Capuz Vermelho - 2ª Temporada escrita por L R Rodrigues


Capítulo 14
Dia Prometido (Parte 2)


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Hector, Eleonor e Josh paralisaram, atentos, ao sobressaltarem-se com as repentinas e fortes batidas na porta da sala onde estavam. A sala particular do curador do Museu, criada exclusivamente à ele quando o mesmo se encontrava em uma lástima situação financeira, que se resumia em dívidas homéricas as quais seu gordo salário não era capaz de quitar. Um espaço semi-circular com tapeçarias orientais, sofás caros e paredes folheadas com um papel cinza com listras brancas horizontais, enfeitadas com os temidos e famigerados - pelo menos entre os adoradores de lendas de terror - quadros de Bragolin, onde exibiam-se figuras de crianças chorando. Vasos médios de alabastro postos próximos das pequenas mesas eram encantáveis quando iluminados pela fraca luz fluorescente. O chão era de uma cerâmica quadriculada com qualidade quase equivalente as das alas do museu. No dado momento, havia apenas uma luz acesa: a do pequeno quarto.

As batidas fortaleciam-se a cada segundo, fazendo a porta redonda e metálica tremer. Pareciam querer arrombar utilizando algum objeto igualmente metálico até que a porta finalmente ficasse "amassada", adquirindo certa fragilidade. Os três entreolharam-se temerosos, suas respirações baixas.

— Eu não contava com essa. - comentou Josh, já empunhando seu rifle na direção da porta. - Ao seu sinal, capitão.

— Mantenhamos a calma. - aconselhou Hector, parado e desarmado. - Era exatamente isso que eu esperava que fizessem.

— O quê? - indagou Josh, fazendo uma careta confusa. - Está delirando de fome? O estoque já zerou faz tempo.

Hector sentiu vontade de rir, tanto da afirmação de Josh quanto da oportunidade valiosa que o esperava. Eleonor, por outro lado, mantinha-se focada e nervosa ao som do rádio, ouvindo as últimas notícias. Atividade que Hector recomendou que ela exercesse durante o tempo que passariam na sala.

— Não pode ser. - disse, estando agachada perto do aparelho. - Mas que merda! - praguejou em voz alta.

— O que foi? - perguntou Hector, virando-se rapidamente à ela.

— O exército planeja uma ofensiva contra Mollock para as oito e meia desta noite. - disse ela, levantando-se. - Se esse tal general Holt e seu esquadrão invadirem o museu no meio do nosso plano, tudo vai por água por abaixo.

— Mas por que logo hoje!? - reclamou Josh. - Justo hoje que vamos ferrar com esse monstrengo, esses caras criam coragem para virem hoje!? Isso é mais do que uma merda!

— Não percamos a calma, muito menos o foco. - disse Hector, erguendo levemente o indicador. - Até porque temos tempo de sobra, ainda está de manhã e...

— Hector, eu admiro o seu otimismo, sinceramente. - disse Eleonor, franca. - Mas assim que chegarmos longe demais, é melhor que baixemos as expectativas, porque desistir com certeza vai se tornar uma opção.

— Com "longe demais" refere-se à encontrarmos Loub e o usarmos como bala de canhão para derrubarmos Mollock!? Então, nesse caso, eu pretendo ir o mais longe que puder, não importando se iremos tropeçar e cair várias vezes, por que é isso que vai acontecer, tenho ciência disso. - disse o caçador, o tom firme e determinado. - Cada um de nós terá seu tempo para agir conforme for necessário. Já conversamos sobre isso: Sem medo de assumir riscos.

— Não falo do risco de nossas vidas, mas sim deste plano. - disse Eleonor, aproximando-se dele, o tom elevando-se. - Está ouvindo? Já nos acharam! Cedo ou tarde vão arranjar um jeito de abrir essa porta e sabe lá quantos deles estão aí do outro lado. Eles: numericamente superiores. Nós: Vergonhosamente despreparados.

— Despreparados!? Possuo um arsenal de reserva. Além disso, você tem se mostrado tão apta quanto nós. Por que não pode, ao menos, reconhecer a própria importância? - questionou Hector, inflando o peito, já à beira de um crise de estresse.

— Ah, claro, minha importância é: Ser o último recurso quando as coisas vão mal e ser vista como uma arma porque meus feitiços são como balas! - vociferou ela, fulminando Hector com seus verdes olhos. - É assim que você quer que eu me veja!? Você quer impor sua visão sobre a minha. Simples assim. - disse ela, cruzando os braços.

O verde feroz dos olhos de Eleonor eram vistos por Hector como os poderosos e azuis de Rosie. A expressão do caçador mudara drasticamente de firmeza para desespero quando ele, de repente, passara a ver uma espécie de miragem: A aparência de uma mulher madura como Eleonor dando lugar a figura rebelde e inflexível de Rosie. Era como se as duas maiores mulheres de sua vida alternassem na visão. Um profundo déja vú acometeu Hector no dado instante, recordando-se das duas discussões que tivera com Rosie.

— Está pensando somente na sua vingança, Hector. - ressaltou Eleonor, menando a cabeça negativamente. - Quer se redimir usando de um egoísmo que parece não ser seu. Não... você permitiu que ele cegasse você.

Hector, já no limite da paciência, cerrara os punhos intensamente.

— Está arruinando toda a cumplicidade que cultivamos até agora... - o caçador já estava suando em demasia. - Eu pretendo matar Loub com minhas próprias mãos sim! Mas neste momento, Eleonor, estou pensando em um milhão de coisas! Rosie, a Legião, todos os meus amigos, eu não quero que essa guerra tire eles de mim!

— Cadê o seu instinto de detetive? - perguntou ela, elevando mais ainda o tom. - Considerava todas as possibilidades, agora parece ter medo de que nada siga como você imagina.

— Acho que a palavra medo não se encaixa neste contexto. Não comigo aqui. - disse Hector, fechando a cara.

— E quem está sentindo medo aqui, afinal? Eu e o Josh? E só você exala coragem e bravura?

Josh percorria seus olhos nervosos alternando entre os dois parceiros divergentes e as batidas ainda mais violentas na porta. Queria encerrar aquela discussão de uma vez por todas, mas as palavras pareceram ficar travadas na garganta.

— Eu farei o que achar certo, só basta confiarem em mim! - disse Hector, cansando-se.

— Confiamos em você, mas não no seu egoísmo. - retorquiu Eleonor.

— Já disse que não estou unicamente focando em mim! - esbravejou ele.

— Mas é o que está parecendo, afinal de contas apostou tudo nessa missão apenas para se redimir de uma traição forçada! - rebateu Eleonor, aproximando ainda mais seu rosto ao de Hector.

— Deveria parar de apontar meus defeitos e saber entender minhas motiva...

— Já chega vocês dois! Parem agora!! - exclamou Josh com a expressão enfurecida, em altíssimo e bom som, interrompendo de vez a acalorada discussão. - Será que dá pra vocês prestarem atenção aqui!? Estão quase arrombando a porta! E nem precisaram de senha pra isso!

Os dois o olharam espantados por alguns segundos, logo passando a compreender seu crescente desespero. Voltaram-se à porta. Já estava retorcida o suficiente para ser arrombada. Ao que parecia, o metal era de qualidade duvidosa e ínfima durabilidade. Talvez por esta razão o curador exigiu uma senha ainda mais árdua.

Com um forte e intenso arrombo, a porta abriu-se tremendo, fazendo vibrar parte do chão. Armados com lanças prateadas, os soldados de Mollock entraram invasivos, como se quisessem terminar o serviço ali mesmo, sem demora. Na tentativa de impedir que atacassem, Hector teve de reunir toda a coragem propiciada pela discussão que tivera com Eleonor para proferir uma ordem.

— Parem! - exclamara, mostrando a palma da mão direita a fim de barra-los. - Vocês finalmente nos encontraram, mas precisam ouvir algo importante!

As quimeras suspenderam a iniciativa abruptamente, rosnando ferozmente, parando há poucos metros dos três aventureiros.

— Mestre Mollock quer vê-los mortos e assim devora-los! - disse uma delas.

— Mollock terá a nós, fiquem tranquilos. - disse Hector, logo em seguida virando o rosto para Josh e Eleonor e dando uma piscadela discreta.

"O quê? No que ele está pensando? Que tipo de plano é esse? E esses monstros falam!?", pensou Josh, confuso.

"Hector, é bom que saiba o que está fazendo. Qualquer engano ou deslize pode ser fatal.", pensou Eleonor, relutante.

Hector dera um sorriso disfarçado.

— Vamos nos entregar... apenas com uma condição: Mollock deve nos dizer onde está Robert Loub. Queremos-o vivo, sem um único arranhão.

Os rosnados haviam cessado, dando lugar a um silêncio quase predominante. As quimeras aparentemente estavam avaliando a condição dada por Hector, dando a entender, por suas lanças não demonstrando mais ameaça, que a compostura do caçador funcionara para amansa-las.

— E se caso ele se recusar a faze-lo? - disse a da frente, a que provavelmente ficara incumbida de liderar a operação.

O disfarce do sorriso de Hector logo o tornara evidente demais após uma pergunta tão previsível como aquela. "Bingo! Exatamente como previ.", pensou ele.

— Bem, então não teremos outra escolha senão revelarmos um segredo sombrio dele para todos vocês.

— Que tipo de segredo? - indagou uma quimera, rispidamente, na fileira da frente.

— Algo que traria consequências irreversíveis para o reinado dele. - disse Hector, propositalmente sem nenhuma clareza.

Mais um instante silencioso. Algumas das quimeras, reflexivas quanto ao argumento, entreolhavam-se intrigadas sobre o tal mistério acerca de seu amado rei, mas por dentro a maioria ansiando para sanar as dúvidas que nasciam. Em outras palavras, uma boa parcela estava extremamente curiosa para saber do que se tratava. Hector, decerto, as colocara em um beco sem saída. Por outro lado, um certo grupo achara estranha a exigência de Loub vivo, sendo que, até onde elas sabiam, o único alvo era Mollock.

— O que pretendem fazer com Robert Loub? - perguntou a quimera líder.

— Temos nossas razões. - afirmou Hector, evasivo. - As quais não temos obrigação nenhuma de revelar. Agora nos levem até Mollock para que eu exija a soltura de Loub assim como a localização de seu cativeiro.

De súbito, o soldado responsável por liderar o pelotão teve de ceder ao pedido, mesmo praguejando internamente a respeito da "exigência", algo interpretado ligeiramente como uma imperdoável falta de respeito para com a soberania do rei.

— Está bem! Levem-os...

— Espere! - interrompeu Hector, após um lampejo. - Permita-me uma breve reunião com meus companheiros, por favor. - pediu ele, erguendo a palma da mão indicando pacificidade.

O caçador carregara Josh e Eleonor tocando seus ombros, levando-os para um lado da sala. Ficara entre eles, ávido para discutir as partes que cada um faria dentro do plano.

— Irão conspirar! - berrou uma quimera, apontando a lança ameaçadoramente para o trio.

A líder, com um gesto de mão, pedira que não intervissem.

Hector olhou de modo discreto por cima do ombro para se certificar de que não iriam tentar um ataque-surpresa pelas costas. Para sua felicidade, pareciam estar dóceis.

— Muito bem, ouçam-me com atenção. - fizera uma pausa, suspirando antes de começar. - Enquanto estivermos sendo levados, Eleonor prepara um feitiço para neutraliza-los. No entanto, antes que ela possa atacar, você, Josh, irá persistir e irritar as quimeras perguntando onde Loub está confinado. Uma hora ou outra, antes que possamos chegar à Mollock, uma delas poderá revelar sem pensar. A irritação que elas sofrem pode faze-las perder a noção de contexto e acabar dizendo algo que não deviam. Depois, você, Eleonor, usa o feitiço que desejar e nós dois iremos nos esconder até que Josh nos traga Loub. - disse, praticamente aos sussurros.

— É, mas como eu vou saber onde vocês vão estar? - perguntou Josh.

— Vamos esperar você na ala II das armas. - disse Hector, logo tirando algo do bolso de seu sobretudo de couro marrom. - Aqui. Tome este mapa. É uma cópia que encontrei no baú do curador.

— Hector, sabe que a parte que Josh faz o papel do garoto irritante não vai ser nada fácil, certo? - disse Eleonor, ainda mantendo o ar de incerteza e relutância.

— Pode deixar - garantiu Josh. - Vou fazer elas ficarem doidinhas de raiva que a primeira coisa que vão dizer antes de explodir é o lugar onde esse cara tá preso.

— É isso aí. Conto com vocês dois. - disse Hector, percebendo que o tempo se esgotou.

Quase que simultaneamente, os três viraram-se para as quimeras, demonstrando uma falsa rendição. Quatros delas aproximaram-se para aborda-los e, assim, conduzi-los até a sala do rei. A líder pareceu encara-los com frieza... com um suposto sorriso no canto da boca, o qual Hector, enquanto estava sendo levado, percebera mesmo em um vislumbre. Saíam da sala, sentindo-se como criminosos condenados e sendo guiados até o "corredor da morte". O corredor da galeria A-II enchera-se de soldados, caminhando rumo à sala do rei. Entre eles, o trio era segurado pelos braços. Uma ordem direta e severa fora da pela líder: Não olhar para os lados ou para trás. Somente para frente ou de cabeça baixa.

O máximo de discrição era o que a situação-problema exigia. E isto Hector tinha de sobra. Só faltara comprovar se Josh e Eleonor partilhavam do mesmo.

— Por que nos seguram? Não vamos fugir. - disse Eleonor, reprovando a decisão das quimeras. - Além disso, estas garras estão me machucando.

— Cale-se. - disse a quimera ao seu lado esquerdo. - Não tem permissão para falar. Nenhum de vocês.

"Quanta confiança essa sua, Hector", pensou Eleonor, olhando disfarçadamente para ele, que ia na frente. "Está depositando todas as fichas neste plano bem atrevido. Ele quer mesmo matar dois coelhos numa só cajadada. Mas o que me incomoda é que tudo isso foi fácil demais.". Percorreu lentamente seu verdes e claros olhos pelas quimeras ao seu redor que marchavam em ritmo estável.

"Sem permissão pra falar!? Agora fodeu!", pensou Josh, arregalando os olhos, com a cabeça baixa. "Um pio e depois um belo picadinho de Josh é servido pra esses monstros.".

Hector mantinha sua confiança impenetrável, olhando para frente como ordenado. "Devem ter se passado três minutos, no mínimo. É agora. Vamos lá, Josh, entre em ação. Comece a falar. Temos sorte deste corredor ser bem mais longo que os demais. Eles não farão nada se disser algo. O ideal é que fale após cinco minutos, mas agora já é um momento adequado.".

O único som que predominava no dado instante era os dos passos, tanto das quimeras quanto dos três. O silêncio proporcionava um clima maçante. "É, acho que no fim das contas sempre sou eu quem não tem lá muita escolha. Coragem. Vamos lá.", pensou Josh, inspirando fundo.

— Pois é né, acho que uma conversinha pra quebrar esse silêncio todo cairia bem agora. - disse ele, sorrindo desconcertante.

Uma quimera à sua frente olhou para ele por cima do ombro de modo ameaçador. O caçador de aluguel engoliu a saliva, fitando nervoso aqueles olhos amarelos selvagens.

— Cale-se. - mandou a quimera à sua direita que o segurava.

— Ora, vamos lá, se abram comigo. - disse ele, ousadamente. - A gente só quer o cara vivo, nós temos planos bem interessantes pra ele, não que seja grande coisa, mas com certeza é algo que vai beneficiar a vocês... err... ahn... de um modo que vai deixar vocês mais fortes, até mais do que o rei de vocês. - ele parecia não ter ideia do que estava dizendo.

Eleonor fechara os olhos, inquieta e aborrecida. "Isso Josh, piore as coisas.", pensou ela.

Uma delas virou a cabeça, aparentando estar interessada. Outras fizeram o mesmo, sem cessar a caminhada.

— Está dizendo a verdade? - perguntou uma, mais à frente.

— Ahn... sim, estou sim. - disse ele, olhando para cada uma delas, ainda mais nervoso. - Vocês não fazem ideia. "Muito menos eu.", pensou ele, suando em demasia. - Eu sei que esse tal de Mollock não deve tratar vocês com tanto respeito, sem querer ofende-lo, mas é que não concordo com isso. Onde já se viu um rei maltratar seus próprios súditos? - deu uma leve e forçada risada.

Hector parecia estar no limite da paciência. "Muito bem, Josh. Só precisa ser um pouco mais direto desta vez.".

— Do que se trata, afinal? - perguntou uma quimera.

— É surpresa, não posso contar agora. - disse Josh, demonstrando não ter imaginação o bastante para inventar algo convincente. - Só revelarei quando me disser onde está Loub, assim, escondidinho do seu rei a gente decide como vai ser. E aí, o que acham? - ele sorrira mais abertamente desta vez, sentindo-se mais à vontade.

Minutos passaram nos quais as quimeras ficaram pensativas quanto à oferta nada clara de Josh.

— Nós aceitamos. - disse a que havia perguntado.

— Nós!? - redarguiu outra ao seu lado. - Você enlouqueceu? Não vamos fazer parte de algo criado por um humano miserável!

— Ele tem razão! - rebateu outra, mais na frente. - Ele não foi claro em sua proposta. Isto pode nos arruinar. Aceitar isso é se voltar contra nosso rei!

— Pensem bem, seus vermes! - disse uma das que seguravam Hector. - Para quê queremos um mero humano como Robert Loub servindo ao nosso rei entre nós se podemos usa-lo para que ele nos sirva. O rei não nos trata de forma digna! Ele merece saber que seus súditos possuem algum valor.

— E quem seria o rei deste novo império? Você? - perguntou outra, ríspida.

— Ora, parem! - disse a líder, finalmente se manifestando. - Ele nem devia estar nos dirigindo a palavra. A ordem foi clara: Ninguém fala até que cheguemos ao rei! E não deviam estar dando atenção ao que este inseto está propondo!

"Está dando certo.", pensou Hector, feliz por dentro. "Só mais um pouco".

— Bem, já que concordaram, agora me digam onde está Robert Loub. - pediu Josh, sendo mais direto.

— Se você disser, eu... - ameaçou uma quimera para outra.

— Está nos subterrâneos... - interrompeu ela - do depósito de peças para restauração! - virara o rosto para Josh enquanto dizia.

Hector arregalou os olhos, perplexo. "Estávamos tão perto o tempo todo!", pensou. No depósito mencionado, jaziam peças, artefatos e diversos outros objetos, os quais, sob recomendação do curador do museu, seriam encaminhados para a restauração. O homem, famoso tanto por ser meio paranoico quanto por guardar inúmeros segredos, fazia questão de ocultar as possíveis passagens secretas que, em segredo com o proprietário do museu, haviam sido criadas como saídas de emergência para eventuais casos de incêndios ou até mesmo invasões criminosas caso o plano de segurança fosse inutilizado. A mais bem preservada podia ser encontrada no chão, onde a mesma dava acesso ao subterrâneo que abrigava um corredor e uma sala na qual alguém se esconderia se o problema fosse grave. Basicamente um grande alçapão. A porta era de cumbo maciço, precisaria ser aberta por alguém forte fisicamente. No caso do curador, isto não seria problema, já que o mesmo já tinha elegido seu guarda de confiança, um homem carrancudo e musculoso que cuidava da segurança do interior.

— Traidor! - bradou uma quimera, logo enfiando sua lança na garganta da outra.

A pele acinzentada da criatura foi banhada por sangue jorrando sem parar. Um rugido de dor ecoou pelo corredor. A líder teve de intervir.

— O que você fez!? Não percebe que esse humano está mentindo? - disse ela, enquanto a "traidora" caía gemendo de dor no chão, tentando ganhar tempo até se recuperar.

— E por que eu mentiria sobre isso? - indagou Josh, fazendo uma careta.

— Você! - a quimera líder apontou de modo acusador para Hector. - Estava conspirando junto à eles! Sei disso porque eu ouvi tudo o que disseram!

Hector mirou seus penetrantes olhos para a quimera, mas sorrindo de satisfação. Era do seu feitio expor os detalhes mínimos de seus planos somente na hora H, algo muitas vezes até incompreendido por outros caçadores. Em missões passadas, isto evidenciou-se ao extremo, chegando a arrancar críticas de colegas mais privilegiados, ao menos na época em que ele se aventurava de floresta à vilarejos como testes de aptidão para ingressar na Legião. Resultado: Hector tornou-se a prova viva de que ignorar comentários precipitados relacionados a seu modo de pensar e agir é a melhor forma de se sair bem contando consigo mesmo.

"Mas o que... Por que Hector parece tão feliz com isso?", pensou Eleonor, em dúvida.

— Sim, eu já sabia. - disse o caçador, o sorriso tornando-se zombeteiro. - Afinal, são quimeras de nível três. Possuem um sistema auditivo quase sobre-humano. No entanto, apenas você ouviu toda a conversa, era a que estava mais próxima.

Os olhares ferozes das quimeras repentinamente voltaram-se apenas para Hector. A caminhada rumo ao recinto de Mollock havia cessado por tempo indeterminado.

Hector prosseguira:

— Se, em segredo, revelasse a todos os outros do que havia escutado, a discussão que ocorreu agora nada mais seria do que um fingimento, mas aí precisariam de mais tempo para planejarem. Como você percebeu que estava sem tempo para arquitetar algo para nos matar, teve de se render à nossa chantagem e guardou apenas para si o que ouviu. - fizera uma pausa, encarando com ar sério as duas quimeras que o seguravam cada vez mais forte. - Agora que sabemos onde Loub está, é bom que Mollock fique em alerta.

Instintivamente, as quimeras ergueram suas lanças e as apontaram quase que simultaneamente para os três intrusos, ameaçando um ataque. As que os seguravam os soltaram de imediato, também apontando suas lanças, aparentemente mirando em suas cabeças.

— Mas pra quê estas lanças quando se tem garras e dentes afiados, não faz sentido... - disse Josh.

— Cale-se! - vociferou uma quimera, interrompendo-o.

Hector, sem se sentir abatido pela ameaça, olhou para Eleonor em um contato visual quase que implorando para que fosse telepático. "É com você agora, Eleonor.", pensou ele. Assentiu levemente com um "sim" para ela.

Ainda que estivesse relutante, a bruxa concordara, exibindo um semblante igualmente sério. Aquele era o momento mais do que adequado.

— Não se movam. - disse uma quimera, rosnando, a ponta da lança em riste.

— O rei que veneram não passa de uma farsa. - disse Eleonor, sem medo. - O pior cego é aquele que não quer ver. - fizera uma pausa, suspirando. - Oboros he ka oculu's! 

As visões daquele pequeno exército tornaram-se turvas instantaneamente, para logo em seguida ficarem totalmente neutras. Os olhos das mais de vinte quimeras ganharam um aspecto branco pálido. Não tardou para causarem um verdadeiro tumulto devido a rápida cegueira causada pelo feitiço.

— Aaaaaaaah!! - gritou uma. - Não consigo ver nada!

O trio tentou se juntar para que não fossem atingidos pelas lanças. Josh desviara de um ataque de umas duas lanças. Tiveram de correr após terem encontrado uma brecha, enquanto deixavam para trás aquele grupo que se mutilavam com suas armas, tentando golpear um dos intrusos. Enquanto corria, Eleonor olhara rapidamente para trás e via o banho de sangue que se formara. Algumas corriam para direções opostas, feridas e cegas, à procura dos ex-detidos. Apenas golpeavam o ar com suas lanças enquanto urravam de fúria e dor.

— Boa Eleonor! - disse Josh, correndo mais depressa. - Com feitiços tão poderosos, quem sabe você não use um contra mim.

— Por que eu faria isso? - indagou ela, confusa.

— Ah, deixa pra lá. Você já me encantou com sua beleza. - disse ele, quase aos risos. - Agora só falta um encontro.

— Sem chance. - revidou ela, sorrindo. - Só por curiosidade: Quantos anos você tem, Josh?

— 19. - respondeu ele, tentando alcançar Hector pelo longo corredor.

— Está explicado. - disse ela, dando uma risadinha.

— Explicado o quê? O nosso destino como almas gêmeas?

— Não. - respondeu, olhando risonha para ele. - Que você é novo demais para mim. - disse, direta e sinceramente.

O caçador de aluguel desanimara com um olhar tristonho, mas recompôs as esperanças ao correr mais rápido. Hector parara para tomar fôlego enquanto observava os dois aproximarem-se.

Finalmente haviam alcançado-o.

— Nossa, Hector - disse Josh, ofegando ao se apoiar numa parede. - Que vitaminas você tomou enquanto esteve na Legião? Com uma corrida dessas, ganharia de um Lycan fácil.

— Não exagere. - respondeu ele, com um sorriso satisfatório. - Se saíram muito bem. Obrigado.

— Ao que parece, a maioria morreu. - disse Eleonor, tentando avistar ao longe se havia algum remanescente do exército de quimeras. - Ótimo. O que fazemos agora?

— Simples. - disse Hector, com firmeza na voz. - O depósito fica naquele corredor à esquerda. - apontou para a direção que Josh deveria seguir. - Abra o mapa se precisar se esconder em alguma sala secreta se a situação chegar a piorar, não entre em pânico. Como havia dito uma certa pessoa, todas as possibilidades devem consideradas. - olhou para Eleonor, com certo ar de agradecimento.

A moça retribuíra com um tímido gesto de cabeça e um sorriso fraco, por um lado sentindo-se a vilã ao lembrar-se da discussão desnecessária, já por outro, mais esperançosa com relação ao futuro. A esperteza de Hector provou-se a maior arma deste plano. Talvez fosse tolice duvidar da confiança depositada, mesmo que quase ínfima. Percebera, mesmo que parecendo meio tarde, que deveria dar mais uma chance para compreender as reais motivações do caçador, tão eclipsadas pela complexidade de seus planos.

— Acho que é aqui que a gente se separa, não é? - perguntou Josh, um tanto desalentado. - Pelo menos por um curto tempo.

— Sim. - respondeu Hector, olhando para baixo. - Você tem seu arsenal. Use-o se caso for pego em uma armadilha. Mollock não deve ser, em hipótese alguma, subestimado. Deve haver quimeras de guarda também no subterrâneo.

— Se minha opinião vale alguma coisa.. - argumentou Eleonor - Acredito que Mollock só faria isso se soubesse que estamos atrás de Loub. Em outras palavras, apenas saberia se um soldado dissesse à ele dos nossos intentos, mas isso aconteceria se este exército de merda fosse mais esperto.

— Tem razão. - concordou Hector. - Como a líder havia escutado nossa conversa, poderia ter a chance de mandar uma delas ir até onde Mollock está e informa-lo de nosso plano sem que nós soubéssemos. E só assim mobilizaria mais soldados para várias direções, em especial o subterrâneo.

Josh sentiu-se obrigado a dizer algo, ao mesmo tempo sentindo-se impertinente.

— Errr... acho melhor eu ir indo. - disse ele, dirigindo-se ao corredor. - Nenhum licantropo surtado vai impedir a passagem deste futuro membro da Legião. Hector, você e eu seríamos ótimos mentor e aprendiz, respectivamente. - deu uma risada contente.

— Ah sim, disse eu tenho certeza. - disse Hector, assentindo concordante. - Josh, por favor, cuide-se e traga-o. Só não tente ficar muito íntimo dele... não é nada amigável, além de que, em primeiro momento, não o encare como um possível aliado nosso. Ainda temos contas a acertar. - salientou, seriamente.

— Deixa comigo. Quem diria, hein!? Minha primeira missão de resgate. - virou-se para os dois, ainda andando. - E Eleonor! Não pense que acabou. - sorriu. - Sou dos que preferem as mais velhas. Quem sabe um dia, quando marcarmos um segundo ou terceiro encontro, você me apresente sua família. Mas só espero que seus pais não sejam racistas!

Eleonor rira de um modo que não o fazia desde um bom tempo.

— Vá, Josh. - disse ela, ignorando o que o rapaz havia dito sobre o improvável romance. - Mas vá e tente voltar vivo. Estamos torcendo por você.

O caçador fizera um gesto de uma "despedida" e logo apressava seus passos pelo corredor sem iluminação, desaparecendo na escuridão. Não pertencia à galeria, nem possuía nenhuma obra de arte em suas paredes. Era de largura curta, não chegando a ser estreito e a falta de iluminação o tornava quase imperceptível. O corredor onde Hector e Eleonor estavam agora se estendia a mais metros. Pareciam ainda estar na metade dele, além de que seria um dos mais longos de todo o museu.

Os sons ruidosos do tumulto mortífero das quimeras foram de abafados até inexistentes. Os dois aventureiros entreolharam-se e assentiram com expressões sérias. Seguiram pelo corredor, andando a largos passos. Hector ia na frente, o sobretudo de couro marrom cintilando com as luzes fluorescentes.

— A ala II das armas não fica muito longe, eu acho. - disse, a fala apressada. - No início, eu pensava que ela não seria importante, mas agora me arrependo de não ter memorizado o caminho. Mas não faz mal, basta seguirmos as setas e as placas e nos orientarmos. - fez uma pausa para olhar o relógio de pulso prateado que usava. - São quase oito da manhã. Temos doze horas e trinta minutos antes do exército vir. Parece que a sorte está mesmo do nosso lado.

Os passos do caçador intensificavam-se. Hector, apesar de naturalmente confiante, imaginava a hipótese de ser pego em qualquer armadilha criada para deter intrusos.

Olhou em volta enquanto nadava mais rápido.

— As paredes parecem estar como sempre estiveram. Nenhum sinal aparente que indique a presença de possíveis armadilhas. - disse, percorrendo os olhos pelas paredes de mármore. - As pinturas não estão com nenhum detalhe estranho. Pelo visto, Mollock não esteve tão preocupado com nossa ameaça desde que passou a suspeitar.

De repente, uma sensação incômoda lhe invadiu os pensamentos. Fez uma cara de desconforto... como se alguma coisa estivesse em falta.

— Você está muito calada... - disse, virando-se para trás.

Parou a caminhada perplexo. Seu sangue gelara, seguido de um arrepio que lhe percorreu todas as partes de seu corpo.

Eleonor havia sumido misteriosamente.

                                                                                 ***

Os soldados o olhavam discretamente, com extrema estranheza. Parecia que o rei estivera lendo um compilado de cartas com múltiplas felicitações a seu respeito.

Mollock folheava avidamente aquele livro, com um macabro e largo sorriso no rosto.

Longos minutos passaram-se como horas.

Ao chegar ao final de seu leitura, Mollock respirara fundo com os olhos fechados. Os abrira lentamente, a íris amarela tomando forma, o elemento que deixava seu olhar intimidador.

Fechara o livro, batendo-o com um estrondo assustador. Um leve nuvem de poeira elevava-se no ar.

Olhou para cada um dos soldados que estavam presentes, segurando-se de ansiedade.

— Tragam-me algum livro que fale sobre a origem do lugar conhecido como Ruínas Cinzas! - ordenou, em tom austero e firme.

Continuou, esbanjando uma certa felicidade:

— Há algo neste local que parece ter sido feito para mim. Posso sentir. Se caso eu confirmar que ele de fato existe... iremos para lá e vocês poderão testemunhar um evento de proporções divinas!

O rei levantara-se abruptamente e saiu andando pelo salão em direção à porta.

— Você e você! - disse, apontando para dois guardas à sua direita. - Vão até a biblioteca. Assim que eu retornar quero o livro que pedi sobre meu trono. Ele tem que existir. - passeou os olhos para sua esquerda e fitou os dois soldados. - Vocês dois! Me acompanhem até os subterrâneos. Preciso me encontrar com meu pai.

                                                                                ***

Naquele instante, Robert Loub desenhara na parede com uma ponta de carvão os futuros projetos que sempre sonhou que se realizassem... se caso aquele pesadelo não ocorresse.

"Não me restam mais forças.", pensou ele, tristemente abatido. "Uma hora ou outra, mais cedo ou mais tarde, aquela besta do inferno vai recorrer à tortura física para me obrigar a dizer o porque da minha resistência para com a transformação."

A luz havia sido reposta pouco tempo antes. Passara alguns dias trancado na escuridão enquanto os soldados de Mollock não arranjavam uma lâmpada decente.

"O que me dói mais não é estar trancafiado aqui como um animal indefeso. Mas sim o fato de que tudo isso é culpa minha. O que foi que eu fiz?", pensou Loub, os olhos marejando.

"Eu preciso comer algo. Respirar um ar fresco. Voltar a ver a luz do dia... ", estava ficando sonolento novamente. Largou calmamente o pedaço de carvão. E, por fim, fora adormecendo aos poucos.


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