Truque do Destino escrita por Akiel


Capítulo 4
IV - Aproximação




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/769504/chapter/4

IV – Aproximação

 

Ninguém sabe exatamente o que acontece com aqueles que são capturados pela Caçada Selvagem. Alguns dizem que eles são levados para mundos longínquos, onde se tornam escravos dos espectros dos Cavaleiros Vermelhos. Mesmo que o destino que o aguarda seja uma incógnita, a verdade é que qualquer um que caia nas garras da Caçada nunca mais é visto.

(Fragmento de um texto encontrado em uma vila congelada)

 

Anos atrás

 

Os primeiros raios de sol são derramados pela cidade, iluminando as casas e fazendo a água no rio brilhar com pequenos pontos, quase como se coberta por minúsculos diamantes. No palácio, o café da manhã é servido em uma mesa na varanda do primeiro andar, permitindo uma boa visão do nascer do dia. A luz do sol ilumina os pratos e copos, acordando as flores que decoram o jardim, mas termina capturada pelas írises douradas que observam o lento despertar do mundo. Com uma taça de suco na mão, Ileanna aguarda a chegada da convidada do rei, a mente repassando o breve encontro na noite anterior, a hesitante curiosidade presente nos olhos verdes. Quieta nos primeiros momentos da manhã, a jovem imagina o que a Andorinha decidiu durante a noite com o rei.

A solitária presença na varanda é a primeira a capturar a atenção da jovem que se aproxima pelo interior do palácio, um único guarda a fazendo companhia e a guiando pelo caminho. As palavras de Auberon ainda ecoam fracamente na mente de Ciri, as bolhas de sabão voando juntas, ilustrando um universo de mundos conectados. E um rei que deseja retomar o poder de caminhar entre eles, que a tratou com um respeito distante, típico dos elfos, pintando com uma camada de arrogância. Ainda assim, Ciri não consegue esquecer os olhos do Rei dos Amieiros, profundos e belos, carregados com uma sabedoria claramente adquirida durante séculos e uma confiança no sangue que Ciri carrega. O Sangue Antigo. Entretanto, quando os olhos verdes percebem Ileanna a aguardando na varanda, a mente da Andorinha é tomada pela curiosidade sentida com relação a outra jovem.

— Zireael. – ela diz como cumprimento, os lábios vermelhos se esticando em um sorriso – Sente-se. – Ileanna aponta para a cadeira oposta a que se encontra e o olhar dourado é dirigido para o guarda – Você está dispensado.

Ciri repara como o guarda faz uma reverência imediata, aceitando sem hesitação a ordem dada por uma humana e se retirando da varanda. Os olhos de witcher são dirigidos, então, para a jovem de olhos verdes. No olhar de Ileanna, a Andorinha encontra a mesma paciência e o mesmo divertimento da noite anterior. De alguma maneira, a calma de um simples café da manhã com Ileanna faz com que Ciri se sinta inquieta e fora do lugar. O olhar esverdeado é dirigido para a cidade além da varanda, onde a luz do sol continua a se espalhar, como um fogo sem chamas que abraça as casas e as ruas. Quando volta a atenção para a companheira, Ciri procura mais uma vez pelas semelhanças com Yennefer e Geralt que existem na jovem, mas apesar de encontrá-las, é o conjunto delas que captura o interesse da Andorinha.

Ileanna tem a beleza e a forte presença de Yennefer, mas a postura que exibe é mais suave e, ainda assim, mais intensa. A calma confiança na postura de Ileanna é como uma silenciosa ameaça, um desafio sem voz. É a certeza de alguém que conhece o próprio poder, os próprios limites e que não se esconde atrás de uma máscara ou de palavras maquiadas, mas também de alguém que sabe como jogar, sabe quando e o que falar e quando se calar. É uma postura sincera. Contudo, Ileanna também tem o olhar brilhante de poder de Geralt, o olhar de alguém que conhece a violência, que lutou em muitas batalhas, capaz de matar e de defender, de um witcher. Ileanna é uma mistura de Yennefer e Geralt, mas vai além, sendo não apenas uma mistura como também uma pessoa independente, com as próprias características, a própria personalidade, ainda escondida para Ciri atrás do olhar de divertimento e do sorriso paciente.

— Não irá comer, Zireael? – ela pergunta fazendo um movimento com a mão em direção à mesa decorada com sucos, frutas, bolos e pães – Deve estar com fome.

Ciri assente, deixando os pensamentos de lado e se concentrando na comida oferecida. Isso faz com que a Andorinha falhe em notar que, do mesmo jeito que analisa, também é analisada pela companheira. Para Ileanna, é claro que o caminho cruzado por Zireael foi um marcado por dificuldades e violência, a cicatriz marcando o rosto jovem e belo é apenas um lembrete desse mesmo caminho. Assim como o comportamento impetuoso e rebelde. Zireael conhece a violência, sabe o que é lutar para sobreviver, mas Ileanna também vê que a Andorinha não sabe o que realmente é lutar, por um motivo, por uma causa, por lealdade. Cirilla não é uma soldada, é apenas uma jovem que foi forçada a aprender o caminho da violência para sobreviver. E, talvez, Ileanna possa ensiná-la como mudar esse caminho e fazer jus ao sangue que Zireael carrega nas veias.

— O amanhecer chegou, Andorinha. – Ileanna diz capturando a atenção da mais nova – É a hora das suas perguntas, se ainda quiser fazê-las.

Por alguns segundos, Ciri permanece em silêncio, o café da manhã esquecido sobre a mesa e o olhar esmeralda fixo na face da mais velha. Há certa autoridade na voz da Ileanna, como uma permissão sendo dada, o que faz a Andorinha se lembrar da simplicidade com que o guarda foi dispensado e questionar exatamente quanto poder Ileanna possui nesse mundo.

— Quem você é realmente? – Ciri finalmente questiona, fazendo a companheira rir brevemente.

— Sou Ileanna. – uma pausa e um sorriso diante da exasperação nas írises verdes – Protegida do Rei Auberon, navegadora da Caçada Selvagem.

A surpresa é clara na face de Ciri, principalmente na citação dos Cavaleiros Vermelhos, mas é outro detalhe que realmente captura a atenção da jovem de cabelos acinzentados. O orgulho na voz de Ileanna, que é impossível de não se perceber. A Andorinha, então, se lembra do que foi dito na noite anterior, quando uma pergunta similar foi feita.

— Você disse que não é humana, mas é como eu. – a mais nova diz – O que quis dizer com isso?

— Sou um Truque do Destino, Zireael. – Ileanna responde, o olhar dourado sendo dirigido para o horizonte banhado pelo sol – Não sou humana, sou um ser que não deveria existir, o resultado de sangues que não deveriam ser misturados. – o orgulho deixa a voz da jovem, sendo substituído por um tom mais severo, quase ressentido. As írises de witcher são voltadas para a acompanhante – E, como você, fui trazida aqui por causa do meu sangue. – um sorriso volta a esticar os lábios vermelhos.

— Você foi trazida aqui pela Caçada Selvagem? – Ciri questiona, a lembrança de todas as histórias ouvidas sobre a caçada retornando à mente.

— Sim. Fui... Roubada por Eredin. – diante da confusão nos olhos de esmeralda, Ileanna continua – Eu nasci no seu mundo, Zireael, mas meu sangue, o poder que possuo por causa da mistura que o compõe, me fez valiosa para os Aen Elle. Por ordem do rei, Eredin me trouxe para esse mundo.

— Por que você não voltou? – Ciri questiona, a voz ecoando toda a confusão sentida e o próprio desejo de voltar para casa – Por que não fugiu?

— Seu mundo... O mundo em que nasci... – a mais velha começa lentamente, com uma seriedade até então ausente do olhar dourado – Eu não me recordo. Minha lembrança mais antiga é de ser levada para o rei por Avallac’h. Eu não tenho motivo para querer retornar para um mundo, para uma vida da qual não me recordo.

— Você não lembra? – Ciri pergunta, a compreensão começando para aparecer no olhar esverdeado – Por isso ficou?

— Auberon nunca mentiu para mim, Zireael. Eu sempre soube por que fui trazida para esse mundo. – por um momento, o olhar dourado se torna distante, como se perdido em uma memória – Mas qualquer lembrança que pudesse ter de minha vida no seu mundo foi perdida. Então, eu tinha uma escolha: lutar por uma vida da qual não me recordava ou aceitar estar aqui e fazer uma vida para mim nesse mundo.

— E você escolheu uma vida aqui. – há um eco de raiva e ressentimento na voz de Ciri, uma descrença da escolha feita pela mais velha.

— Você tem suas lembranças, Andorinha. E são elas que a fazem desejar retornar. Eu não tinha nada, além um rei que me oferecia proteção e educação por causa do meu sangue. Então, sim, eu escolhi ficar, eu escolhi o destino que o rei queria para mim. E, no final, eu o transformei. – percebendo a curiosidade no olhar de Ciri, Ileanna continua – Eu deveria ser uma arma, Zireael. Meu sangue me faz sensível a magia e essa sensibilidade me deu uma capacidade que era desejada. Por ordens do rei, eu fui educada e treinada para ser a melhor arma que eu poderia ser. Mas eu me tornei mais. – o orgulho retorna às palavras de Ileanna – Eu me tornei uma soldada, uma navegadora, uma feiticeira. Eu ganhei a confiança e o respeito do meu rei, provei que merecia a proteção que me era dada. Ganhei o respeito dos Aen Elle, da Caçada Selvagem. Eu me tornei mais do que o meu sangue, mais do que um Truque do Destino.

Por longos minutos, as duas jovens permanecem em silêncio. Ciri sente o coração batendo acelerado no peito, impulsionado pela força e pelo orgulho na voz de Ileanna. E, sem perceber, a jovem de cabelos acinzentados sente vontade de ser mais também, de ter o poder sentido na presença e nas palavras da mais velha, o respeito para comandar. O desejo de Ciri não passa despercebido pelos olhos dourados.

— Você acredita que conseguiria ser mais, Zireael? – Ileanna questiona e, dessa vez, o desafio é claro no olhar e na voz da jovem feiticeira – Mais do que a herdeira de Lara Dorren? Mais do que a Criança de Sangue Antigo? Mais do que um caminho para recuperar o gene de Lara? Você acredita que conseguiria pagar o preço para ser mais? – a jovem de olhos dourados faz uma pausa, observando a confusão e a raiva que nascem nos olhos verdes da Andorinha – O que você deseja ser, Zireael? Que caminho quer seguir?

Ciri quer responde, o desejo queima na garganta, mas as palavras permanecem trancadas, perdidas na confusão sentida. Cada pergunta feita pela feiticeira faz o coração da jovem de olhos verdes bater mais forte, procurando por uma resposta que parece fora de alcance. Depois de tanto tempo agindo de acordo com as situações, se adaptando às mudanças do caminho, Ciri não consegue identificar em si o que deseja ser. As memórias da avó a ensinando como ser uma princesa, das lições com Geralt em Kaer Morhen e das aventuras com os Ratos passam pela mente de Ciri como um furacão, quebradas e misturadas. Somente quando sente um toque suave no rosto, a mais nova percebe que Ileanna se levantou da mesa, estando agachada ao lado de Ciri, os dedos contornando a face marcada pela cicatriz com delicadeza.

— Você ainda tem muito para crescer, Andorinha. – a feiticeira diz em um tom de voz somente um pouco mais alto do que um sussurro – Mas você pode escolher o seu próprio caminho, se lembrar de permanecer verdadeira ao que deseja.

Sem pensar, Ciri toca o punho de Ileanna, mas ainda permitindo o toque da jovem feiticeira. Os olhos da cor de esmeraldas procuram pelas írises douradas, encontrando-as como uma vitral de calma e paciência, de força e determinação. Ainda se sentindo perdida nas próprias lembranças e no próprio desejo, Ciri sente somente que quer ser forte e decidida como Ileanna, quer experimentar o orgulho que a jovem feiticeira carrega com relação as próprias conquistas. Antes que outra palavra possa ser dita, uma voz distinta quebra o silêncio, alta e imponente:

— Ileanna.

A jovem feiticeira se levanta, afastando a mão do rosto de Ciri e se virando para o recém-chegado, um sorriso nos lábios vermelhos.

— Avallac’h.

— Auberon solicita a sua presença. – o Aen Elle diz – Ele está nos jardins inferiores.

Ileanna assente e então se vira para Ciri, beijando a testa da Andorinha antes de se afastar, caminhando em direção aos jardins do palácio. As írises verdes acompanham o afastar da jovem feiticeira, a mente tentando organizar a conversa tida e encontrar um modo de definir a bela de olhos de witcher.

— Ela é... – Ciri diz sem perceber – Ela é...

— Ela é a Rosa de Auberon. – Avallac’h completa com simplicidade, atraindo a surpresa atenção dos olhos de esmeralda.

 

Novigrad

Não pela primeira vez na longa amizade que compartilham, Geralt deseja poder socar Dandelion pela incapacidade do bardo de se manter longe de alguma confusão. O witcher passeia por toda Novigrad buscando pistas sobre o paradeiro do amigo nos relatos de antigas conquistas, não deixando de se surpreender como, apesar da raiva causada, Dandelion consegue continuar como um objeto de desejo para as ex-amantes. Finalmente, Geralt consegue uma pista sobre o bardo na forma de uma aparente nova conquista, uma que, por sorte, Zoltan conhece. Então não demora para o Lobo Branco se encontre no Rei Pescador, esperando a apresentação de Priscilla começar.

Os primeiros versos soam belos para o witcher, semelhantes a poesia preferida por Dandelion, mas logo a música revela que há uma história por trás de seus versos, uma que Geralt não demora para reconhecer. A voz de Priscilla, suave e carregada de emoção, transporta a mente do Lobo para as lembranças de intensos olhos violetas e de longos cabelos negros e ondulados, de olhares trocados em meio às sombras, de toques oferecidos e retribuídos, de um amor feito com fogo, como uma tempestade incapaz de ser contida. O witcher se recorda de dias pacíficos, vazios de brigas e discussões, mas a mente também tem a memória dos embates, do choque de ambos, da dança da distância e da reaproximação. Mas uma lembrança se destaca na mente do Lobo Branco.

Yennefer de pé, poderosa e bela como sempre, na porta de uma estalagem no Pomar Branco. Vê-la após dois anos foi como acordar de um sonho para o witcher, como se todas as peças recuperadas junto com a memória finalmente se encaixassem e encontrassem significado. Geralt se recorda do desejo de abraçar e beijar a bela feiticeira, de matar a saudade que agora renasce com a música de Priscilla. Por um intenso momento, o witcher sente o desejo de zarpar para Skellige de uma vez, não por Ciri ou Ileanna, mas por Yennefer, para vê-la novamente e relembrar a maciez dos cachos negros, da pele branca, o perfume de lilás e groselha que está tatuado na mente e nos sonhos de Geralt. E então a voz da trovadora desperta outra lembrança, de um desejo feito sem pensar, no calor de uma luta contra um djinn. Por mais que procure, o witcher não consegue encontrar o menor traço de arrependimento ligado ao desejo feito tanto tempo atrás, apenas a vontade de realizá-lo mais uma vez, de ter Yennefer novamente.

Sorrindo ao final da música, Geralt não hesita em levantar e bater palmas para a talentosa trovadora, o eco das emoções evocadas pelos versos ainda pulsando nas veias do witcher. A apreciação é bruscamente interrompida pelas acusações da senhora do Pomar Branco, o Lobo se lembra dela, mas Priscilla é habilidosa o suficiente para dispersar a situação e levá-lo para um canto privado para conversarem. Conversando com a trovadora, Geralt pode perceber como a beleza, a inteligência e o talento de Priscilla podem ter conquistado o interesse de Dandelion. Mas o witcher também descobre que a confusão em que o amigo, e Ciri, se meteram é mais complexa do que ele incialmente pensara.

Seria uma boa mudança se por uma única vez o witcher não tivesse que correr ao socorro de Dandelion. Entretanto, Geralt reconhece que, se não fosse pelas ideias absurdas e impulsivas do amigo, talvez não tivesse seu caminho cruzado com o de uma bela feiticeira com perfume de lilás e groselha.

Skellige

— Isso é inadmissível! – o druida diz com um tom de voz alto e colorido com reprovação.

Inadmissível é eu ter que pedir permissão a você. A feiticeira morde a língua para não dar voz ao pensamento, a atitude de Arminho fazendo mais do que o suficiente para testar a paciência de Yennefer. O olhar violeta se volta para o local da cataclisma, a pele se arrepiando com a energia que ainda emana do lugar. Os olhos atentos da feiticeira percebem a presença de um negro cavalo em meio às árvores destruídas sendo conduzido pelas rédeas por uma jovem vestindo um escuro capuz. Apesar da presença do animal, a jovem o conduz a pé, os passos lentos e calculados, em uma clara exploração do lugar. Ignorando a voz de Arminho, Yennefer sente o coração batendo mais forte com a perspectiva de que a jovem em meio à destruição possa ser Ileanna.

— Parece que você dá sua permissão a outros, Arminho. – a feiticeira diz em um tom de provocativo deboche, o olhar se voltando para o líder dos druidas. Para a surpresa de Yennefer, o olhar do druida treme com hesitação.

— Ela é diferente. – Arminho responde, a voz perdendo um pouco do tom autoritário e severo – Eu não me atreveria a ir contra um espectro da Caçada Selvagem.

— É isso que ela é? – Yennefer questiona com um sorriso – Crach me contou que ela é uma feiticeira.

— Ela é um fantasma. – o druida rebate com determinação – Eu não confio nela e, por mim, não permitiria nem a você nem a ela a explorar essas terras. Mas ela se move por essa ilha como se não houvessem barreiras ou costumes a serem respeitados. Minha palavra não vale nada para ela.

— Nem mesmo o seu poder? – a feiticeira pergunta, sentindo uma leve satisfação ao perceber como Ileanna desafia Arminho sem preocupação. Entretanto, os olhos violentas percebem a fraca sombra de medo que passa pelo olhar do velho druida – Você não a enfrentou. Você a teme.

— Ela não é desse mundo, Yennefer. – Arminho diz voltando o olhar para a jovem que caminha em meio ao local do cataclisma, a voz adquirindo um tom de preocupada seriedade – Converse com ela e você verá. Há algo nela, algo que definitivamente se assemelha aos espectros da Caçada Selvagem.

Sem dizer mais nada, a feiticeira volta a atenção para a jovem encapuzada, a mente se recordando da conversa tida com Crach na noite anterior. O guerreiro também expressou sentir uma sensação de perigo e ameaça de Ileanna. E agora, Arminho a compara com a Caçada Selvagem com mais certeza do que os rumores citados por Crach. Por um momento, Yennefer se recorda de uma menina que prestava mais atenção em witchers treinando com espadas do que em lições sobre magia. A jovem se movimenta, se colocando de costas para os observadores, e a feiticeira percebe a espada que é carregada sobre o manto do capuz. Ela aprendeu a usar a espada. Mas não é essa a lição que preocupada Yennefer, é tudo o mais que a Caçada possa ter ensinado para Ileanna.

Enquanto isso, em meio a destruição do cataclisma, a jovem feiticeira caminha sem preocupação para com os olhares que recebe ou para a reprovação que pode sentir emanando dos druidas. Segurando a bela égua cedida por Crach an Craite pelas rédeas enroladas na mão direita, Ileanna segue a trilha deixada pela explosão do poder do Ciri. Entretanto, misturado ao eco do poder de Zireael, a feiticeira de olhos dourados encontra o eco de outras energias, também conhecidas. Eredin encontrou você, Zireael, mas você escapou. O pensamento acompanha a busca pela energia misturada a de Ciri, mas mais fraca, com um eco distorcido. A jovem feiticeira para ao encontrar o ponto onde a energia deformada é mais forte e o reconhecimento é imediato, fazendo com que um profundo suspiro escape por entre os lábios vermelhos. De todas as pessoas para te acompanhar, você tinha que escolher Avallac’h, Zireael?

Respirando fundo, Ileanna se volta para a própria égua, a mão livre oferecendo um carinho suave sobre a cabeça do animal. O motivo por trás do pedido por uma montaria foi a saudade sentida de cavalgar, não somente sobre a grama ou a terra, mas também no caminho dos mundos. Pular de um lugar para outro, mundos diversos, sozinha, sem a violência e os gritos que sempre acompanham a cavalgada da Caçada Selvagem. Mas já faz muito tempo desde que a jovem feiticeira esteve no caminho dos mundos, que visitou outros mundos. Por anos, esse mundo simples tem sido um lar, um esconderijo para ficar longe dos Cavaleiros Vermelhos. Entretanto, a brincadeira de esconder chegou a um fim, as memórias se tornaram fortes demais e o retorno de Zireael foi como um chamado para que a fuga terminasse. E o enfrentamento começasse.

— Eles me temem aqui. – Ileanna sussurra para a negra égua – Eles veem o que eu era, o que eu fui treinada para ser. – um sorriso começa a se desenhar nos lábios vermelhos – O que eu sou. Mas eles também duvidam, especulam. Então que tal mostrarmos um pouco da verdade para eles, para que possam parar de fazer suposições? – a égua relincha, uma das patas batendo contra a terra – Não tema, eu prometo que não irei te machucar.

Ileanna monta na negra égua e o medalhão na forma da cabeça de um lobo brilha levemente, com uma luz azul que encontra reflexo nas mãos da feiticeira, espalmadas no tronco do animal. A égua relincha, inquieta, os olhos ganhando o mesmo brilho do medalhão. Voltando as mãos para as rédeas, a jovem feiticeira deixa que o sorriso nos lábios aumente, o olhar dourado mirando o grupo de druidas que permanece nos limites da marca do cataclisma. Começando a cavalgar, Ileanna ganha velocidade a cada metro ultrapassado, chegando como um fantasma no ponto onde Arminho, Yennefer e os outros druidas se encontram. A jovem feiticeira passa por todos sem diminuir a velocidade, logo sumindo em meio às árvores. Ao se recuperem do susto da súbita aparição da égua e de sua cavaleira, os druidas murmuram reprovações, mas Arminho permanece silencioso, o olhar preso na trilha deixada por Ileanna. Seguindo o olhar do druida, Yennefer percebe que as pegadas deixadas pela égua estão congeladas.

Caçada Selvagem. – Arminho diz olhando nos olhos da feiticeira.

Yennefer não responde.

Novigrad

Uma coisa que Geralt nunca pensou que faria um dia é roubar um prisioneiro da Guarda do Templo e, ainda assim, é exatamente isso o que o witcher está fazendo. Ou tentando. Um dos guardas pegou Dandelion e o levou para longe da luta, mas na pressa acabou por deixar um rastro claro para Geralt seguir. E um guarda não é, nem de longe, páreo para um witcher. Já ouvir Dandelion reclamar e afirmar que estava com a situação sob controle é a recompensa com que Geralt está acostumado. O Lobo Branco leva o amigo até a varanda da casa onde estava sendo mantido preso para que possam conversar e Dandelion possa contar exatamente o que aconteceu com Ciri.

Após o relato do bardo, Geralt conclui que não há nada mais de Ciri em Novigrad, o único caminho restante sendo Skellige. O mesmo apontado pelo sonho com Ileanna. Um discreto suspiro escapa por entre os lábios do witcher, que questiona se as ilhas contêm as respostas sobre o paradeiro de suas duas filhas. Ao menos Dandelion pode elucidar um pouco sobre o que Ciri fazia na Cidade Livre, embora a busca pela cura de uma maldição coloque mais perguntas na mesa do que responda. A distração do Lobo Branco não passa despercebida pelos olhos azuis que observam o amigo com intensa atenção.

— Tem algo mais, não tem, Geralt? – Dandelion questiona – Eu te conheço.

— Ciri pode ter passado por Skellige também. – o witcher responde – Yennefer está lá e eu vou pegar um navio para me encontrar com ela assim que voltarmos para a cidade. – Geralt faz uma pausa, percebendo no olhar do bardo que o amigo aguarda pela real resposta da pergunta feita – Tem alguém mais que pode ter passado por Skellige.

— Quem? – Dandelion questiona focando toda a atenção no amigo.

— Ileanna. – o nome deixa os lábios do witcher e é como um soco tivesse sido desferido contra o poeta.

Ileanna?! Você tem certeza? – o bardo questiona, a surpresa e a incredulidade claras na voz que beira o histerismo – Mas, Geralt, já faz... 16 anos? – Dandelion respira fundo e relaxa sobre o banco onde está sentado, a surpresa ainda desenhada na face – Já faz tanto tempo assim, Geralt? 16 anos?

— Sim, Dandelion. – o witcher responde, com um aceno afirmativo da cabeça, o coração pesado com todos os anos passados – E eu tenho certeza de que é ela.

— Yennefer sabe? – o poeta questiona.

— Não. Vou conversar com ela quando estiver em Skellige.

— Eu espero que seja mesmo ela. – Dandelion diz em um tom de voz mais calmo e suave, após um momento de silêncio, os olhos azuis se focando de modo determinado nas írises douradas – Espero que as encontre, Geralt. Ileanna e Ciri.

O witcher apenas assente, notando a aproximação de Priscilla e Zoltan. O Lobo Branco não se atreve a protestar contra a reivindicação de Priscilla sobre o bardo, um pequeno sorriso nascendo nos lábios de Geralt ao perceber o quanto a trovadora se importa com Dandelion. O witcher apenas espera que o amigo perceba a sorte que tem. Respirando fundo, Geralt se afasta da casa, indo em direção à Plotka, deixada próxima a algumas árvores, a mente focada no próximo passo, na última direção.

Skellige.

Skellige

Nos estábulos da Kaer Trolde, uma jovem feiticeira se encontra cuidando de uma negra égua sob o atento olhar de intensas írises violetas. Apoiada no tronco de uma árvore, Yennefer observa o modo cuidadoso como Ileanna cuida da bela égua, parecendo completamente absorta na tarefa e ignorando todo movimento ao redor. A poderosa feiticeira dá um passo a frente, o coração batendo forte no peito em um misto de curiosidade e um desejo de reencontro há muito tempo mantido guardado. Mas mesmo nessa mistura, há a sombra do medo. Temor de ver exatamente o que Crach e Arminho viram na jovem feiticeira, perigo e ameaça. A marca da Caçada Selvagem.

Quando Yennefer dá o próximo passo, Ileanna vira o rosto, atraída pelo som do salto contra a pedra. E a respiração da feiticeira de olhos violetas para um momento. Na face jovem e bela, Yennefer vê os olhos de Geralt, dourados e intensos, com pupilas verticais. Olhos que a observam com uma calma curiosidade. Embora a mente guarde a lembrança desses mesmos olhos, mais novos e inocentes, a feiticeira não pensou que, ao crescer, eles se tornariam tão parecidos com os do pai. O olhar violeta também percebe a cicatriz que marca a lateral esquerda do rosto de Ileanna, o coração sentindo o desejo de saber como o ferimento ocorreu queimando no peito. Um sorriso nasce nos lábios vermelhos e Yennefer sente a respiração retomar o ritmo.

— Senhora Yennefer, certo? – a feiticeira mais nova questiona se aproximando e fazendo uma curta mesura – É um prazer conhecê-la. Zireael falou muito bem da senhora.  

Dessa vez, o coração de Yennefer falha uma batida, a mente correndo para compreender o que está acontecendo, o que as palavras da jovem feiticeira estão mostrando.

Ileanna não se lembra.

Na praia de Ard Skellig

Ele pode sentir a neve no chão, os pés afundando a cada passo cambaleante, a armadura pesando no corpo ferido. Ao redor, o barulho dos soldados se aproximando ecoa na imensidão branca tomada pela nevasca. Um passo mal calculado faz com que ele caia sobre a neve, os braços e as pernas afundando no tapete branco. Ele olha para o chão e tudo que vê é a neve vermelha com o próprio sangue. O corpo dói, sangrando através da armadura quebrada. Ele pode sentir os cortes, os hematomas e até mesmo alguns ossos quebrados. Uma mão agressiva o agarra pelo cabelo, o forçando a arquear o pescoço para trás. Ele sente a energia correr pelo corpo e então explodir, afastando o dono da mão. Ele tenta se erguer, se arrastando pela neve, mas então a sombra de uma lâmina passa rápida demais para ser defendida, o atingindo e o jogando de volta no chão. Ele sente o corte feito, a bochecha e o pescoço ardendo com o sangue que escapa sem controle, deixando o gosto metálico na boca.

— Você vai morrer, traidora. – uma voz grave, familiar, diz.

— Mas não aos seus pés. – ele sussurra, se colocando de pé e reunindo as últimas forças para abrir um portal.

Ele pula e tudo se torna escuridão.

Geralt acorda com a sensação de estar afogando, a força com que retorna à consciência fazendo com que um homem que tentava roubar o medalhão do witcher se afaste imediatamente. Ainda sentindo a dor do sonho ecoando no corpo, Geralt volta o olhar para o horizonte, onde o mar se movimenta lentamente em meio aos destroços do naufrágio. Não há neve ou soldados o perseguindo. E ele não é um feiticeiro para ser capaz de abrir um portal. O sonho poderia ser sobre Ileanna? Sobre a Caçada indo atrás dela? O witcher sente que é essa a verdade. A voz no sonho, dizendo “traidora”, o witcher já ouviu aquela voz. Eredin. O rei da Caçada perseguiu Ileanna e quase a matou. Ela fugiu por um portal. Para onde? Respirando fundo, Geralt se coloca de pé e olha ao redor. O witcher conseguiu chegar até Skellige.

Agora, ele tem que encontrar Yennefer.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Por favor, deixem comentários. Críticas e sugestões são sempre bem vindas.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Truque do Destino" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.