Nada em mim sou eu escrita por Unknown
Olhou pela janela, para a janela. Nela pintava-se o quadro brilhante daquela cidade amena.
Onde o clima não era nem quente nem frio.
Onde as pessoas não eram boas nem más.
Onde a comida e a música não eram nem boas nem ruins.
Onde apenas ela não existia.
Sorriu melancólica. No celular, nenhuma notificação. E se tivesse, ela ignoraria. Porque estava cansada de mídias sociais com falsa ideia de intimidade. Estava cansada de curtir fotos no Instagram e de assistir coisas no Youtube.
Porque todas essas coisas, essa pequena vida virtual que construímos, tem o efeito de um sedativo. Nós sabemos disso, mas ignoramos. Porque é insuportável estar acordado, queremos estar sedados.
Qualquer tipo de remédio ou droga nunca tivera muito efeito nela.
A menina que não existe levantou-se de sua cama, apagou as luzes e ligou sua luminária de árvore. Carregou seu teclado até a cama e o ligou. Sentou na superfície familiar de seu lençol. Geralmente, esse ambiente a reconforta. Mas não hoje, porque hoje não é um dia para se estar bem.
O sino da igreja toca e agora são nove horas. Nove batidas e uma musiquinha agradável.
Logo então, as notas escorrem de seus dedos para as teclas brancas e pretas. Ela não toca muito bem, mas consegue tirar uma melodia ou outra.
Não percebe quando começam a cair gotas em seu lençol e suas pernas.
Porque chorar também não dói mais. Pessoas que não existem não tem sentimentos.
A melodia que sai do teclado é monocromática. Chopin em toda sua glória e depressão. Ela sente como se a energia fosse se esvaindo de seu corpo a medida que toca uma de suas norturnes. Ela sente que é fina como areia, leve como o ar.
Parece que está realmente sozinha.
É em dias como esse, sem o efeito dos sedativos e de sentimentos feitos por pílulas que ela sente o coração pesado de todas as verdades do mundo. A garota sabe que está sozinha, e sabe que um dia tudo isso vai acabar.
Ela abraça a melancolia e sabe que isso faz mal. Mas é tão, tão confortável. Dá um morno no peito, um sentimento nostálgico.
Volta à janela e tudo são luzes borradas para os seus olhos míopes chorosos. Seu cabelo é castanho e louro, e sua pele é dourada e seus olhos são grandes e o nariz pequeno e o rosto agradavelmente redondo. Mas nada disso importa, sua beleza fútil não importa, porque ela está sozinha e sua imagem se mistura com a escuridão.
Ela é verdadeiramente sozinha e gosta disso.
Ela tem que parar de carregar esse coração dilacerado numa bandeja, tem que parar de deixar que todo mundo plante sentimentos nele e depois os arranque com a raiz e tudo. Porque a menina que não existe já está acabada. Tem que aprender a não apenas gostar de estar sozinha, mas a amar tanto que guarde esse coração molenga dentro de um cofre de aço.
Poderia se jogar do décimo andar agora, não é difícil, não precisa de muito. Tudo que leva é a ação de ficar em pé na cama, sentar na janela e dar uma leve inclinada para frente. Pronto: só precisa de alguns segundos para terminar com toda uma história, um futuro e um passado. Só precisa disso para levar sua mãe aos prantos e seus amigos à culpa.
Mas não vai ajudar, não vai resolver seus problemas.
Porque Deus não vai salvá-la. Não agora, não depois de tudo.
Não depois de todos os seus pecados.
Não depois de ela acabar.
Era uma vez, em uma terra distante, uma garotinha que bebia o dia todo. Era uma vez, em uma terra distante, uma garotinha que chorava o dia todo. Se dopava até a dor ir embora. Tudo bem, todo mundo fica chapado às vezes. Tudo bem, todo mundo quer morrer pelo menos uma vez por dia.
Tudo bem, você nem existe mesmo.
Você é esse resto de pessoa, essa coisa caótica e perdida e pequena no meio dessa cidade onde apenas você não existe.
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