Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 20
O aniversário




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O Aniversário

O som abafado dos passos dos servos nos corredores fez com que Perséfone acordasse cedo. Sonolenta e preguiçosa, sentou-se na cama, sentindo um arrepio quando os pés tocaram o chão frio de mármore. A luz do luar iluminava parcialmente o quarto e a lareira, quase apagada, ainda aquecia o cômodo.

Ela chegou a tomar um banho, colocando uma muda de roupa limpa e fresca. Embora o corpo realizasse os hábitos adquiridos com a nova rotina no Submundo, a mente permanecia distante, vagando para o jantar da noite anterior.

Sentia-se estranha, mas de um jeito bom. Quando fechava os olhos, conseguia lembrar com detalhes do calor do toque de Hades, de sua voz melodiosa, dos orbes ônix profundos e, principalmente, da sensação quente que sentia a cada troca de olhares.

Confusa – essa era a palavra perfeita para descrever seu estado. Eram muitas sensações, muita informação para alguém tão jovem e inexperiente.

Claro que já havia recebido propostas de cortejo e até mesmo casamento, em um passado que agora parecia longínquo. Por mais que negasse, era dona de uma aparência rara. A pele bronzeada brilhava na luz do sol e os cachos que pendiam do alto da cabeça eram excepcionalmente adoráveis. Perséfone cresceu em um ambiente cercado por uma tensão madura. À medida que seu corpo desenvolvia e criava curvas magníficas, os deuses – até mesmo os comprometidos – voltaram seus olhos para aquela beleza tão pura e angelical. Ela não era como Afrodite ou Hécate, que tinham nas feições uma ligeira malícia.

Não. Seu jeito simples que deleitava os olhos masculinos. 

Apesar das propostas e tentativas de cortejo por parte dos rapazes – algo que Deméter simplesmente abominava, afinal, era completamente a favor da castidade –, Perséfone não sentia nada.  Havia apenas a consternação, nada a mais. Nunca sentira a sensação das mãos trêmulas, do coração pulsante, ou qualquer outro clichê clássico da literatura. Não havia uma emoção ou energia que a movia.

Mas ontem foi diferente.

Lembrar das palavras do deus dos mortos, tão sinceras e diretas, fez com que um arrepio questionável percorresse seu corpo. Não conseguia ser indiferente a ele. Hades não era como os outros. Não havia malícia em seus olhos, muito menos segundas intensões; apenas uma profunda admiração e respeito.

Era encantador. E aqueles olhos escuros sempre a deixavam sem fôlego.

Uma euforia quase incontrolável nasceu em seu âmago. Perséfone não conseguia identificar ou nomear aquilo, mas sabia que era uma sensação boa, como se ela flutuasse e estivesse em órbita.

Não havia como negar: Hades causava coisas nela.

Coisas que adoraria ignorar.

Coisas que a assustavam.

Ainda cheia de pensamentos, inspirou o ar, dando uma última olhada no espelho do tocador. Desta vez, mesmo com o frio, armou os cachos em um penteado ornamentado e muito bem-feito no alto da cabeça. O vestido branco escorria lindamente até os calcanhares, marcando a cintura e, nos ombros, o xaile colorido pesava, protegendo-a do frio do Submundo. O rosto, como sempre, estava livre de qualquer vestígio de maquiagem. Não gostava e era desnecessário. Os cílios grossos emolduravam os lindos orbes verdes e a boca era naturalmente rosada.

Encarou-se, por um breve momento, uma sensação de insegurança formando em algum local do subconsciente.

Queria sentir-se bonita.

E, de alguma forma, queria que ele a considerasse bonita.

Sacudiu a cabeça, na tentativa de afastar os pensamentos para longe e, mais cedo que o habitual, retirou-se do imenso quarto, começando uma lenta caminhada pelo corredor. As cortinas estavam abertas, revelando o lindo céu, e ela aproveitou aquele pequeno tempo para admirar os pequenos detalhes do castelo. Tudo era lustroso e lindamente polido. Não havia uma poeira sequer nos móveis ou nos carpetes. Percebera que os servos realmente eram bons no que faziam.

Na sala de jantar, tudo estava normal. Havia um banquete delicioso sobre a mesa, e o aroma de tortinhas e café preenchia o cômodo de forma que fez com que seu estômago soltasse um barulho desvergonhado. Todas as velas e castiçais estavam acesos, iluminando bem o ambiente e a face de Hécate, que, assentada a uma das cadeiras, lia um livro enorme, segurando, com uma das mãos, um garfo que continha um pedaço de presunto.

Perséfone fez careta, lembrando-se da última vez que tivera um momento a sós com Hécate. As coisas acabaram saindo do controle no dia, meio que por culpa da própria Hécate, mas daria o braço a torcer dessa vez. Afinal, no dia em questão, a feiticeira havia tido uma discussão com Hades, ou assim Perséfone achava.

Sentou-se em uma das cadeiras. A outra parecia tão imersa na leitura que sequer levantou o olhar.

Ou só estava a ignorando – como sempre.

Suspirou, serviu-se com um pouco de bolo, encheu uma xícara com café e resolveu quebrar o silencio gélido.

— Bom dia, Hécate.

Orbes olivas e ametistas se cruzaram. Perséfone esperava ser completamente ignorada, mas não foi isso que ocorreu. Apesar da descrença na voz, houve uma resposta.

— Bom dia.

Já era algo.

Meio incerta, perguntou-se se valia a pena continuar a conversa.

Não faria mal a ninguém. Afinal, o máximo que receberia seria uma patada.

— Acordou cedo, hoje. — olhou os arredores. Não havia sinal de vida por perto.  

— Sempre acordo cedo, antes de todos. — deu de ombros, retornando o olhar para o grosso exemplar. — Você que sempre se atrasa.

Aquela era a deixa para finalizar a conversa. Felizmente, antes que Perséfone pudesse retrucar, Nyx e os dois filhos irromperam pela porta.

— Bom dia a todos! — disse, sorrindo enormemente e lançando olhadelas cheias de significado a deusa menor. — Ah, de fato, o dia está magnífico!

— Bom dia, Nyx. — Perséfone cumprimentou, observando os três se acomodarem, Hypnos meneando a cabeça para a atitude nada discreta da mãe e Tânatos bocejando alto, com a boca escancarada. — Quais as novidades?

— Ah, minha querida, — sorriu gentilmente. — as coisas finalmente estão acontecendo por aqui! Coisas que esperei por tanto tempo. Argh, fico feliz que Hades tenha tomado uma atitude. Ainda bem que ele fez o favor de seguir os meus – Ai! Hypnos! — o deus havia dado uma cotovelada na mãe, sussurrando um quase inaudível “Mãe, fique quieta!”.

Felizmente, para todos os presentes, Perséfone era um pouco lenta para entender as coisas. Apenas arqueou uma das sobrancelhas, tentando a todo custo compreender o que aquilo significava.

— Ah, quero dizer, — a mais velha fingiu uma tosse, tentando arrumar uma desculpa esfarrapada. — hoje é um dia especial, querida!

— Aniversário de Hades. — o Sono completou, passando geleia em uma torrada, tentando dar mais veracidade a história da mãe.

— Oh!

Lembrava-se vagamente do pequeno encontro que tivera com Tânatos há três dias, e o deus havia mencionado a respeito. Como pudera esquecer?

Isso a lembrou da tela, esquecida no chão de seu quarto ao lado da cama. Entregaria ao rapaz assim que tivesse a oportunidade, afinal, era a ocasião perfeita para presenteá-lo sem que a situação toda ficasse estranha.

Uma conversa suave começou entre o grupo – evidentemente, a feiticeira manteve-se longe de qualquer contato social, imersa na leitura. Conversas, risadas, momentos íntimos. Não havia mais que alguns meses que chegara ao Submundo, mas a situação toda já era tão corriqueira, tão parte do seu dia a dia, que Perséfone já se sentia parte da família. Sim, aquilo era, de fato, uma família.

E não fazia ideia de como ficaria sem isso, quando retornasse para casa. Eram pequenos momentos, mas momentos marcantes, cheios de confidencias e alegria, coisas do qual não poderia desfrutar em um local como o Olimpo. Talvez no mundo mortal, mas jamais no Olimpo.

Encarou o próprio prato, sentindo-se estranha. Não lembrava mais como era sua vida antes, em que não havia os abraços doces de Nyx, as palhaçadas de Tânatos, o excessivo jeito respeitoso de Hypnos, até mesmo o silencio constrangedor de Hécate.

Mais do que isso, era difícil lembrar como era a vida sem Hades. Ele se tornara tão parte de sua rotina, que parecia impossível imaginá-lo longe.

Enchendo a boca com tortinha, tentou não pensar muito no assunto. Apenas levantou o rosto e mirou a figura materna de Nyx, que tagarelava sem parar, sorridente. Passado alguns minutos, a figura ereta e elegante atravessou o batente com passos vagarosos, soltando um bocejo no meio do caminho, chamando a atenção de todos.

— Até que fim! — o gêmeo de cabelos escuros exclamou alto, risonho. — Finalmente nosso aniversariante deu as caras. Bem que notei umas rugas no canto dos seus olhos.

— Bom dia para você também, Tânatos. — rolou os olhos, pouco animado. Passara a madrugada em claro recordando a noite anterior e, francamente, não sabia nem como encararia Perséfone depois de tudo o que disse. Foi só pensar nela que seus olhos se desviaram para a figura feminina, amuada na cadeira. Estava linda, como sempre. Enquanto atravessava a saleta, em um misto de coragem, não se assentou no local de sempre – na ponta da mesa –, mas afundou na cadeira vaga ao lado dela.  

Ele manteve a expressão indiferente, como se aquilo não fosse grande coisa, e encheu o prato com guloseimas. Apesar da atitude soar natural, Nyx e os dois filhos trocaram olhares cumplices e risadinhas. Perséfone, por outro lado, tentava esconder a incredulidade.

A Noite tentou puxar alguma conversa com os filhos, para não deixar o clima estranho pairando no ar e dar privacidade ao casal. Ninguém prestava atenção neles – mesmo Hécate. A feiticeira tentava não olhar muito, afinal, não queria se aborrecer.

 Hades mordeu um biscoito; percebendo a expressão no rosto da amada, sorriu lindamente – e o coração dela falhou uma batida.

— Bom dia, querida. — a voz era insuportavelmente melodiosa, cheia de gentileza. Perséfone engoliu o seco. Não havia se preparado para conversar com ele depois do que conversaram, sequer conseguia olhá-lo devidamente. — Como foi sua noite?

— Ótima, obrigada por perguntar. — respondeu, sorrindo de volta, sentindo o desjejum revirar no estomago. — A propósito, meus parabéns. — tentou soar animada, ao mesmo tempo em que ignorava aquele misto de sensações.

Hades deu de ombros.

— O que é mais um ano para quem tem uma eternidade pela frente, não é mesmo? — suspirou pesadamente. — Não sei por que as pessoas dão tanta importância a isso.

— Oras, — bebericou o café. — claro que se deve dar importância a uma data tão especial, afinal, não é todo dia que se completa.... Bom, quantos anos você tem mesmo?

— Francamente, — repuxou os lábios em um sorriso sem dentes. — já perdi as contas.

— Bom, não é todo dia que se faz milhares de anos, não é mesmo? — dessa vez ele riu. — O que pretende fazer hoje?

— Ainda não sei. — ciciou, pensativo. Não havia pensado nisso. Era o único dia que se dava o luxo de ter uma folga do trabalho. — Descansar, acho. Andar atoa por aí.  

— É realmente surpreendente não te ver obcecado com o trabalho.

— Bom, — coçou a nuca. — acho que realmente preciso de um descanso por hoje.

Ele sorriu. Perséfone, apesar de retribuir o gesto, perdeu-se por um instante no rosto dele. Ele era, de fato, muito bonito. Não conseguia imaginar os motivos que levaram Hades a gostar dela romanticamente. Ele era um homem espetacular, cheio de qualidades e ela... Bom, só era ela. Sem atrativos, sem uma personalidade marcante.

— Então, — ele quebrou o silencio sepulcral que surgiu. — gostaria de me fazer companhia hoje?

Ela piscou sequencialmente, pega de surpresa com o convite. Fingiu uma expressão pensativa.

— Preciso olhar na minha agenda. — brincou. — Sabe, sou uma pessoa muitíssimo ocupada. 

— Ah, como pude me esquecer. — reclinou na cadeira, os olhos brilhando em divertimento. — Sou um tolo em querer a companhia de uma pessoa tão atarefada como a senhorita.

— É claro. Preciso pensar se tenho algum compromisso, sou cheia deles.  

— Não tem como me encaixar em meio a essa agenda tão lotada?

— Sabe, agorinha tenho um compromisso no meu quarto. Deitar, olhar para o teto, coisas assim. Exaustivo. Mas certamente tenho um tempinho para você.

Encararam-se, segurando a risada. Era incrível como Hades tinha a capacidade de fazê-la sentir-se tão confortável, mesmo depois daquela quase declaração. Ela gostava disso. Gostava como tudo nele era incrivelmente familiar e como a personalidade única tornava tudo excepcionalmente fácil.

— É uma honra ter a tão atarefada Perséfone me acompanhando durante o dia.

Não tinham ideia de quanto tempo conversaram. Estavam tão imersos nas brincadeiras e nos assuntos corriqueiros, que demorou para perceberem que estavam completamente sozinhos na sala de jantar. Todos haviam se retirado, até mesmo tentado se despedir, mas aquela bolha inquebrável de cumplicidade os impediu de escutar qualquer coisa.

Quando perceberam, era tarde. O que os interrompeu foi uma alma serva que, parada no batente da porta, chamou-os mais alto. Ela fez uma reverencia ao receber atenção.

— Meu senhor, o almoço está sendo preparado. Posso retirar a mesa?

— Céus, acho que passamos da conta. — disse a Perséfone, que sorriu, depois voltou-se a alma. — Claro, fique à vontade. Vamos? — ofereceu a mão para ajudar a jovem deusa a se levantar. Ela aceitou e uma pequena eletricidade passou por seus dedos, algo que Hades pareceu sentir também, já que desviou os olhos.  

Nos corredores, o único som era o dos sapatos batendo contra o piso de pedra. Perséfone suspirou baixinho, encarando algum ponto a frente. Eventualmente, enquanto caminhavam, a mão de Hades esbarrava na sua, fazendo-a sentir um calor no abdômen.

— Sabe, Hades, — fitou o teto. — tenho curiosidade sobre algo.

— Diga.

— Como sabe, eu sou a deusa das flores, — percebendo que era observada com atenção, continuou. — e tenho poderes. Faço plantas crescerem, plantas de todos os tipos. Sou boa com jardinagem, é algo que nasceu comigo. E você? Você tem algum tipo de poder? É que nunca te vi usando qualquer coisa.

— É uma boa pergunta. Meus poderes, bom — coçou o queixo. — como posso dizer... evito usá-los. Na realidade, quase nunca utilizo porque, bom, não é bem necessário. Eu basicamente consigo controlar as almas, mas é algo bem desagradável, moralmente falando. Além disso, como seu pai tem os raios e Poseidon o tridente, também possuo o Elmo, que me dá poderes extras.

Ela conhecia bem as histórias que giravam em torno do Elmo da Escuridão, forjado pelos ciclopes. Tornar-se invisível diante do olhar inimigo e enganá-lo pelas costas – essa, certamente, era uma arma muito mais poderosa que qualquer tridente ou raio.  

— Entendo. É uma arma interessante.

— Gostaria de vê-lo?

Os olhos dela de repente pareceram pratos, arregalados e cheios de surpresa. Não era novidade para ninguém que Hades jamais deixara uma pessoa se aproximar daquela ferramenta tão poderosa.

E é claro que ela não perderia a oportunidade.

— Claro!

— Certo, — ofereceu o braço. Ela aceitou, sem entender. — me acompanhe.

Eles caminharam por um tempo. Atravessaram corredores e subiram escadas. Só quando pisaram em um dos andares, que Perséfone reconheceu onde estavam. Aquele era o corredor que levava ao seu quarto, sendo a última porta.

Na primeira, porém, ele se deteve, retirando da capa um molho de chaves. Ao destrancar, girou a maçaneta e a porta se abriu.

O cômodo era majestosamente grande – dava uns cinco de seu quarto, que já considerava enorme. Os móveis luxuosos contrastavam com o papel de parede escuro, em um tom quase preto. Havia uma cama dossel gigantesca, coberta pela mais pura seda vermelha e poltronas aparentemente confortáveis dispostas em vários cantos. A lareira estava apagada e as cortinas de veludo escuro abertas, revelando a imagem das montanhas que se erguiam em todo seu esplendor. Havia um piano de cauda preto situado próximo a uma bela prateleira de madeira escura. No teto, um imenso lustre de prata com diamantes pendia, iluminando o local e um tapete de pele forrava parte do chão de mármore branco.

Mas o que chamava atenção mesmo eram as pinturas. Lindas, cheias de detalhes – detalhes que Perséfone poderia reconhecer em qualquer lugar.

Não havia dúvidas: aquele era o quarto de Hades.

Ele dormia em um quarto no mesmo corredor e ela não fazia ideia disso.

— Se incomoda em esperar só um minutinho, meu bem? — ela negou com a cabeça. — Ótimo, em três minutos estou aqui novamente.

Permaneceu parada, aguardando-o, ainda deslumbrada com a decoração pomposa. Ele realmente voltou rápido, segurando um belo capacete grego que parecia reluzir.

— Aqui está. O Elmo.

Ela piscou sequencialmente, maravilhada com a peça. Era assustador, ao mesmo tempo lindo. Ele estendeu e ela equilibrou-o entre os dedos, sentindo o ferro frio tocar a pele.

— É lindo.

— É, realmente. — encostou no batente, de braços cruzados, observando a jovem deusa com um pequeno sorriso. — Os ciclopes capricharam na fabricação.

— Não acha meio óbvio guardar um pertence tão precioso no próprio quarto? — questionou, mirando-o com as safiras.

— Na verdade, não. — deu de ombros. — Todos acham que o guardo em uma sala trancada as sete chaves, impenetrável. Essa sala realmente existe, mas não há nada de valor lá. Quem em sã consciência adivinharia que ele está guardado no meu quarto? Quer dizer, confesse, até você está surpresa.

— Tudo bem, admito, estou um pouquinho. Mas só um pouquinho.

Ele riu e minutos depois ela entregou a peça. Após guardarem, o observou trancar a porta e enfiar a chave nos bolsos. Encararam-se.

— Então, tenho algo para você. — Perséfone disse enquanto estreitava os olhos. — Não é grande coisa e nem sei se vai gostar, mas há algum tempo venho trabalhando nisso.

— O que é?

— É surpresa.

— Sério que não vai me contar?

— Nem vem. Só mais tarde, quando dermos um passeio pelo castelo.

— Por acaso está se vingando de todas as vezes que fiz surpresas a você? — apertou os lábios em uma linha.

Ela sorriu, os olhos tilintando.  

— Evidentemente.  

+

Depois de andarem pelos arredores do castelo e conversarem animadamente, resolveram almoçar nos jardins, com a desculpa de que era um dia especial e que, portanto, deveriam fazer algo diferente. Pegaram algumas coisas essenciais na cozinha do palácio e estenderam um imenso lençol na grama orvalhada, próximo ao gazebo. Hades providenciou algumas lanternas de vela, que iluminaram bem, mas não tão bem como a lua fazia. Espalharam almofadas e se acomodaram, lado a lado, prontos para aproveitar aquela refeição simples à luz do luar.

Vez ou outra, trocavam olhares rápidos e sorriam sem graça quando pegos em flagrante. Apesar do ar estar envolto em descontração, havia uma clara tensão magnética entre os dois.

Podiam até ter arrumado uma desculpa para aquele momento a sós e para o fato de terem se aproximado mais para conseguirem ouvir melhor o que o outro dizia.  

Mas nada justificava as pernas encostadas ou os toques eventuais em meio as conversas.

Nada justificava o fato de Perséfone estar gostando daquilo, de toda aquela excessiva atenção e de como os olhos dele brilhavam sempre que se encaravam.

Em dado momento, por algum motivo, ela resolveu tocar em um assunto que a incomodou durante o dia.

— Sabe, Hades — suspirou pesadamente, criando coragem. — tudo aquilo que você me disse ontem... Aquilo tudo é realmente verdade?

— Jamais mentiria sobre isso para você, Perséfone. Não é do meu feitio.

— Sei disso, eu só... não entendo, sabe.

— O que não entende? — estendeu a mão e afastou um cacho que caia no rosto dela, colocando-o atrás da orelha.

— Por que gosta de mim?

— Que pergunta é essa, Perséfone?

— O que não entendo é que você... você é um cara legal, sabe, e é bonito, competente, educado... Você tem muitas qualidades e eu, bom... não tenho nada interessante. Sou desajeitada, linguaruda, infantil e minha beleza não deve passar da média. — suspirou, levantando o olhar para ele. Hades estava atento, e o maxilar travado. — Você pode ter as mulheres mais lindas do mundo, se quiser.  

— Quer saber de uma coisa, querida? — mirou o céu estrelado, pensativo. O ar soprou seu rosto, e ele encheu os pulmões antes de retornar a fitá-la. — Não importa o que diga...., para mim, a mulher mais linda do mundo é você. E só você. — os olhos brilhavam intensamente e ela prendeu a respiração, piscando uma, duas, três vezes, ainda sem acreditar no que seus ouvidos escutavam. — E isso não se trata só de beleza, Perséfone. Eu gosto da pessoa que você é. Você pode citar um milhão de defeitos seus, e mesmo assim eu vou gostar de cada um deles, porque são parte de você.

Ela simplesmente não sabia o que responder. Abaixou a cabeça para as próprias mãos, tentando formular qualquer coisa, mas simplesmente não pôde. Apenas estendeu os dedos até os dele, apertando-os. A mão de Hades era quente e agradável; encaixava-se perfeitamente nas suas.

Ele não insistiu em uma resposta. Sabia que Perséfone era uma criatura sentimental e imaginou que sua fala teria um impacto grande sobre ela. Apenas aproveitou o momento, com os dedos dela entrelaçados nos seus e o perfume adocicado acariciando seu nariz.

Passaram um bom tempo daquela forma. Depois ele tentou puxar algum assunto qualquer e, como sempre, a conversa fluiu devidamente. Riram, se divertiram. Hades não conseguia recordar um aniversário que tivesse sido tão especial quanto esse.

Durante a tarde, a temperatura esfriou e resolveram adentrar o castelo. Passaram um bom tempo juntos no ateliê, praticando pintura, depois tentaram uma ou duas partidas de xadrez na saleta de jogos. A deusa estava um pouco melhor e quase – frise o quase – o vencera em uma das partidas.

À noite, antes do jantar, já estavam cansados. Ele a levou até o quarto, parando para observá-la abrir a porta.

— Hoje foi um dia divertido. — ela comentou, sorridente. — E confesse que estou muito melhor no xadrez.

— Eu não diria muito, — tentou cortar a moral dela, encarando-a com seus olhos felinos. — mas dá para o gasto.

Recebeu uma cotovelada fraca, e o que se seguiu foi uma risada compartilhada.

— Nos vemos no jantar? — ela questionou; ele, no entanto, apertou os lábios.  

— Acho que não conseguirei te acompanhar hoje, me desculpe por isso. Preciso descansar, dormir um pouco. Amanhã tenho muita coisa a fazer.

— Entendo. — encostou no batente. — Bom, se é o caso, preciso buscar sua surpresa. Espere um pouco.

E foi o que ele fez, até que ela retornasse, com uma tela razoavelmente grande nos braços.

— Aqui.

Ele pegou e observou a imagem. Era um campo de gladíolos. 

— Olha, sei que não ficou muito bom e que não sou lá uma grande pintora, mas... -

Não houve resposta. Permaneceu silencioso, os olhos passeando pela tela, os dedos agarrados firmemente ao objeto. Ela o observou, mordendo o lábio inferior, nervosa, pensando que talvez a achasse boba.

Ao contrário do que imaginou, o rosto másculo iluminou-se repentinamente e um sorriso indecifrável formou-se nos lábios do rapaz. Ele, então, levantou o olhar novamente para a pequena figura a frente.

Estava encantado. Claro, a pintura não tinha qualquer técnica, mas não era por isso que estava tão feliz.

Aquela era a primeira vez que Hades recebia um presente.

— Foi você quem fez?

— Sim.

— Ficou ótimo, querida. — ele ainda sorria, o que fez com que o coração dela se aquecesse. Não conseguiu evitar o sorriso também, afinal, não imaginava que Hades fosse gostar tanto. — Muito obrigado pelo presente, de coração.

Encararam-se. Perséfone, pegando o deus completamente de surpresa, aproximou e esticou os braços, puxando-o para um abraço razoavelmente apertado. Sentir o coração dela batendo contra sua pele fez com que o rapaz prendesse a respiração. Estava chocado e tão feliz, que não soube como reagir. Apenas rodeou a cintura dela, puxando-a para mais perto, apreciando o perfume e o calor que a pele feminina emanava.

Aquele abraço, sem sombra de dúvidas, foi uma surpresa bem melhor que o presente em si.

Quando se afastaram, o rosto amendoado estava vermelho – provavelmente de vergonha. Ela sorriu para ele, sem graça, dando um passo para trás.

— Feliz aniversário, Hades. — disse baixo, mas ele conseguiu escutar. — Nos vemos amanhã.

— Obrigado, querida. Nos vemos amanhã.

E assim, Hades foi deixado no corredor, com o coração acelerado e a tela em mãos.


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Notas finais do capítulo

Gente, como sempre demorei, já aceitei que eu vou demorar toda vez, então acho bom todo mundo aceitar esse fato também KKKKKKKKKKKKKKKKK eu posso sumir, mas uma hora apareço
tô pior que assombração meu povo KKKKKKK
E aí? O que acharam do capítulo?



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