Nada em mim sou eu escrita por Unknown


Capítulo 6
Capítulo 6 - Insônia




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Eu não durmo.

Não, não estou falando de noites mal dormidas, de pesadelos, de acordar e me revirar o tempo inteiro. Não estou falando de virar uma noite ou duas para estudar pros testes finais. Muito menos falo de demorar três horas para pegar no sono e acordar duas antes do necessário.

Quando digo que não durmo, quero dizer que não durmo.

Sinto cada respiração minha, escuto cada batimento do meu coração. E meus dedos inquietos tamborilam ao ritmo dos segundos. Cada dia meu dura três porque não consigo pregar os olhos, não consigo parar essa mente, não consigo abandonar minhas pequenas obsessões. E você deve se perguntar como ainda não morri, como ainda não entrei num surto paranoico que me prende a uma camisa de força.

A resposta é: acho que estou perto, porque o colapso já veio.

Veio quando comecei a ter esses apagões sem aviso prévio. Quando comecei a vomitar horrores desse líquido ácido e viscoso. Quando começaram as crises de pânico que me fazem correr feito alucinada pelos corredores do colégio. Quando os objetos cortantes se tornaram muito mais interessantes fincados na minha pele.

E ninguém entende quando digo que estou ansiosa, quando digo que não consigo parar. Sempre me perguntam o motivo. Afinal, o que tão importante vai acontecer para me deixar tão inquieta?

E eu não sei o que dizer porque não é nada tão específico, não é nada tão humano. Não sei como dizer que estou incansavelmente esperando por algo que não vai vir, enlouquecendo aos poucos, sentindo uma espécie de saudade doentia de tudo que ainda não toquei. Surtando com cada perturbação no meu sistema milimetricamente planejado e executado, chorando porque uma caneta caiu no chão, gritando porque minha camiseta rasgou.

Até que me veio ele para propagar a entropia no sistema.

Ele, que é a definição de desordem energética.

Ele, com seu charme diabólico e sua sagacidade macabra.

Ele, que chegou feito furacão.

Veio para me fazer sentir alguma coisa. Talvez seja um presentinho de Deus para alguém que já não sente nem a própria vida.

Mas ele me dá tanto ódio, tanto nojo, tanta repulsa. Ele com seus olhos céticos, com sua frieza, com sua falta de humanidade. Ele com sua inteligência sagaz e distante, com seu rosto lindo e o seu enorme foda-se. Eu o odeio mais que tudo e queria poder odiá-lo ainda mais. Queria poder enterrar meu punho nesse seu meio sorriso encantador, queria poder partir esses ossos protuberantes um a um.

Queria poder assistir a vida deixando os seus olhos.

Mas o patife consumado fez com que eu me apaixonasse por ele. E eu o odeio ainda mais por isso. Ele acha que pode me conter com sentimentos?

E estou há tempo demais sem dormir para controlar minhas emoções ou meus impulsos. Me falta sanidade para decidir se isso é a boa ideia ou não. Só vou parar para refletir quando a tesoura está enterrada em seu pescoço e o sangue vivo jorra como numa fonte. E seus olhos esbugalhados nunca foram tão lindos, suas mãos nunca se agarraram em mim tão desesperadamente. 

Deus, eu o amo tanto.

Amo aquele sorriso seu que agora está manchado de sangue. Amo aquele seu cabelo sedoso que agora está viscoso com o sangue no chão. Amo aquele seu olhar castanho e eloquente que agora olha sem vida para o nada acima de nós.

Eu o amo. E agora ele está morto.

Seu sangue mancha minhas mãos, minhas roupas, minha pele.

Acho que estou com muito sono.

Tenho inveja dele, que agora dorme para sempre.

Tudo bem, talvez essa noite eu durma um pouco. Uma paz mórbida está me tomando aos poucos. Meus membros estão dormentes e eu ainda estou em cima de seu cadáver quentinho. Logo ele vai ficar rijo e frio como pedra, mas deitar aqui é tão confortável...

Talvez meu sono custe um pouco de sangue.

Acho que vou apenas fechar os olhos.

Acho que vou apenas dormir.

Acho que vou apenas descansar.

Acho que vou apenas morrer.


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