado no trono, um rei observa o conselheiro parado a poucos passos de distância. Outro permanece à direita do soberano, as írises da cor do mel atentas a cena que se desenrola no aposento. A atenção do rei é desviada para a pequena que permanece ao lado do conselheiro, encolhida contra as pernas de Avallac’h. Írises com a mesma cor que o chumbo derretido procuram pelo olhar dourado de witcher, encontrando confusão e curiosidade no olhar da pequena menina. O rei estica o braço, oferecendo a mão para a recém-chegada. Mesmo com um gentil empurro por parte de Avallac’h, demora alguns segundos para que a menina de olhos dourados se aproxime do trono e aceite a mão oferecida.

— Ela tem belos olhos. – o soberano diz tocando a face da pequena e afastando alguns curtos fios do negro cabelo.

— São os olhos de um vatt’ghern, meu rei. – Ge’els comenta, o olhar de mel focado no outro conselheiro.

Longos minutos são passados em silencio, Avallac’h e Ge’els apenas observam a silenciosa conversa que parece acontecer entre o rei e a pequena menina. Os dedos do soberano seguem os contornos da jovem face, demorando principalmente nos olhos dourados com pupilas verticais. O Rei dos Amieiros sente o poder guardado no sangue, pulsando, ainda que dormente. E na mente do poderoso Aen Saevherne, possibilidades do futuro se desdobram como uma flor que desabrocha e revela sua verdadeira beleza. Os olhos de chumbo derretido veem a bela rosa que a pequena pode se tornar: uma beleza intensa com espinhos mortais. Ao mesmo tempo, olhos dourados observam o rei com uma curiosidade que, pouco a pouco, dá lugar para uma sensação de reconhecimento, de aceitação da presença do soberano. A pequena ergue a mão, tocando a face marcada pelo tempo e evocando uma rápida resposta dos conselheiros. Um movimento da mão do rei é o suficiente para impedir que Avallac’h e Ge’els se aproximem.

Auberon permite o curioso toque com paciência no calmo olhar. Com os dedos, Ileanna segue as linhas do rosto altivo, ainda possuidor de uma beleza ímpar, capaz de impor com sua mera presença, ainda que claramente marcado pelo peso da passagem do tempo. Sob o toque, a pequena sente o poder do rei, a magia pulsando como pequenas explosões de trovões e relâmpagos. A sensação faz com que um sorriso nasça nos lábios de Ileanna, suave e inocente, e que encontra reflexo nos lábios de Auberon, que se esticam em um sorriso pequeno, mas satisfeito.

— Ela é filha de uma feiticeira e um witcher, um caçador de monstros. – o rei diz sem desviar o olhar das írises douradas – E ela pode ser ambos. Uma feiticeira e uma guerreira.

— Uma soldada para a Caçada Selvagem? – Ge’els questiona com um leve tom de incredulidade na voz.

— Sim. – Auberon responde se levantando e pegando a pequena menina no colo – Mas também mais do que uma simples soldada.

— Mais? – Avallac’h questiona, conquistando a atenção do penetrante olhar cor de chumbo.

— Não tente negar que você também viu, Avallac’h. – o soberano responde, o tom de voz sério e cortante com a imponência que carrega – A natureza do poder de Ileanna, o motivo que me levou a ordenar que ela fosse trazida para nós.

— E ela pode se tornar mais do que o que a trouxe até nós? – as írises aquamarines não tremem ou desviam do forte olhar do soberano.

— Ela se tornará. – é a simples resposta do Rei dos Amieiros.

Presente

Kaer Trolde

— E qual foi o resultado? – o jarl de Ard Skellig questiona observando a atenção da jovem feiticeira retornar para a taça de hidromel, os dedos enluvados contornando a borda fina.

— Eu nasci com uma alta sensibilidade para magia. – Ileanna responde – E isso me fez valiosa para o rei dos Aen Elle, o povo do qual a Caçada se origina. – o sorriso nos lábios vermelhos perde um pouco da força e sombras se infiltram no olhar dourado – Isso me tornou uma excelente navegadora. Eu tenho facilidade em encontrar os pontos de conexão entre os mundos. – as írises douradas são dirigidas para o witcher e para a feiticeira mais velha – Mas não sou tão poderosa quanto Zireael.

— O que aconteceu depois que a Caçada a levou para o mundo deles? – Yennefer questiona, o olhar violeta se recusando a se deixar ser abalado.

— Eu fui treinada. – a feiticeira de olhos dourados responde com simplicidade – Como era a vontade do rei.

— Que rei? – Geralt pergunta, a voz adquirindo uma aspereza nascida das memórias de Eredin.

— Auberon. – Ileanna responde, o olhar dourado adquirindo uma atenção mais focada e a voz se tornando mais forte e firme a cada palavra proferida – Rei dos Amieiros, Rei da Caçada Selvagem e pai de Lara Dorren aep Shiadhal.

A surpresa que nasce imediatamente nas faces dos companheiros faz com que uma fraca e baixa risada deixe os lábios vermelhos. A lembrança de olhos da cor de chumbo derretido invade a mente da jovem feiticeira junto com o sussurro de uma voz tão conhecida que faz o coração doer. Palavras ditas sob o brilho da lua cheia – uma explicação, uma confissão, cartas colocadas na mesa depois que o sangue foi derramado. E a transformação, a extensão, do respeito em uma lealdade inabalável. A memória faz com que o riso morra na garganta e as sombras se intensifiquem nos olhos dourados. A sensação de incredulidade e impossibilidade domina o restante dos presentes à mesa, o nome da filha do rei dos Aen Elle ainda ecoando nas mentes em meio à confusão que nubla os pensamentos.

Lara Dorren. – Crach repete devagar – A mãe de Riannon? A ancestral de Ciri?

— Eu sei que, para vocês, pode parecer estranho. – a jovem feiticeira responde, as írises douradas sendo dirigidas para o jarl – Para vocês, a história de Lara é antiga, mas para os Aen Elle, ela ainda é recente. Tão recente que certas mágoas ainda não foram capazes de cicatrizar. – Ileanna toma um gole de hidromel, os pensamentos se voltando para o acompanhante de Zireael, ainda profundamente marcado pela escolha feita por Lara.

— Como você foi treinada? – Yennefer questiona, não permitindo que a conversa seja desviada para conjecturas acerca de Lara Dorren.

— Como uma feiticeira e uma soldada. – Ileanna responde – Um dos conselheiros mais confiáveis do rei me ensinou como ser uma feiticeira e o general da Caçada me ensinou como lutar. – as írises douradas são desviadas para a espada que permanece apoiada ao lado da lareira. Um presente e uma recompensa.

— O general da Caçada? – o witcher pergunta, uma ruga aparecendo e unindo as sobrancelhas em uma expressão que emana seriedade – Você quer dizer Eredin?

— Sim. – a jovem feiticeira responde, a mão tocando o braço direito quase como reflexo – Acredito que você pode imaginar que tipo de professor ele foi.

— Não muito gentil. – Geralt diz, o olhar seguindo o movimento da feiticeira de olhos dourados, percebendo a natureza do toque, a lembrança de um ferimento – Ele te machucou. – o witcher continua, um movimento da cabeça indicando o braço tocado.

Como resposta, Ileanna retira a luva e puxa a manga da camisa até a altura do cotovelo, revelando a linha de uma cicatriz que se inicia no meio das palma direita e segue até quase alcançar o tecido afastado. Há compreensão nos olhos de Crach, um reconhecimento do tipo de ferimento sofrido pela feiticeira e as prováveis consequências que podem segui-lo – irrealizadas no caso da jovem de olhos dourados, como o atual uso de uma espada comprova. Entretanto, nas írises do witcher e da feiticeira mais velha há raiva, uma intensificação da ira já dirigida a Eredin. As mãos de Yennefer se fecham quase como reflexo sobre a mesa, os músculos tremendo com a fúria contida. O mesmo movimento é realizado por Geralt, os olhos dourados adquirindo o mesmo intenso brilho e fogo da lareira.

— Meu outro professor foi quem cuidou de mim. – Ileanna explica de modo quase distraído, os dedos arrumando a manga da camisa e recolocando a luva – Ele disse que, mesmo com a ajuda da magia, havia uma grande chance de eu não ser mais capaz de segurar uma espada.

“Eredin! O que você fez?!” A voz de Avallac’h ecoa na mente da jovem feiticeira, a memória sendo relembrada como um sonho distante, o toque do Aen Saevherne sobre o ferimento como um fantasma sobre a pele. “Você nunca será uma soldada” A lembrança da frieza da voz e do olhar de Eredin fazem com que os músculos tremam, a raiva sendo despertada no sangue.

— Ele estava errado, pelo que parece. – Geralt diz, tirando Ileanna dos próprios pensamentos e conquistando a atenção das írises douradas – Eu vi você usando a espada contra os nevolosos. E muito bem. – as palavras do witcher fazem com que um pequeno e discreto sorriso nasça nos lábios de Yennefer.

— Eu fui teimosa. – Ileanna responde, o olhar caindo para o braço machucado, o tom de voz se tornando mais forte e duro – Esperei que o ferimento cicatrizasse e treinei todo dia, durante meses, até ser capaz de segurar uma espada novamente.

— Por quê? – Yennefer questiona – Você é uma feiticeira, por que iria querer tanto lutar com uma espada?

Anos atrás

O repetido eco de metal contra o chão quebra o silêncio do laboratório e captura a atenção do feiticeiro sentado à mesa, o fazendo desviar o olhar do livro para a passagem que leva para a área adjunta ao escritório. Deixando a leitura sobre a mesa, Avallac’h se levanta e caminha até o arco que une os dois aposentos, tomando cuidado para permanecer sob as sombras das tochas. O olhar aquamarine é dirigido para o interior da sala, encontrando uma jovem feiticeira lutando para segurar uma espada com o braço enfaixado. O atento olhar do feiticeiro percebe o sangue que molha a atadura, chegando a escorrer pela empunhadura da lâmina. O Sábio observa enquanto a jovem feiticeira tenta erguer a espada, apenas para tê-la escapando por entre os dedos e caindo com um eco metálico sobre o chão.

— Você nunca irá conseguir segurar uma espada se não deixar o ferimento cicatrizar. – Avallac’h diz, abandonando as sombras e se aproximando da feiticeira. O Aen Saevherne ergue a mão, em um mudo pedido para ver o machucado, e é imediatamente atendido.

— Mas eu tenho que aprender. – Ileanna responde, a pesada respiração deixando a voz ofegante – Eu sou uma soldada. – diante do duvidoso olhar das írises aquamarines, a jovem feiticeira corrige – Eu vou ser uma soldada.

— Por quê? – o feiticeiro questiona, se ajoelhando para ficar na altura da jovem de olhos dourados, os dedos ainda tocando as ataduras ensanguentadas – Somente porque Auberon deseja que você seja?

— Isso é errado? – a jovem feiticeira retruca, o olhar dourado permanecendo firme mesmo diante do poder e da seriedade presentes nas írises aquamarines.

— Você é leal. – o Sábio diz com um tom de voz pensativo - Auberon contou por que você está aqui? – Avallac’h pergunta – Você sabe o que significa para nós?

— Um portal para o caminho dos mundos. – Ileanna responde de modo imediato.

— Você sabe. Você sabe e permanece. – o olhar aquamarine continua conectado às írises douradas – Você é leal a Auberon, conhecendo as intenções do nosso rei. – com a mão livre, Avallac’h afasta alguns fios negros do rosto suado – Não é errado ser guiada pela lealdade. Não quando é uma lealdade informada como a sua. – o feiticeiro ergue o braço machucado que segura – Eu irei cuidar do seu ferimento e você irá deixá-lo cicatrizar. Depois, poderá voltar a treinar com a espada. – as írises claras são desviadas por um momento para a lâmina no chão – Mas comece com uma mais leve. Essa é muito pesada para você agora.

Presente

Kaer Trolde

— Porque eu não sou somente uma feiticeira. – Ileanna responde, retribuindo o olhar da feiticeira mais velha – Sou uma soldada também.

— Pensei que fosse uma navegadora. – Geralt comenta, um leve tom de provocação colorindo a voz.

— E eu sou. – a jovem feiticeira responde, sorrindo para o witcher – Eu sou uma navegadora, uma soldada, uma feiticeira.— o mesmo orgulho ouvido por Zireael anos atrás retorna para a voz de Ileanna – Eu sou mais do que meu sangue. Sou mais do que um Truque do Destino.

Eu provei meu valor. O pensamento permanece seguro no silêncio da mente, sendo manifestado apenas no leve tremor que toma a mão machucada e no olhar dourado, que volta a ser abaixado para a taça de hidromel. Eu provei minha lealdade a ele, aos Aen Elle. Os dedos enluvados tocam a base da taça, seguindo a circunferência de modo distraído. Eu me tornei mais, como ele disse que eu me tornaria. A jovem feiticeira se recorda de uma conversa tida com uma Andorinha, uma conversa similar a essa e com o mesmo jogo de palavras. Cartas mostradas e cartas escondidas, algumas parcialmente mostradas, com uma imagem distorcida. Uma imagem construída e passada para uma esconder uma verdade. Você nunca soube o que eu realmente era, Zireael. O pensamento faz com que um pequeno sorriso nasça nos lábios vermelhos. Eu era um caminho, um portal. Não uma arma. Se você tivesse ficado, se Auberon não tivesse morrido... Você descobriria. Auberon sabia que eu me tornaria mais. E eu quis por causa da vontade dele. Se ele não tivesse morrido... Nós nos tornaríamos o que ele desejava, Zireael?

— Você devia ser valiosa para eles. – Crach diz, trazendo a feiticeira de volta para a realidade. Não há nenhuma dúvida nos olhos azuis acerca do poder carregado pela jovem com olhos de witcher – E uma poderosa adição à Caçada Selvagem.

— Sim. – Ileanna confirma – Depois que me recuperei... – com um movimento do braço, a jovem feiticeira indica o ferimento causado por Eredin – Eu voltei a treinar, me tornei capaz de segurar uma espada de novo. Depois disso e depois que terminei meu treinamento como uma feiticeira, o rei me designou para os Cavaleiros Vermelhos e eu me tornei uma das navegadoras da Caçada.

Com o olhar dourado voltado para o jarl de Ard Skellige, Yennefer aproveita para observar a jovem feiticeira. A poderosa feiticeira de olhos violetas não sente mentiras ou ilusões no discurso da mais nova, percebendo a verdade na história contada e saciando uma curiosidade que por dezesseis anos a assombrou – o destino de Ileanna nas mãos da Caçada Selvagem –, mas Yennefer também percebe as brechas na história contada pela filha, deixadas em silêncio. Ileanna está contando muito, mas não tudo. As írises violetas são dirigidas para o witcher e, nelas, Geralt vê a mensagem que a companheira tenta passar, tendo ele mesmo percebido que o quebra-cabeça não se encontra completo. O Lobo Branco deixa que um controlado suspiro escape pelos lábios, o olhar dourado retornando para a filha e a mente tentando imaginar o que Ileanna ainda mantém oculto.

— Foi assim que conheceu o cavaleiro que encontramos em Hindar? – Yennefer questiona, a voz adquirindo um tom desafiante para esconder a inquietação sentida com a lembrança do encontro.

— Vridhiel. – Ileanna diz como uma correção, conquistando a atenção das írises douradas – Ele é o capitão de um dos destacamentos da Caçada. Nós lutamos juntos em algumas incursões dos cavaleiros vermelhos.

— Ele parecer respeitar muito você. – Geralt comenta recordando o modo como o cavaleiro agiu, a afirmação de acreditar na inocência de Ileanna em um acusação de traição.

— Eu salvei a vida dele uma vez. – a jovem feiticeira explica – Ele foi gravemente ferido em uma incursão e eu o ajudei a voltar para casa. – as írises douradas caem para a taça balançada entre os dedos – Ele é um bom soldado, um poderoso guerreiro. Um bom amigo. – as últimas palavras quase não são ouvidas, sendo sussurradas de modo tão suave quanto o soprar da brisa.

— Por isso você entregou aquela rosa para ele? – o witcher questiona, o atento olhar percebendo a sombra de melancolia que parece envolver a jovem feiticeira – Por isso deu a ele uma escolha?

— Eu queria saber... – Ileanna faz um pausa, parecendo reunir forças para continuar a falar – Se ainda tenho algo da vida que tinha. – um pesado suspiro escapa por entre os lábios vermelhos – A traição de Eredin custou tudo que me era importante, todos com quem me importava. – a voz da jovem feiticeira se torna vazia do orgulho e da confiança normalmente ouvidos, restando apenas a tristeza e a perda – Eu queria saber se algo havia restado.— um sorriso autodepreciativo surge nos lábios da feiticeira – Eu sei que, para vocês, eu devo ter tido uma vida horrível: sequestrada pelos cavaleiros vermelhos, treinada para me tornar parte da Caçada Selvagem, subordinada ao rei dos Aen Elle, mas não foi assim. – a voz de Ileanna adquire um tom mais forte, mais feroz – Eu fui protegida, educada, treinada... Eu escolhi me tornar quem eu era, o lugar que eu ocupava era meu por merecimento. Eu tinha uma boa vida.

— E a vida que você tinha antes da Caçada? – Crach questiona em um cuidadoso sussurro.

— Eu não me lembro. – Ileanna responde e, por mais que já soubessem, as palavras são como golpes contra Geralt e Yennefer – Minha memória mais antiga é a de ser apresentada para o Rei dos Amieiros.

A luz de um forte relâmpago invade o aposento e instala o silêncio entre os presentes.

Anos atrás

— Aproxime-se, minha rosa. – a voz do Rei dos Amieiros pede no momento em que as írises da cor de chumbo derretido percebem a chegada da jovem feiticeira.

Com passos lentos e firmes, Ileanna se aproxima do ponto onde Auberon se encontra, a entrada para a sacada nos aposentos pessoais do soberano. O olhar dourado permanece focado nas írises claras do rei, que ergue a mão em um pedido para ver o braço machucado da jovem feiticeira. Obedecendo sem hesitação, Ileanna coloca o braço enfaixado sobre a palma estendida, sem fugir do intenso olhar das írises de chumbo derretido. Com a mão livre, o rei dos Aen Elle toca as ataduras com lenta delicadeza, sentindo, sob o tecido, os pontos feitos para fechar o ferimento. Eredin irá responder acerca do ataque sem motivo, mas não é isso que se encontra na mente de Auberon nesse momento. É a força sem medo que permanece no olhar dourado, a prontidão para servir não tendo sido abalada pela dor causada com a lâmina e as palavras.

— Ainda dói? – o soberano pergunta de modo suave, permitindo que o próprio poder se infiltre por entre as bandagens e se misture ao cuidado certamente dado por Avallac’h.

— Não, meu rei. – Ileanna responde imediatamente, apenas um leve tensionar da mandíbula traindo a postura impassível diante do poder que envolve o machucado. Nem um músculo no braço ferido tensiona ou treme.

— Coragem, força e poder. – Auberon lista de modo quase distraído – Você tem muito potencial, minha rosa. – o Aen Saevherne solta o braço ferido, voltando o olhar para o horizonte além da sacada, os dedos indicando que a jovem feiticeira o siga para mais perto do parapeito – Você sabe o que significa para nós?

— Sou um Truque do Destino. – a jovem de olhos dourados responde com prontidão – Irei ser uma soldada com a Caçada Selvagem.

A resposta arranca uma breve risada dos lábios do Rei dos Amieiros, cujo olhar retorna para as írises da cor do ouro. Uma lealdade tão intensa, ainda que não consciente. Aos treze anos, Ileanna se mostra mais leal e mais disposta a servir do que muitos dos cavaleiros vermelhos. Os dedos do soberano tocam a face jovem, próximo ao paciente olhar dourado. Mesmo com a marca dos humanos no sangue misturado, a bela feiticeira foi um bem-vindo sopro de renovação para o coração do rei, cansado da passagem dos séculos e das perdas sentidas. Uma rosa para um novo jardim, uma esperança enquanto o gene de Lara ainda não é recuperado e trazido de volta para casa.

— Você é muito mais, minha rosa. – Auberon diz, o toque caindo para o longo cabelo negro da feiticeira – Você sabe por que treinamos toda noite nesse palácio, só você, eu e Avallac’h? Você entende o que é o poder que tentamos ensiná-la a controlar?

— Avallac’h diz que é o poder da Geada Branca. – Ileanna responde com cuidado, a expressão adquirindo um ar pensativo – Ele diz que eu posso invocá-lo de acordo com a minha vontade, mas eu tenho que controlá-lo primeiro.

— Exatamente, minha rosa. – as írises da cor de chumbo derretido olham profundamente nos olhos dourados – Seu sangue, a mistura do qual ele surgiu, a fez um farol a guiar a Geada Branca. Você pode invocá-la, mas também caminhar com ela, no caminho dos mundos. Você pode navegar pelos mundos com muito mais liberdade do que qualquer um dos nossos navegadores. Nós a treinamos para que possa ter o controle necessário para usar todas as habilidades que a Geada Branca a presenteia. E é isso que você significa para nós, minha rosa: uma entrada para o Caminho dos Mundos, um portal que nos permite navegar livremente uma vez mais.

A força nas palavras do soberano reverbera no coração da jovem feiticeira, o marcando com o desejo de ser o que Auberon diz, de se tornar um portal para o caminho dos mundo, uma navegadora para o rei. O toque suave do poderoso Aen Saevherne retorna para o braço ferido, a magia ausente dessa vez. Sob o delicado contato, Ileanna sente o que sempre sentiu na presença do Rei dos Amieiros: segurança, proteção, cuidado e respeito. E tudo parece se expandir no coração da feiticeira de olhos dourados, impulsionado pelo desejo de retribuir e se tornar o que é esperado pelo soberano, servir com toda habilidade e poder possuído. Naquele momento, em uma das sacadas do Palácio da Lua, Ileanna percebeu o que era sentir lealdade.

Presente

Kaer Trolde

Sob o pesado silêncio, diferentes olhares se concentram na jovem de olhos de witcher. Crach vê a imagem de uma feiticeira se desfazer para revelar a alma de uma guerreira, uma visão muito familiar para o jarl de Ard Skellig. O que o líder dos an Craite vê diante de si é uma espada. Forjada em aço e fogo, contornada e marcada pelas linhas da forja, pelos impactos do martelo que a moldou – pelo sangue, pelas lágrimas e pela dor. Para os olhos de Crach, Ileanna realmente é mais do que uma simples feiticeira. É alguém que foi esculpido para ser mais, para lutar e proteger, para servir. E, em algum nível, liderar. Como um general que guia o exército para a batalha, mas ainda serve um rei. Mas agora, a marca que mais se sobressai na jovem feiticeira é a perda. A perda de um mundo, de uma vida que não consegue ser esquecida. É a marca da traição sofrida.

O olhar do witcher observa a jovem feiticeira com uma sombra de tristeza e dor nas írises douradas. Dor pelo sofrimento ouvido na voz da filha e tristeza pela perda claramente sofrida. Geralt nunca pensou que Ileanna pudesse encontrar felicidade entre os cavaleiros da Caçada Selvagem. Mas na voz da jovem feiticeira, o Lobo Branco pode ouvir tudo que nunca esperou que Ileanna pudesse encontrar com os Aen Elle – lealdade, amizade, laços de cuidado e respeito, orgulho de uma vida construída com a própria força, com as próprias escolhas. Sob o sussurro da chuva, Geralt pode ver que a filha cresceu e se tornou alguém com a própria personalidade, as próprias habilidades e poderes, a própria história. E, no meio de tudo, o witcher sente orgulho. Orgulho da força que pode ser vista na jovem feiticeira, que ecoa na voz, misturada na dor e na perda. E, então, Geralt entende que o que viu em Hindar não foi uma aposta impensada, foi um fragmento da vida que Ileanna tinha. E de uma posição que instigava respeito e confiança até mesmo nos cavaleiros vermelhos. Com o canto dos olhos, o witcher percebe Yennefer se movimentar e, ao se virar para vê-la, a surpresa nasce nos olhos dourados.

Yennefer sente o coração batendo descontrolado no peito, perdido em meio a todas as emoções que são sentidas ao mesmo tempo. A poderosa feiticeira sente os anos perdidos, substituídos por uma história que é contada com sinceridade, mas que também mostra sombras de segredos mantidos. E com a narrativa, vem o eco de tudo que a filha sente. A tristeza, a dor da perda, o orgulho e a força... Yennefer sente tudo e o coração se contrai ao saber que não estava lá quando a ferimento foi feito, quando a traição foi executada e a vida que Ileanna encontrou entre os Aen Elle foi destruída. A ausência pesa e o medo sentido em Hindar retorna, o fantasma da perda, a possibilidade de perder Ileanna novamente. A vontade de confortar nasce e cresce no peito da feiticeira de olhos violetas, de segurar a filha nos braços e não soltar. Entretanto, o que Yennefer faz é esticar o braço sobre a mesa, as pontas dos dedos alcançando e tocando a mão enluvada da feiticeira de olhos de witcher.

O toque é uma surpresa, mas Ileanna não consegue achar um motivo para se afastar. O olhar dourado procura pelas irises violetas, encontrando apenas conforto e um pedido para confiar. Por um momento, o olhar da jovem feiticeira cai para a estrela no pescoço da mais velha e o eco de um sonho, de uma falha tentativa de alcançá-la, faz com que os dedos se afastem da taça de hidromel e se coloquem lentamente sobre a mão de Yennefer. As írises douradas e violetas se encontram novamente e a falha na respiração da mais velha encontra eco no ar que fica aprisionado na garganta de Ileanna. O toque de Yennefer é suave e delicado, um hesitante carinho que envolve a mão da feiticeira com firmeza. O calor passado através do toque faz com que o coração da jovem feiticeira pule uma batida, a sensação de segurança sendo quase esmagadora. Um pouco hesitante, Ileanna retribui o toque, envolvendo o punho de Yennefer com os dedos. O olhar dourado é dirigido para as mãos unidas e a sensação de familiaridade causada pela feiticeira de olhos violetas retorna com mais intensidade, fazendo com que Ileanna tenha a vontade de nunca soltar a mão que segura.

Enquanto a confusão nasce nos olhos azuis de Crach, um suave sorriso estica os lábios de Geralt, que sente a conexão que começa a ser recuperada entre Ileanna e Yennefer. Entretanto, a dúvida também nasce nos olhos dourados do witcher quando percebe írises da mesma cor sendo dirigidas para si, mais precisamente para o medalhão na forma da cabeça de um lobo que repousa ao redor do pescoço do Lobo Branco. O momento é breve, pois Crach quebra o pesado silêncio com uma pergunta:

— Qual foi a traição de Eredin? – a voz do jarl não é mais alta do que um sussurro – Teve algo a ver com o seu encontro com Ciri?

— Ele matou Auberon. – a jovem feiticeira responde, o olhar voltando a se focar na união da própria mão com a de Yennefer – Cirilla é a filha da Gaivota, a herdeira de Lara Dorren. – as írises douradas são elevadas para os olhos violetas – Ela chegou pela Torre da Andorinha, como os Aen Saevherne haviam previsto, e foi levada para o rei. Minhas ordens eram de cuidar de Ciri e fazer companhia para ela.

— O que o rei queria com ela? – o líder dos an Craite questiona, conquistando a atenção do olhar dourado.

— Isso é algo que apenas ela deveria responder. – apesar da clara confusão no olhar azul, Ileanna volta o olhar para Yennefer, a mão ainda segurando firmemente a da feiticeira mais velha, encontrando força no toque para superar a dor das lembranças e continuar a falar – Eredin matou Auberon e assumiu o trono. Na noite em que o rei morreu, eu ajudei Cirilla a deixar nosso mundo.

— Por quê? – Geralt questiona.

— O que Cirilla mais desejava era retornar para esse mundo. – a feiticeira de olhos dourados responde, o olhar caindo para as mãos unidas – E com o rei morto, não havia motivo para mantê-la no nosso mundo.

— Esse foi o único motivo? – Yennefer questiona com um pequeno sorriso nos lábios finos e aumentando a força com que segura a mão da filha, percebendo a necessidade de apoio que Ileanna sente para falar sobre o que aconteceu.

Zireael se tornou uma amiga. – a jovem feiticeira responde com um tom de voz mais baixo e suave – Com meu dever terminado, eu queria ajudá-la a alcançar o que ela desejava.

— O que aconteceu depois que Ciri deixou o mundo dos Aen Elle? – o witcher questiona, as sombras de tristeza e dor desparecendo e dando lugar para a intensa atenção que é dada para a feiticeira de olhos dourados.

Sob o toque, Yennefer sente os músculos de Ileanna se tensionarem, como se um raio tivesse atingido a jovem feiticeira. O sorriso nos lábios da poderosa feiticeira se desfaz quando a filha liberta o toque e afasta a mão, a tensão que nasceu com a pergunta de Geralt se tornando visível na postura mais dura e no olhar que é levantado para os interlocutores. As sombras nas írises douradas deixam claro que as lembranças do que aconteceu depois a morte de Auberon não são agradáveis de recordar. Mesmo que a mão coce com a vontade segurar a mão de Ileanna novamente, Yennefer respeita e aceita o recuo da jovem feiticeira, deixando que o braço volte a ser cruzado sobre a mesa.

— Eu fiquei. – a feiticeira com olhos de witcher começa a responder – Cirilla havia me contado sobre o que Eredin havia tentado convencê-la a fazer, a entregar algo suspeito para o rei beber. Então, após o funeral de Auberon, eu comecei a investigar se haveria alguma conexão entre Eredin e a morte do rei, alguma prova. Mas cada pista que eu encontrava, logo desaparecia. Pessoas começaram a morrer e mesmo meu próprio professor nos assuntos de magia desapareceu. – Ileanna faz uma pausa, a mente retornando para as pistas encontradas no litoral de Ard Skellig. Você foi atrás de Zireael, não foi, Avallac’h?— Então, eu confrontei Eredin. Como o novo rei, ele me marcou como uma traidora e me caçou com os cavaleiros vermelhos mais leais a ele. Eu fugi, pulando entre mundos, mas ele me encontrou em Tedd Deireadh, o Tempo do Fim, um mundo destruído pela Geada Branca. Eredin colocou todo seu esforço em tentar me matar. – a jovem feiticeira toca o lado esquerdo do rosto, os dedos seguindo a linha da cicatriz – E pensou que havia conseguido.

O movimento de Ileanna faz com que Geralt se recorde do sonho tido durante o naufrágio que o levou para a praia de Ard Skellig. O witcher se recorda de ouvir a voz de Eredin, se sentir a espada cortando o rosto, o gosto do sangue e a dor que dominava cada centímetro do corpo. E do portal aberto, do pulo na escuridão.

— Mas você escapou. – o Lobo Branco diz com a certeza nascida do sonho experimentado.

— Sim. – Ileanna confirma – Eu me recusei a morrer aos pés de um traidor, então, com toda força que me restava, eu abri um portal. Eu não pensei em lugar, eu só queria ir para longe dele. – as mãos da jovem feiticeira se fecham com força em um reflexo da raiva que desperta e queima o sangue – Eu cai nesse mundo, mas Eredin deve ter deduzido que eu não sobrevivi ao pulo. E isso foi quase verdade. – a jovem de olhos dourados respira fundo e a tensão, pouco a pouco, deixa o corpo – Eu tive sorte. Uma pessoa me encontrou e, ao invés de me deixar para morrer, me levou para um lugar onde meus ferimentos puderam ser tratados e eu pude me recuperar. – a lembrança dos amigos encontrados desperta na mente e faz com que um pequeno sorriso nasça nos lábios vermelhos, o olhar dourado caindo para a taça de hidromel – Levou um bom tempo até que eu conseguisse me recuperar por completo e, então, eu decidi permanecer onde estava. Não podia voltar para Tir Ná Lia. Mas conforme o tempo passava, eu conseguia sentir a presença da Caçada cada vez mais próxima, como se estivesse me aprisionando... Eredin podia acreditar que eu estava morta, mas minha conexão com os cavaleiros vermelhos nunca quebrou. – E as minhas lembranças ficavam cada vez mais altas, meus pesadelos cada vez mais intensos — E então, eu senti Cirilla. Eu sabia que a Caçada a seguiria. – as írises douradas são erguidas com uma nova determinação brilhando nelas – Eu segui a trilha de Cirilla e acabei aqui. Se eu tenho que encontrar a Caçada novamente para colocar um fim ao meu passado, pelo menos eu posso fazer isso ajudando Cirilla.

— E a escolha que deu a Vridhiel? – Yennefer questiona, o olhar violeta procurando as írises dourados – Não foi uma aposta perigosa?

— Sim. – Ileanna responde com tranquilidade – Mas já que Eredin ainda não apareceu, eu acredito que esse não foi o caminho que ele escolheu.

— Ou ele ainda não teve tempo de alcançar Eredin. – Geralt rebate.

— Verdade. – a feiticeira de olhos dourados concorda com um aceno da cabeça – Mas meu caminho irá encontrar o de Eredin. É só uma questão de tempo.

Para mim e para Zireael. O pensamento faz com que um discreto suspiro escape por entre os lábios vermelhos. O passado não pode ser abandonado sem um fechamento, sem um término. Até o final ser alcançado, as lembranças continuarão sussurrando, os pesadelos seguirão assombrando e a conexão irá ser uma ameaça, um constante lembrete de uma batalha que acabou sem um vencedor, sem uma decisão. Enquanto o passado permanecer aberto, o caminho à frente permanecerá em sombras. Foi isso que fez a jovem feiticeira fazer a escolha. Retornar, enfrentar o passado e ajudar a Andorinha. As memórias irão encontrar o silêncio e aqueles que se tornaram o presente, que ajudaram a manter a Morte longe, permanecerão seguros.

— E que caminho você seguirá agora? – Crach questiona, o coração do jarl mais inclinado a dar um voto de confiança para a feiticeira com olhos de witcher.

— Nós descobrimos que há uma criatura, provavelmente amaldiçoada, que pode nos ajudar a encontrar Ciri. – Yennefer diz antes que Ileanna possa responder.

— Essa criatura foi vista em Hindar, mas eu a encontrei em Velen. – Geralt responde ao inquisitivo olhar do jarl de Ard Skellig – Eu vou retornar para pegá-la e levá-la para Kaer Morhen. – o olhar dourado do witcher se volta para a feiticeira de olhos violetas.

— Eu tenho que retornar a Vizima e reportar ao imperador. – Yennefer diz, um aceno da cabeça indicando a concordância com a fala do witcher. As írises violetas, então, se voltam para a jovem feiticeira – Ileanna pode vir comigo. Depois, o encontraremos em Kaer Morhen. – um suave sorriso nasce nos lábios da feiticeira. Um convite.

— Será um prazer. – Ileanna responde com um sorriso próprio esticando os lábios vermelhos.

— Está decido, então. – Geralt diz, o olhar se voltando para o jarl.

— E se precisarem de qualquer coisa, é só dizerem. – Crach afirma com força e convicção na voz – Ard Skellig estará sempre pronta para ajudar.

Um fraco relâmpago brilha no céu de Skellige, iluminando o aposento e os pequenos sorrisos que nascem nos lábios de todos os presentes.

Tir Ná Lia

O som das cachoeiras que contornam o Palácio do Despertar ecoa no silencioso jardim, mas não é percebido pela mente do solitário soldado parado de pé próximo à amurada, os olhos verdes fixos na rosa de gelo que é segurada entre os dedos cobertos pela manopla. O capitão da Caçada Selvagem sente o coração batendo com força no peito, repetindo o mesmo pensamento de novo e de novo. Ela está viva. Por mais que as palavras sejam ditas, refletindo o encontro no mundo dos Aen Seidhe, a mente ainda encontra dificuldade em acreditar. E, embora leve como uma pena, a rosa pesa nas mãos, como uma peça perdida, a única que faltava para reconstruir uma realidade quebrada. Os dedos do cavaleiro vermelho seguem os contornos das pétalas de gelo de forma distraída, a mente se deixando levar pelas ondas das lembranças.

Ela ainda é bela como uma rosa. O pensamento acompanha a memória de uma incursão feita em um mundo selvagem, onde o fogo e o sangue dominaram toda cavalgada da Caçada Selvagem. Vridhiel recorda dos gritos e das lutas, das criaturas daquele mundo, homens que, sob uma lua de sangue, se transformavam em monstros, os corpos tomados pela aparência de um lobo a andar nas patas traseiras. E aquelas criaturas se mostraram mais selvagens do que qualquer coisa que os cavaleiros já haviam lutado, atacando sem pensamento e estratégia, como se movidos por uma sede de violência. O toque abandona o gelo para alcançar o próprio rosto, a cicatriz deixada por aquela batalha. O jovem elfo ainda lembra do peso da pata do monstro contra o rosto, quebrando a máscara e rasgando a pele, o jogando do cavalo.

O brilho da lua cheia toca as águas das cachoeiras, pintando o horizonte de prata, mas para as írises verdes a imagem é como uma sombra do incêndio que o rodeou naquele momento, anos atrás. A espada foi desembainhada e banhada no sangue de muitas daquelas criaturas selvagens, mesmo que o próprio sangue jogasse uma cortina vermelha sobre os olhos verdes. E quando o capitão caiu novamente, ferido por mais garras e dentes, o frio veio quebrar o fogo, congelando as criaturas e permitindo que o soldado pudesse se colocar de pé, um toque gelado e firme o ajudando a se estabilizar o suficiente para subir na negra égua. Eu ia morrer. Vridhiel se lembra das palavras sussurradas com sangue, a mente fraca demais para censurar. E da resposta recebida, colorida com provocação e divertimento. Para sua sorte, eu não gosto de perder meus soldados.

Ela salvou minha vida. O pensamento faz com que a rosa de gelo seja segurada com mais força, quase como se o toque quisesse roubar para si o frio das pétalas. Ela ganhou minha gratidão. E minha lealdade. Talvez a parte da lealdade tenha apenas se intensificado, uma vez que todo cavaleiro vermelho era leal a Rosa de Auberon, a protegida do rei. Ou deveria ser. Confusão acerca da decisão de Eredin de mentir sobre a morte de Ileanna surge na mente do capitão, se misturando aquela sentida desde o momento em que a navegadora foi condenada como uma traidora. Ela nunca trairia Auberon. Lembranças da bela feiticeira invadem a mente do soldado, fazendo com que as pálidas bochechas de Vridhiel sejam pintadas com um leve tom de vermelho. O capitão da Caçada Selvagem não se recorda de ninguém ser tão presente ao lado do rei Auberon do que a Rosa, com a possível exceção do, agora, vice-rei. O calor de uma admiração sempre sentida renasce e aquece o coração. Ileanna foi sempre uma boa soldada, uma boa navegadora, sempre preocupada com aqueles sob – e sobre – seu comando. Nunca uma traidora.

Um profundo suspiro escapa por entre os lábios finos do soldado. A lembrança da surpresa sentida ao encontrá-la uma vez mais fazendo com que o coração acelere tanto quanto naquele momento, naquela ilha no mundo dos Aen Seidhe. Ele foi enviado para encontrar a Andorinha, mas acabou encontrando a Rosa e nada pode impedir Vridhiel de sentir satisfação com esse resultado, felicidade por Ileanna ainda estar viva. Um pequeno e discreto sorriso nasce nos lábios do capitão, a rosa de gelo sendo aproximada do peito. Não há arrependimento na mente ou no coração do soldado acerca da escolha feita. A decisão foi tomada sem dificuldade ou hesitação, um caminho fácil de seguir.

— Capitão Vridhiel. – uma voz forte e imponente chama, tirando o soldado dos próprios pensamentos.

— Meu senhor. – o cavaleiro vermelho responde se voltando para o recém-chegado e se colocando de joelhos, a rosa de gelo segura em uma das mãos.

— Você pediu por essa audiência dizendo que havia uma assunto urgente a ser discutido. – Ge’els diz, os braços cruzados nas costas e o sério olhar fixo no soldado ajoelhado – Muito bem, qual é o assunto?

— Sim, meu senhor. – Vridhiel responde mantendo o olhar verde abaixado – A Rosa de Auberon ainda está viva.

— Ileanna? – o vice-rei dos Aen Elle questiona devagar, uma sobrancelha prateada arqueando levemente – Você tem alguma prova que sustente essa afirmação?

— Ela me pediu para entregar isso ao senhor. – o soldado responde, erguendo a mão que segura a rosa de gelo. As írises verdes são erguidas, acompanhando quando Ge’els pega a flor oferecida – Com uma mensagem, meu senhor.

— Qual é a mensagem? – o sério e forte tom de voz aproxima a pergunta feita a uma exigência que não permite recusa.

— Que o senhor, mais do que qualquer um, sabe onde a lealdade dela sempre esteve. E por que. – Vridhiel responde de modo imediato, o atento olhar percebendo o efeito que as palavras causam nos olhos do vice-rei. Embora não possa dizer que compreenda a mensagem, o capitão dos cavaleiros vermelhos tem a certeza de que Ge’els entende.

O olhar do vice-rei cai para a rosa de gelo, a mente repetindo a mensagem transmitida e retornando para as lembranças de uma jovem feiticeira. Sim, eu sei por que você era leal a Auberon. Em silêncio, Ge’els se afasta do soldado ajoelhado, a rosa balançado entre os dedos, o intenso olhar da cor do mel acompanhando os movimentos com aparente distração. O que você está buscando, Ileanna? Inocência? A atenção do vice-rei é desviada para o horizonte banhado no luar, o som das cachoeiras preenchendo o silêncio que retorna ao jardim. Com os braços cruzados nas costas, Ge’els se recorda da acusação e a subsequente caçada de Eredin a Ileanna. A morte de Auberon foi súbita e afetou tão profundamente a Rosa que a dor causada congelou metade da cidade. Em tese, alguém com a lealdade quebrada não deveria exibir um sofrimento tão intenso e perigoso. Você nunca trairia sua âncora, trairia, Ileanna? A rosa de gelo é erguida aos olhos, um silencioso questionamento nascendo nas írises de mel.

— Diga-me, Vridhiel... – Ge’els começa atraindo a atenção do soldado que permanece ajoelhado – Você acredita que Ileanna traiu nosso rei?

— Não, meu senhor. – o capitão responde prontamente.

Então por que Eredin a caçou? A pergunta permanece na mente do vice-rei, que imediatamente começa a levantar conexões e possibilidades, todas sendo reservadas para uma análise mais detalhada em um momento mais oportuno. Ge’els se vira para o capitão ajoelhado, a expressão pensativa e as írises da cor do mel exibindo as sombras do questionamento e da dúvida.

— Diga a Eredin que eu requeiro a sua presença e da sua unidade para me ajudar com um problema na fronteira. – o vice-rei diz, a voz ecoando com força e imponência – Então, retorne e permaneça na capital. – o olhar de mel cai para a rosa de gelo – Eu posso precisar da sua assistência.

— Com Ileanna, meu senhor? – Vridhiel questiona, o temor acerca da natureza das possíveis ordens do vice-rei nascendo no peito.

— Talvez. – Ge’els responde, o duro olhar calando qualquer outra pergunta por parte do capitão da dos cavaleiros vermelhos.

Kaer Trolde

Após a conversa privada, Crach insiste para que Geralt e Yennefer permaneçam na fortaleza, separando um quarto para o casal. Entretanto, o witcher encontra dificuldade para cair no sono, a mente ainda muito agitada e dominada por tudo que foi dito, por todas as possibilidades que podem encaixar no que foi deixado em silêncio por Ileanna. Respirando fundo, o Lobo Branco levanta com cuidado para não acordar a feiticeira que dorme profundamente. Colocando uma roupa para proteger o corpo contra a fria brisa, Geralt sai do quarto e caminha pela parte externa da fortaleza, deixando que o soprar do vento acalme o coração que bate inquieto no peito. O witcher não consegue parar de pensar em tudo que viu nos olhos da jovem feiticeira, não somente a dor pela vida perdida, mas também a força e a determinação de continuar a lutar, a decisão de ajudar Ciri e enfrentar o que foi deixado para trás.

Como se os pensamentos do Lobo tivessem ganhado vida, os olhos dourados encontram a jovem feiticeira sob a copa de uma árvore, soprando bolhas de sabão que são imediatamente congeladas por um toque gentil. O witcher se aproxima sem se preocupar em ocultar os passos, o olhar dourado acompanhando o bailar das bolhas e o congelamento delas no ar. Ao perceber a aproximação de Geralt, a jovem feiticeira oferece um sorriso vermelho, parando de soprar o sabão e permanecendo parada em meio às bolhas congeladas. Com um breve olhar para Ileanna, o witcher tenta tocar uma das bolhas. O toque hesitante e cuidadoso encontra a esfera dura e fria, mas frágil sob os dedos.

— O que é isso? – Geralt questiona, passando a bolha congelada de uma mão para outra.

— Um conto sobre a Geada Branca. – Ileanna responde calmamente, ganhando a alarmada atenção do witcher. Ainda sorrindo, a feiticeira ergue a mão direita, os dedos sendo envoltos pela familiar luz azulada. Quando a jovem feiticeira movimenta novamente a mão, a neve no chão se ergue e dança no ar, contornando cada uma das bolhas congeladas e suspensas – A Geada Branca é uma força da natureza e, como tal, não pode ser derrotada ou destruída. Ela existe no espaço entre os mundos, é ela que domina a trilha que os conecta. Na maior parte do tempo, ela permanece silenciosa, apenas preenchendo o vazio entre um mundo e outro. – com um movimento dos dedos da feiticeira de olhos dourados, a neve se aproxima ainda mais de uma das bolhas, grudando na superfície congelada como um cobertor – Mas chega uma época em que ela quebra o silêncio e invade os mundos. É o Tempo do Fim. E o destino de todos os mundos.

Todos os mundos? – Geralt repete, as írises douradas presas na imagem criada pela magia da jovem feiticeira.

— Sim, embora em diferentes épocas. – Ileanna responde abaixando a mão e fazendo a neve retornar para o solo junto com as bolhas de sabão, que permanecem como pérolas sobre o branco tapete – É impossível escapar da Geada Branca. Você não vencer a própria Natureza.

O witcher permanece em silêncio, a atenção voltada para a esfera congelada que ainda segura nas mãos, a mente imaginando se o desejo de Eredin pelos poderes de Ciri pode ter alguma conexão com o destino que aguarda todos os mundos nas mãos da Geada Branca. Concentrado nos próprios pensamentos, Geralt falha em perceber o atento olhar que o observa, as íris douradas se focando especialmente no medalhão na forma da cabeça de um lobo que segue pendurado no pescoço do witcher.

— O que significa? – a jovem feiticeira questiona trazendo o Lobo de volta para a realidade – O medalhão. – com um movimento da mão, Ileanna indica o citado objeto – É igual ao meu, mas eu não sei o que significa. – os dedos da feiticeira tocam o próprio medalhão de modo distraído.

— É o símbolo da Escola do Lobo. – Geralt responde com um pequeno sorriso nos lábios – É o que me marca como um witcher dessa escola.

— Um witcher.— Ileanna repete em um tom pensativo – Um vatth’ger. Uma caçador de monstros.

— Exato. – o Lobo confirma, reconhecendo o modo como os elfos se referem a profissão que exerce.

— E o que significa ser um witcher?

A pergunta faz com que um suspiro escape por entre os lábios de Geralt, que deixa a bolha de sabão sobre a neve antes de se aproximar da árvore, apoiando as costas contra o largo tronco e cruzando os braços sobre o peito. Por um momento, o olhar do witcher procura pelos olhos da filha, encontrando nas írises da mesma cor apenas uma genuína curiosidade.

— Significa que eu fui treinado para ficar entre os humanos e os monstros que surgiram após a Conjunção das Esferas. – o Lobo Branco responde sem quebrar o contato visual – Quando um monstro ameaça os humanos, eles me contratam para cuidar do problema para eles.

— Você mata todos os monstros? – Ileanna questiona.

— Não todos. – o witcher responde – Não mato os monstros que são sencientes, apenas quando realmente se tornam uma ameaça. E há monstros que nem mesmo os witchers se atrevem a enfrentar. – a explicação faz com que Geralt se lembre de um vampiro superior encontrado anos atrás e que, ao invés de uma ameaça, se tornou um importante e valioso amigo. Entretanto, outra lembrança também surge na mente do Lobo Branco – Você disse que tinha ouvido histórias sobre mim.

— E ouvi. – a jovem feiticeira responde pensando nas histórias contadas sob a luz da lua – Mas histórias são como rumores. Elas nunca mostram toda a verdade. – as palavras fazem com que o witcher pare por um momento e pense na conversa que terminou há apenas poucas horas. Ileanna contou uma história, então agora ela está reconhecendo que não contou toda a verdade? Antes que Geralt possa questionar, o olhar da feiticeira se volta para o horizonte pintado com o azul do mar – Eu me pergunto por que tenho o medalhão de um witcher.

— Você realmente não lembra? – Geralt questiona sentindo o coração contrair no peito.

— Não, eu só sei que é... Importante. – os dedos da feiticeira de olhos dourados se fecham com força sobre o medalhão no pescoço.

Foi um presente de Vesemir. É o que Geralt quer dizer. Para você lembrar de que sempre terá um lugar entre os witchers. Na ausência de uma resposta, a atenção de Ileanna se volta para o witcher, o olhar caindo para o medalhão carregado pelo Lobo Branco. Sem dizer uma palavra, a jovem feiticeira toca a cabeça de lobo, a sentindo tremer levemente entre os dedos. Geralt também sente os tremores do medalhão, mas permanece imóvel, permitindo que a filha faça o que quiser. A luz azulada retorna para a mão da jovem feiticeira, fazendo com que o medalhão seja dominado por tremores mais intensos, que fazem com que um suave sorriso nasça nos lábios vermelhos. Vendo Ileanna praticamente brincando com o medalhão faz com que um sorriso também apareça nos lábios do Lobo, junto com a preocupação nascida de tudo que foi dito.

— Você realmente não tem medo? – o witcher questiona sem pensar.

— De quê? – a jovem feiticeira pergunta, os dedos soltando o medalhão e o olhar buscando as írises com as quais compartilha a cor.

— De enfrentar Eredin novamente. – Geralt responde, o medo sentido deixando a voz mais alta e forte – Ele quase matou você.

— Por que eu o temeria? – Ileanna questiona, mas quando percebe a resposta nos olhos do witcher, uma breve risada escapa por entre os lábios vermelhos – Porque ele é o Rei da Caçada? – mesmo sentindo o embaraço pinicar a pele, Geralt assente – Vocês nesse mundo têm uma visão tão glorificada da Caçada Selvagem! Eles são soldados, são um exército como qualquer outro. E, como tal, podem ser derrotados.

Apesar do tom incrédulo e levemente zombeteiro que colore a voz da jovem feiticeira, Geralt sente a inquietação e o medo diminuírem e o coração acalmar no peito. Um sorriso nasce nos lábios do witcher e logo encontra reflexo nos lábios vermelhos. Apesar de tudo, Geralt sente a esperança nascer no coração.

Anos atrás

No jardim do Palácio da Lua, o rei dos Aen Elle caminha entre as belas e desabrochadas rosas, os dedos tocando as macias pétalas da flor colhida de modo distraído e suave. Os olhos da cor de chumbo derretido observam a jovem que caminha próxima aos limites do palácio, os passos inquietos e apressados, o cabelo acinzentado voando sob o sopro da brisa noturna. Ainda assim, o soberano não deixa de perceber a discreta chegada de uma jovem feiticeira, a postura altiva não se modificando, apenas a voz denunciando o reconhecimento:

— Minha rosa.

— Meu rei. – Ileanna responde fazendo uma breve mesura em meio ao vermelho das rosas.

— O que você acha da Andorinha, minha rosa? – Auberon questiona e, com a mão livre, indica que a jovem feiticeira se aproxime.

Ileanna obedece ao mudo pedido, cruzando o jardim até o ponto onde o rei permanece parado. As írises douradas observam a postura do soberano, percebendo as mudanças que apenas se intensificaram com o passar dos anos. Há uma sombra de cansaço envolvendo o Rei dos Amieiros, cujo peso parece somente aumentar a cada nova lua. Nem mesmo a chegada da herdeira de Lara Dorren se provou capaz de aliviar o poder que o cansaço exerce sobre o soberano. A jovem feiticeira para ao lado de Auberon, as írises douradas sendo dirigidas para a inquieta Andorinha.

— Zireael tem muito potencial, meu rei. – a feiticeira responde – Mas ela também tem muito a aprender. Muito a crescer e amadurecer.

Um fraco sorriso nasce nos lábios de Auberon com a resposta dada, o olhar da cor do chumbo derretido abandonando a Andorinha e se voltando para as rosas espalhadas pelo jardim. Só então as irises douradas da jovem feiticeira percebem a bela rosa que o soberano segura entre os dedos. Percebendo o caminho da atenção de Ileanna, o rei ergue a flor, a exibindo para o curioso olhar. Sem que o sorriso fraqueje, o rei dos Aen Elle encosta a rosa no rosto da feiticeira, as pétalas bagunçando levemente os longos fios negros.

— Essa é uma rosa das fronteiras. – o soberano diz, abaixando a flor até depositá-la nas mãos da jovem de olhos dourados – Há muitos tipos de rosas, Ileanna. – Auberon começa, os passos o levando de forma distraída pelo vermelho e o verde do jardim – Algumas rosas são plantadas, regadas e cuidadas com carinho e o calor do sol. Elas florescem e se tornam extremamente belas, capazes de hipnotizar e conquistar qualquer um cujo olhar caia sobre elas. Como Zireael. – as íris da cor de chumbo derretido são dirigidas para o dourado olhar – Outras, são forjadas. No aço e no fogo, na dor e nas lágrimas. É sangue que pinta as pétalas delas. Como as primeiras, elas crescem extremamente belas, mas também poderosas e indomáveis. Você, minha rosa, foi forjada. – o rei volta a se aproximar da feiticeira, os dedos tocando e erguendo o queixo fino – Eu a tirei do jardim no qual nasceu e pelo meu toque, pela minha proteção, pelas minhas ordens você foi forjada. Foi isso que eu vi na noite em que nos conhecemos, eu a vi como a rosa que se tornaria. Uma rosa forjada, minha rosa.

— Diferente de Zireael. – Ileanna diz em um sussurro, as írises douradas não conseguindo escapar do intenso olhar do soberano.

— Você é um farol, Ileanna. Não apenas para a Geada Branca. – Auberon diz, os dedos afastando o cabelo negro de perto dos olhos dourados – Você pode ser um farol para Zireal também. Você pode mostrar o caminho que ela tem que trilhar para se tornar a verdadeira herdeira de Lara. Seus poderes se complementam. – percebendo a surpresa que nasce nos olhos dourados, o soberano continua – Tente e veja, minha rosa. Independentemente de eu recuperar o que desejo de Zireael, o poder que ela carrega pode destruir um mundo. Se você não estiver lá para congelar as chamas.

— E se Zireael for embora? – a jovem feiticeira questiona.

— Você é o farol do meu sangue, minha rosa. Do poder de Lara. – Auberon responde sem se abalar – Esteja ele em Zireael ou em outra pessoa.

Sem mais nenhuma palavra, o Rei dos Amieiros caminha em direção ao interior do palácio, deixando a jovem feiticeira no jardim, a atenção dividida entre a rosa que segura e a inquieta Andorinha.

Presente

Um quarto em Kaer Trolde

O silêncio do aposento é quebrado apenas pelos lentos passos da jovem feiticeira. Sentindo o cansaço começar a atrair os primeiros toques do sono, Ileanna caminha até a cama, o colchão se tornando um apoio para que as botas possam ser retiradas. As luvas seguem o mesmo tratamento e a fria brisa que toca a pele desperta a lembrança de um caloroso toque. Por um momento, a jovem de olhos dourados deixa que a memória seja novamente experenciada, o eco da segurança e do calor passados pelo toque de Yennefer fazendo o coração tremer com o desejo de senti-lo novamente. As sensações experimentadas com o toque da feiticeira de olhos violetas foi semelhante àquelas sentidas na presença de Geralt. Segurança e calor. Proteção. Algo que, antes, foi sentido apenas na presença de um rei.

Afastando os pensamentos e as lembranças, a jovem feiticeira se coloca de pé, o frio do chão sob os pés descalços auxiliando na distração. Um alto crocitar captura a atenção de Ileanna, o olhar dourando procurando pela origem do som e encontrando um negro corvo empoleirado no parapeito da janela aberta. A visão faz com que um largo sorriso nasça nos lábios vermelhos, a feiticeira se aproximando rapidamente da bela ave. O corvo volta a crocitar, aparentemente satisfeito em ter sido reconhecido. Os dedos da jovem de olhos dourados logo se enrolam nas escuras penas, oferecendo um carinho que é imediatamente apreciado.

— Eu estou bem. Ele não precisa se preocupar. – Ileanna diz se ajoelhando em frente ao corvo, que crocita mais uma vez – Eu sei, eu também sinto falta deles. – as palavras fazem com que o sorriso nos lábios vermelhos perca um pouco a força – Vou voltar assim que puder. Eu tenho que terminar isso, tenho que colocar um fim no meu passado, encontrar um fechamento. – o corvo volta a crocitar – Diga a ele que eu encontrei o witcher do qual ele tanto falava. Isso deve ajudá-lo a relaxar.

A jovem feiticeira continua a acariciar o corvo, que aproveita o carinho oferecido em silêncio. Com a mão livre, Ileanna toca o medalhão na forma da cabeça de um lobo, a mente recordando o que foi dito pelo witcher. Talvez um witcher tenha me dado esse medalhão algum dia. Mas não importa. A vida que eu tinha antes da Caçada, a vida que comecei a ter depois que escapei de Eredin... Nada pode ser recuperado ou recomeçado até que eu quebre minha conexão com os cavaleiros vermelhos. Até que eu encontre um jeito de silenciar minhas lembranças. Até que eu diga adeus para minha vida com os Aen Elle.

O pensamento dói no coração da feiticeira com olhos de witcher.


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Notas finais do capítulo

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