Capuz Vermelho - 2ª Temporada escrita por L R Rodrigues


Capítulo 13
Dia Prometido (Parte 1)


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 2x08

Duas missões impossíveis em prol de um só propósito.

Avante, guerreiros! Este é o tempo para agir melhor... a fim de se evitar o pior.



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Duas semanas depois

Os iniciais raios solares do alvorecer ainda emergiam lentamente por entre as nuvens no horizonte. O relógio de cuco na sala "secreta" de Charlie marcava 05:50. Novamente, o quinteto reunira-se, matando uma certa saudade de quando encontraram-se primeiramente na memorável noite em que o trio de aventureiros finalmente pôde saber da existência dos seres mais incríveis de todas as eras. Os magos do tempo definitivamente possuíam um valioso conhecimento, cuja vastidão os tornavam as mentes mais à frente de suas épocas.

Os dias passaram-se como um rápido voo de uma ave de rapina. A Legião tornava cada vez mais obstinada a ânsia por começar a tão aguardada missão para resgatar Rosie das garras de Abamanu e encontrar, contando com uma improvável sorte, um modo de impedir o retorno dele. Em pé, diante da comprida mesa de madeira, os quatro posicionavam-se determinados. Êmina, de braços cruzados, segurava apenas seu giz para desenhar símbolos alquímicos. Adam, por outro lado, carregava nas duas mãos dois rifles altamente carregados, bem como uma munição de reserva colocada em seu cinto, em seguida alisando sua cabeça relativamente calva. O caçador de braços fortes largara as armas na mesa para ajeitar o colete apertado. Lester, como previsto, era o mais empolgado, alongando seus braços e seu pescoço. Possuía facas e adagas no seu cinto de utilidades. Diferentemente dos bem treinados, Alexia era a que mais exibia apreensão sem se sentir culpada, olhando fixamente para Charlie com seu azulado olhar.

Charlie, procurando prolongar mais um pouco o silêncio do início da manhã, deixara sobre a mesa um papel de largura estreita e amarelado que possuía um símbolo reconhecível para magos do tempo. Suspirara um ar fino, embora não demonstrasse o mínimo de preocupação - ou, ao menos, tentava reprimi-la.

Em seguida, o rapaz colocara na mesa a autêntica Bíblia de Abamanu.

— Antes que possam ir, eu ainda preciso explicar algumas coisas relevantes. Até mais do que disse no dia que me conheceram. - disse ele, abrindo o grosso exemplar. - Bem, vamos ver... - folheava rapidamente.

"Charlie, mesmo não aprovando minha participação na missão, até agora não se manifestou. O que ele espera que aconteça?", pensou Alexia, intrigada com o modo que o jovem passara a lidar com o segredo de sua visão profética, a qual recusou-se a revelar. Desde aquela noite, os contatos orais e visuais entre Charlie e Alexia resumiam-se a cumprimentos. Qualquer conversa poderia, arriscadamente, desembocar no "assunto proibido". Charlie mostrou-se indiferente e, aparentemente, perdera o interesse em saber o que a amiga sonhara, talvez fosse por considerar razoável a alegação dela de que o motivo era sua preocupação referente ao sucesso da missão. Mesmo assim, a curiosidade crescente tirava-lhe o sono. Alexia contara sobre Robert Loub, o que passou ao lado dele e os feitos horrendos que testemunhou. Seria este o motivo? A ameaça à sua família ainda estava de pé mesmo com aquele homem cativo? Ignorara aquelas questões, passando a focar inteiramente no processo.

— Aqui está. - disse, apontando para um capítulo. - "As crianças do Cavaleiro da Noite Eterna".

— Crianças!? - indagara Lester, curioso. - Abamanu tinha filhos? - cofiou sua barba preta.

— Não exatamente. Mas sua pergunta levanta uma abordagem muito interessante, Lester. - dissera Charlie, olhando para ele. - Abamanu realmente tinha desejo de possuir uma família... Na realidade, foi uma filha, adotada. No entanto, as três páginas que falam sobre ela estão arrancadas. Até questionei isso com meu pai na época que ele adquiriu o livro, mas ele não soube dizer o porque disto.

— Ninguém do museu verificou com exatidão, ninguém sequer fez uma análise completa? - perguntou Adam, semi-cerrando os olhos.

— Supostamente estas três páginas foram arrancadas pelo próprio Abamanu. Mas isto é parte de outra história que contarei depois. - disse Charlie, novamente folheando as páginas. - "Crianças" no sentido de serem como filhos que ele sempre desejou ter, mas não são crianças de fato. Pode parecer até brincadeira... mas são bonecos. - disse ele, formando um discreto sorriso.

Charlie prosseguira, sem olhar para os atentos e ávidos olhares focados nele:

— São chamados de bonecos Repo. - revelou, lendo um trecho de um parágrafo. - Abamanu os criou com o único propósito de se divertir, pois sempre se sentia entediado com seu reinado beirando à decadência. Normalmente, eram compostos de pele humana e sempre tinham cicatrizes costuradas em seus corpos. Ainda não tão satisfeito, ele recorreu a uma poderosa magia que concedia vida a qualquer objeto inanimado. Daí em diante, os bonecos passaram-se a ser uma espécie de "segundo exército", mas isto só fez diminuir sua popularidade sendo até mesmo motivo de piada pelos outros deuses que mantinham acordos secretos com seu reino e apostavam o quanto fosse que eles desistiriam do contrato assim que o império caísse.

— Espera aí, Charlie - disse Êmina, chegando um pouco mais perto da mesa, o olhar concentrado. - Pele humana!? Abamanu sacrificava humanos?

— Sim. - confirmou em um meneio lento. - Vez ou outra, alguns de seus soldados tinham total permissão para adentrarem em qualquer mundo onde a raça humana povoasse e recolhia suas peles. Eles faziam isso depois de assumirem a forma de lobos selvagens.

Lester obrigou-se a comentar:

— Parece que achamos a mente mais sádica que existe. - disse, olhando tenso para um canto da mesa. - Um completo psicopata divino.

— Bem, preparem-se, agora vem a parte interessante. - disse Charlie, passando mais folhas.

A claridade estonteante da manhã alcançava as janelas retangulares da sala, o sol entrando sorrateiro atravessando o vidro.

— É bom que seja interessante mesmo - disse Êmina, olhando para os outros - com tanta espera, vai ser tarde demais pra ir ao banheiro.

— Ué, porque? - indagou Lester, sorrindo maliciosamente. - Não me diga que você está...

— Calado! - exclamou ela, erguendo o indicador. - Tem sorte de eu não ler mentes. - disse ela, sorrindo discretamente ao voltar-se para Charlie.

Um silêncio constrangedor caiu naquele aposento. Adam fervera de impaciência.

— Já acabaram? - perguntou ele, o robusto rosto enfezado. - Porque sinceramente isso está me fazendo perder cabelos.

— A sua calvície já prova isso. - disse Lester, olhando diretamente para a cabeça de Adam, com um sorriso infantil.

— O quê? - Adam colocou-se diante dele, franzindo o rosto. - Lester, será que dá pra você levar a sério esta missão pelo menos por um minuto?

— E será que dá para vocês ficarem quietos e não perderem tempo brigando como crianças? Rosie ainda está em perigo e devemos salva-la, portanto mantenham o foco! - vociferou Alexia, para o espanto dos outros quatro.

O trio da Legião passara vários segundos fitando-a estupefatos. Lester a olhava de modo estranho, como se não a reconhecesse após aquele manifesto.

— Ahn... o que foi isso? - perguntou Êmina, perdida. - É impressão minha ou a Alexia se irritou com a gente?

A vidente enrubescera instantaneamente, curvando os ombros, praticamente acanhando-se. Olhava para todos rapidamente, sem a menor ideia de como se desculpar.

— Err... eu... Me desculpem. - pôs uma mão sobre a testa. - É que eu não consigo parar de pensar na Rosie, no que ela pode estar passando. Me desculpem, por favor.

— Alexia. - chamou Charlie, o tom calmo. - Sei que quer mais do que tudo nesse momento salva-la. Mas eu preciso que, assim como eu, também mantenha a paciência. Quando harmonizados e sincronizados, foco e paciência tornam-se grandes armas fortalecedoras.

Alexia engolira em seco a declaração acalmante de Charlie, assentindo positivamente, ainda envergonhada pela conduta apresentada.

— Alexia. - dizia Adam. - Nós, assim como você, estamos terrivelmente preocupados com Rosie. Consegue imaginar o quão doloroso foi passar os dias, as noites, imaginando que ela pode não estar mais viva? Que toda a história da perda de memória seja mentira e que na verdade ele a matou? - perguntou, com enorme pesar no olhar tristonho.

A vidente ficara cabisbaixa após ouvir tais palavras. Menou a cabeça lentamente, sem pensar em nada a dizer.

Suspiros pesados foram dados naquele já bem clareado ambiente.

— Foi mal, Charlie. - desculpou-se Lester. - Essa minha empolgação as vezes me faz ficar mais insuportável do que o normal.

— Isso por que você ainda não viu ele bêbado. - redarguiu Êmina, reprimindo uma risada.

— Êmina, você também, por favor. - repreendeu Adam, o olhar austero.

— Ah sim, desculpa. - disse ela, a voz menos cômica. - Pode seguir, Charlie.

— Bem... - Charlie folheava uma última vez, por fim chegando ao capítulo que procurava. - Como eu havia dito anteriormente, Abamanu veio à terra pela primeira vez há mais de 500 mil anos. O local, como já sabemos, foram as Ruínas Cinzas, o antigo templo usado para veneração do deus Mitra, uma divindade solar. Este é o capítulo que eu leria se não tivesse desmaiado naquela hora. Bem... a vinda de Abamanu à este mundo se deu por conta de uma guerra... - fitou os rostos dos quatro. - Uma guerra ocasionada pelo próprio Abamanu por sua falta de comprometimento, bem como sua arrogância sem limites.

O mago do tempo deu continuidade, explicando tudo o que ocorrera no fatídico dia que marcou o destino de dois impérios implacáveis.

— Abamanu foi a primeira quimera divina a assumir um torno e constituir um vasto império. Seus soldados eram recompensados com riquezas quanto mais trabalhavam para construir o palácio. Exploravam, roubavam, caçavam e matavam em todo e qualquer mundo. Alguns, claro, ficavam de fora... como este, por exemplo. Mas Abamanu passou a lembrar do nosso mundo assim que um infortúnio inesperado ocorreu. Suas riquezas, bens valiosos estavam entrando em escassez. Não havia mais condições de recompensar decentemente os soldados. Daí em diante, a impopularidade de Abamanu foi crescendo a nível avassalador... e sua fama tornou-se a pior já conhecida. Seu império tornava-se falho. Em determinada época, sentiu-se obrigado a fazer acordos com outros deuses apenas visando seu próprio lucro. Apenas um se ofereceu a ajuda-lo: Yuga, o deus solar dos ciclos.

Uma atmosfera de mistério absoluto tomara conta do recinto, deixando todos transparecerem suas avidezes para saberem tudo acerca desta história. Êmina mordera os carnudos lábios em ansiedade, ainda segurando o giz em sua mão já suada, e com a outra segurava, por alguns instantes, a barra de seu sobretudo preto desabotoado. Lester alisava seu curto cabelo preto, igualmente apreensivo. Adam estava paralisado, a face robusta séria de sempre, olhando fixamente para Charlie, mais precisamente seus lábios, na intenção de ouvir e fixar com precisão cada palavra dita pelo rapaz.

Charlie novamente prosseguira:

— O acordo, a princípio, tinha como principal condição a divisão de lucros entre ambas as partes a cada tomada de povo, reino, aldeia ou qualquer civilização de qualquer mundo que as tropas dos dois impérios poderiam adentrar. Ouro, prata, pedras preciosas e muitas outras relíquias eram distribuídas, tanto entre eles quanto para os soldados de ambos. Yuga possuía uma visão rigorosa do acordo. Era conhecidamente o deus mais fervoroso e instável dentre os demais. Poderia ultrapassar seus limites se caso sua paciência se esgotasse. E Abamanu fez questão de testar estes limites... cometendo o pior golpe já visto na morada dos deuses. Um plano de infiltração foi descoberto por Yuga pouco tempo depois de Abamanu se mostrar insatisfeito com os rumos do acordo, alegando que seu sócio beneficiava-se desequilibradamente, sendo assim uma injustiça. Os soldados de Abamanu disfarçavam-se de seguidores pobres de Yuga pedindo alimento e exigindo hospitalidade. Aproveitando-se disso, eles furtivamente roubavam os objetos valiosos do deus solar já que tinham a chave de acesso ao cofre, ela foi dada pelo próprio Yuga para Abamanu como prova de sua confiança, para no caso de uma eventual troca de favores e uma divisão de relíquias, basicamente quando dois garotos trocam figurinhas de um álbum, fazendo uma analogia simples. Após Yuga descobrir o plano perpetrado pelo seu sócio, foi junto de suas tropas até o palácio de Abamanu tirar satisfações. Abamanu, defendendo seu ponto de vista, expressou seu descontentamento em relação ao acordo e, quando a discussão chegou ao ápice, exigiu a devolução dos bens valiosos que deu à Yuga, pois seu império era mais digno e a maior parte das conquistas para ele favoreceria as chances de afastar qualquer indício de declínio. Portanto, Abamanu deu seu ultimato pedindo o rompimento do acordo. Yuga, por outro lado, interpretou aquele argumento como uma declaração de guerra.

Os olhares ficavam cada vez mais interessados. Charlie exibia uma calma e paciência assustadora, os raios do sol já penetrando no chão de sua sala e a luz serena às suas costas dando-lhe uma aura sábia.

— O que se seguiu foram confrontos diretos entre os dois impérios. Até que uma das partes não resolvesse tentar entrar em um consenso, aquela guerra não teria fim. O verdadeiro apogeu da guerra foi quando Yuga, em mais um acesso de fúria, pegou Abamanu pelo pescoço e o esmurrando até os confins da morada dos deuses. Ambos mostraram suas armas. Abamanu e sua espada e escudo, ambos dourados. Yuga e sua argola luminosa, ou também chamado de disco solar. A luta se desdobrou... até desembocar na Terra.

— E o que houve depois? - perguntou Êmina, presa pela história.

— Yuga passou a repreender ainda mais Abamanu pelo fato de trazer o combate a um mundo tão frágil e de habitantes tão pequenos. Mesmo assim, a luta continuou ficando ainda mais intensa, um duelo nos céus entre dois deuses. - fizera uma pausa - O poder do disco solar de Yuga era tão grande que os que tiveram a oportunidade de ver a luta pensaram se tratar de um segundo sol, que se movia rapidamente, indo e voltando. Entretanto, a luta não trouxe grandes danos físicos. No fim, Abamanu trouxe seu tesouro, boa parte dele sendo as riquezas dadas por Yuga nas trocas, e fixou aqui neste mundo, nos subsolo das Ruínas Cinzas. Era um lugar onde nem mesmo Yuga poderia ter acesso, pois estava protegido por uma poderosa magia. A única coisa que realmente pertencia à Abamanu era seu talismã, que também deixou na Terra. E então, Yuga disse: "Se com esta conduta insolente queres ofender a honra de meu reino, então, eu mesmo, em dia vindouro, trarei a tu e a teu reino o mesmo que trouxestes ao meu. Das cinzas o teu império reduzirá. Das cinzas o meu renascerá".

— Ui... que ameaçador. - brincou Lester, mas mantendo uma expressão séria.

— Abamanu - prosseguiu Charlie - havia dado uma resposta: "Aguardarei por este dia, com exímia paciência. Uma trégua enquanto idealizo a salvação de meu reino. Este mundo irá se curvar diante de mim, e não serás tua fúria incontrolável que destronará meus planos!". E assim, ambos tomaram as rédeas de seus problemas interrompendo a guerra por tempo indeterminado. No mesmo subsolo onde estava o tesouro, havia a cripta de Abamanu, na qual guardava-se o seu maior segredo. Nenhuma página deste livro fala sobre isso. - olhou para o quarteto à sua frente.

— E como esse Yuga é, afinal? - perguntara Adam, curioso. - Há alguma descrição dele?

— Bem... - Charlie se via novamente folheando mais páginas. - Dizia-se que ele possuía cabeça e asas de falcão, mas um corpo que lembrava o deu um ser humano. Vestia uma armadura de ouro, que brilhava tão forte quanto as penas de suas asas.

Alexia sentiu-se na obrigação de manifestar-se.

— Hum, isto me lembra algo parecido com os mitos do antigo Egito. - pôs uma mão no queixo, pensativa. - Será que há uma relação? Yuga tem algo a ver com os povos egípcios?

— Refere-se aos deuses antropomórficos. - confirmou Charlie, olhando para ela. - Provavelmente haja uma relação sim, visto que Yuga costumava aparecer para os humanos com a intenção de angariar seguidores, como se estivesse claramente competindo com Abamanu, já que ele havia escolhido este mundo para usar como ponto de partida.

Adam semi-cerrou os olhos em um semblante intrigado.

— Ponto de partida para quê?

— Para dar início a um novo império, atravessando diversos mundos e universos. Como ele pretende fazer isso? Tenho minhas suspeitas. Mas isso não vem ao caso no momento, eu devo prepara-los logo. - disse, adquirindo uma estranha pressa.

— Talvez salvando Rosie - argumentou Êmina - conseguamos dar um rumo diferente à esta história, dando a ela um novo final.

— É, mas sabe lá se esse tal de Yuga possa estar tramando algo contra nós. - disse Lester. - Tentar intervir, quem sabe?

— É possível. - concordou Charlie. - Independente do quão difícil a situação se tornar daqui em diante, não deixem de lutar. Minha teoria é de que Rosie esteja em um universo cujo acesso é praticamente invisível, pelo menos à esta altura. Além disso, preciso saber de algo a respeito do receptáculo de Abamanu. Alguma notícia de Hector, o amigo de vocês? - o jovem mostrara uma fala rápida aliada a uma expressão preocupada.

Adam suspirou pesarosamente.

— Infelizmente, não. Já faz mais de duas semanas que estamos aqui e ele sequer ligou de novo.

— Morto com certeza ele não pode estar. - disse Lester. - Mas vai saber, né? Nós o conhecemos melhor do que ele mesmo, ele sempre foi muito habilidoso... considerando que ele está na "caverna do dragão", eu já não tenho tanta certeza. - apresentou um cenho franzido de tanta preocupação.

Inesperadamente, fazendo todos sobressaltarem, o som do telefone na sala reverberou por toda a casa.

Adam, sem pestanejar, saíra correndo a passos largos. "Será ele?", pensou. Fechara a porta com força e fez com que o som de seus passos ecoasse enquanto descia as escadas. Os outros entreolharam-se em um misto de esperança e ansiedade.

                                                                              ***

A vários quilômetros dali, em Londres, Hector postava-se próximo à um telefone colocado em uma mesa de madeira vermelha bem polida. O jovem caçador limpou o suor da testa passando a mão pelos espessos cabelos pretos. Não tardou para que, finalmente, a pessoa que ele aguardava o atendesse.

— Alô?

— Ahn... Adam? É você? - indagou o caçador, para ter certeza.

— Hector! - disse Adam, o tom de voz animando-se. - Achei que nunca mais ligaria. Onde você está?

— Se eu não encontrasse o lugar em que estou agora, não teria nenhuma chance de ligar para você novamente. Mas, sendo direto, estou no Museu de História de Londres, mais precisamente em uma sala secreta... cujo proprietário é o próprio curador do Museu. - revelou, quase aos sussurros. - Alguma novidade?

— Várias. - disse ele, secamente. - Não vai acreditar, mas... nós faremos uma viagem bem louca. - contou, dando um sorriso quase esboçando um riso.

— Presumo que seja para salvar Rosie, certo? Bem, quando eu havia ligado para Rufus ele não sabia dizer com quem vocês estavam contando para salva-la.

— Ele se chama Charlie. É um Mago do Tempo. Olha, é uma história bem longa, já não temos muito tempo... - disse Adam, olhando para o relógio de pulso. - Mas falando em Rufus... Ele tem ligado bastante nos últimos dias, pedindo novidades.

— Com certeza é para matar as saudades de Alexia. - disse Hector, em tom bem-humorado.

— Sim. - Adam sorrira. - Afinal, ela é quem tem atendido na maioria das vezes, já sabendo que era ele. Mas voltando ao assunto... - fez uma pausa, suspirando pesadamente. - Eu preciso saber se descobriu algo. Loub está mesmo aí?

— Ainda estamos tentando achar o cativeiro dele, mas eu tenho um plano perfeito: Irei chantagear Mollock. - disse Hector, firmemente.

— O quê? Me explica melhor isso. - pediu Adam, ficando mais atento.

— Escute: Há pouco tempo, há duas semanas eu acho, nós descobrimos que Mollock está sacrificando alguns de seus soldados que, como você deve saber, são quimeras de nível 3. E como o sangue delas lhe deu capacidade de pensar racionalmente antes que a fusão ocorresse, agora ele está se aproveitando disso para ficar ainda mais inteligente. Vou tentar usar isso a meu favor e ameaçar mostrar essa verdade aos seus soldados se caso ele se recusar a me dizer onde Loub está preso. - disse ele, relanceando as duas figuras que observavam-o.

— Hector, por favor, seja cauteloso. - aconselhou Adam, preocupando-se. - Tudo bem, eu sei que isso parece ser seu sobrenome, mas não me entra na cabeça você peitar um monstro que você mal conhece. Nós enfrentamos vampiros, lobisomens, wendigos e muitas outras criaturas que nós conhecíamos da primeira unha do pé até o último fio de pelo. Eu tenho consciência de que nosso inimigo é algo totalmente diferente do que estamos acostumados a lidar... - fez uma pausa, engolindo subitamente a saliva. - Eu não sei, só mantenha cautela, por via das dúvidas. Se Mollock for tão esperto quanto parece, com certeza vai pensar que você está blefando.

— Não sou como Loub. - disse Hector, logo, inevitavelmente, recordando-se da triste memória que ia desde a morte de seu pai até a fatídica noite no templo dos Red Wolfs.

— Loub não blefou quando mandou um exército de quimeras nível 2 atacar Raizenbool. - retrucou Adam, lembrando-o do ocorrido.

— Adam, eu vou acha-lo, cedo ou tarde iremos nos encontrar... e terei minha vingança. - disse, com uma poderosa convicção. - Mollock, neste exato momento, continua mobilizando seus soldados para tentar nos achar...

— Espera. - interrompeu Adam abruptamente. - Como Mollock soube que você entrou no Museu? Hector, você está sozinho ou não?

— Assim como você, também não estou afim de contar longas histórias. - afirmou, apressado. - Mas digo que não estou sozinho. Enfim, quando nos encontrarmos de novo você vai saber quem é. Mais alguma coisa de que preciso saber?

— Abamanu possui uma cripta localizada nas Ruínas Cinzas. Lá também se encontra um tesouro. - revelou Adam, com máxima concisão.

— Ruínas Cinzas... - Hector parecera recordar-se do lugar vagamente. - Acho que já ouvi esse nome alguma vez. Se eu estiver certo, Mollock provavelmente se sentirá atraído por lá, se caso ele iniciar a expansão do seu reinado antes que Abamanu possa usa-lo.

— Nem me fale nisso, Hector. - disse Adam, sacudindo a cabeça em negação. - Enquanto nós tentamos salvar Rosie, você deve impedir que Mollock saiba a localização do tesouro. Charlie possui o exemplar original da Bíblia de Abamanu e suspeita que haja uma cópia neste museu.

Hector sentiu seu sangue gelar ao ouvir as palavras "Bíblia", "Abamanu", "original" e "cópia" em uma mesma frase. Fora acometido por uma adrenalina incontrolável.

— O quê!? Vocês viram o livro original!? - disse, em voz alta. - Mas pode deixar, percebo que está tão apressado quanto eu. Deixemos os detalhes para quando nos reencontrarmos, eu espero...

— Nós vamos nos reencontrar, Hector. E vamos lutar nesta guerra juntos e vamos vencer. - disse Adam, esbanjando uma perseverança intensa e naturalmente contagiante. - Você... é meu melhor amigo. Por isso eu peço novamente: Não morra.

— Idem. - respondeu Hector, mergulhando seus sentimentos em uma profunda saudade. - Preciso ir. Tenho que agir com meu plano, não resta muito tempo.

— Sim, vá. - Adam deixara uma lágrima cair, mas logo reavendo o semblante determinado. - Faça o que pedi. Impeça Mollock.

— Sim. Boa sorte, Adam, para todos vocês. Tragam Rosie viva. - disse Hector, um tanto cabisbaixo ao rapidamente lembrar da parceira.

— Isto é uma promessa, saiba disso. - salientou o corpulento caçador. - Ahn... acho que devo desligar, já estão me chamando. - disse ele, após ouvir a voz de Alexia vinda da escada chamando pelo seu nome. - Até mais. Nos vemos em breve.

— Até. - disse Hector, timidamente. E desligara.

                                                                                ***

Em seu trono de mármore, Mollock ostentava, em uma estranha expressão entediada, um cálice dourado no qual continha uma certa dose do que parecia ser sangue... um sangue cuja consistência jamais vira antes, distinta de qualquer ser que já atacara - se é que fazia questão de sujar suas mãos em um ataque premeditado.

Na outra mão segurava um livro grosso, com uma capa de couro beje com um símbolo irreconhecível no centro. As páginas estavam nitidamente amareladas, denunciando a antiguidade do objeto. O rei balançava levemente o cálice com a bebida fresca dentro, entediando-se a cada segundo. Há pouco tempo atrás, ordenara, novamente, uma busca desenfreada à procura dos supostos intrusos. Há dias reprimia seu aborrecimento a cada vez que a falta de notícias evidenciava-se. Contudo, como dispunha de um vasto acervo de livros, seu entretenimento barrava qualquer indício de um acesso de fúria.

Aguentou por mais cinco minutos. Após o período, se exasperou em um desconforto.

— Ah! - urrou, jogando o livro no chão. - O que eu devo fazer para tornar guardas tão fiéis em servos com mais bom gosto na hora de escolherem a diversão de seu rei?!

Os soldados que estavam presentes no salão permaneceram em silêncio, segurando lanças de prata - outrora roubadas das armaduras dos cavaleiros medievais. Mollock esperava um mínimo pedido de desculpas por parte deles.

— Muito bem, então é assim. - confortou-se no trono novamente, dando um gole na bebida. - O silêncio é sempre a melhor resposta, não é mesmo?

Um deles, que postava-se próximo à seu trono, sentiu-se no direito de falar.

— Mas, senhor, havia nos pedido para trazer um livro de cada vez. Além disso, livros maiores foi exatamente a preferência que o senhor tivera nos últimos dias.

— Tamanho não significa nada, seu palerma! - redarguiu Mollock, ríspido. - Queria um livro com o qual eu pudesse me divertir aprendendo mais e mais, mas o que me trazem é um monte de páginas reunidas com letras que formam palavras que não sei ler!

— Nós não sabíamos por...

— Claro que não sabiam! - respondera grosseiramente, logo tomando mais um gole do sangue. - A única coisa que pareciam pensar era em agradar este promissor rei com qualquer lixo que encontrassem neste lugar. Francamente, estão me decepcionando.

O guarda dera um suspiro leve, seu focinho contraindo-se. O olhar da quimera estava tristonho e exausto... parecia estar entorpecido de fome.

A porta do salão finalmente se abrira com um soldado entrando com postura devidamente erguida, portando sua lança. A quimera dirigia-se à Mollock segurando, numa outra mão, um livro... que logo pôde ser reconhecido pelo rei.

— Perdoe-me senhor pela excruciante demora. - dissera o guarda, mantendo o ar soberbo. - Vim lhe trazer uma outra versão deste livro... que presumi que o senhor certamente não iria aprovar.

Mollock deixou se formar um sorriso em seu robusto rosto canino. Olhou diretamente para o exemplar na mão do guarda, reavivando as esperanças.

— Finalmente alguém competente. - disse ele, mexendo calmamente o cálice. - Esta versão está na língua padrão?

— Sim, senhor. - confirmou o soldado, deixando a lança no chão e ajoelhando-se em seguida. - Algum humano muito habilidoso tratou de traduzir o que o senhor estava lendo. Faça bom proveito. - estendeu os braços, entregando o livro.

Mollock inclinou-se para pegar o exemplar, uma segunda cópia traduzida. Havia uma réplica exata dela, naquele instante ainda em posse da Legião estando guardada na cabana em Kéup. Como poderia haver duas cópias traduzidas e adaptadas do original? Mistério que certamente faria o pulso de Hector tremer nas bases. O jovem caçador não estava tão distante de alcançar as verdades escondidas.

Colocara o livro sobre o braço direito do trono. Assentindo positivamente, Mollock ordenara para que o guarda se retirasse. Bebera mais alguns goles do sangue viscoso em seu cálice. O gosto amargo impregnava-se em todas as camadas de sua língua. Por um momento, examinou mentalmente o sabor da bebida, avaliando se poderia ou não terminar de toma-la bem como tirar uma conclusão acerca da decisão. Olhou para o pouco que ainda restava no fundo do cálice. O sangue era de um vermelho escuro, praticamente beirando ao púrpuro, mas parecia negro se fosse visto em um ambiente com menor luminosidade. Sentiu-se hipnotizado enquanto estava no limiar de uma divagação ao olhar para o líquido.

Pegou-se lembrando do demônio que matara impiedosamente... afinal o sangue que estava bebendo pertencia à ele.

                                                                            ***

— Mestre! - exclamou um soldado, entrando invasivamente na ala das armas e indo na direção de Mollock. - Ouvimos sons bastante altos de onde estávamos. O senhor está bem? O que houve aqui? - perguntou, logo parando. 

Mollock estava agachado diante do corpo desfalecido e estraçalhado da criatura bestial que o afrontara... Se via embebendo-se do sangue do demônio, como se estivesse em frente à uma rica fonte inesgotável que saciasse qualquer sede irreprimível. O corpo da besta estava completamente rasgado do tórax ao abdômen. Mollock espremia o coração do monstro, fazendo algumas artérias espirrarem grande quantidade de sangue fresco direto para sua boca. 

O guarda aproximou-se mais alguns metros para chamar sua atenção. 

— Mestre... não está me ouvindo? - inclinou a cabeça para um lado a fim de ver o que o rei estava fazendo. 

"É como se uma parte de mim estivesse clamando por energia.", pensou, enquanto fazia o órgão bombear mais sangue à sua boca. "Sinto como se bebesse do meu próprio sangue.". 

O soldado, novamente, insistira. 

— Mestre, algum problema? Quem é este monstro caí... 

— Vá embora. - disse Mollock, friamente. - Não há nada aqui de que precise saber. Apenas alerte os outros pelotões para iniciarem uma busca por todo o palácio. Supostamente, há intrusos aqui. 

— Mas, senhor, se ao menos pudesse me explicar... 

— Questionar não é seu trabalho, soldado! - vociferou ele, olhando para a quimera por cima do ombro, o olhar fulminante de raiva. - Agora saia daqui e faça o que ordenei! - dava para ver suas presas sujas de sangue. 

Sem reclamar, o guarda saíra imediatamente do recinto exatamente por onde entrou. O bater forte das portas duplas ao fecharem-se trouxe de volta o silêncio. 

"Eu não entendo!", pensara, largando o coração, já um tanto seco. Ainda de quatro, pôs as mãos no chão, mais precisamente mergulhando-as na enorme poça de sangue que se formou. "Quem realmente sou eu? Estas questões de existência e seu sentido... Jamais pensei que fosse assim. Quanto mais respostas encontro mais perguntas se formam. Mas não me sinto caído, não me sinto abatido. Então, porque estou com uma mente tão carregada e tão inquieta? Por que!?", disse em pensamentos, arranhando lentamente o chão e manchando suas garras com o líquido grosso e vermelho. 

"Preciso desse sangue.". Ergueu o olhar penetrante para o corpo de demônio. "Sinto-me estranhamente revigorado, como se algo estivesse me possuindo pouco à pouco.". 

Passos longínquos foram ouvidos aproximando-se da ala. Voltando-se para a porta e levantando-se, Mollock cresceu as expectativas, esperando que seus soldados providenciassem recipientes para armazenar o líquido, bem como saber se livrar do cadáver da criatura infernal. 

                                                                         ***

— Mestre? Mestre! - chamara um soldado, tentando acorda-lo de seu "sonho".

— Ah, o quê? - voltou-se para ele lentamente, pondo o cálice no braço direito do trono. - O que quer?

— Não... não é nada, o senhor estava pensativo. Eu vim trazer notícias. - disse o guarda, a postura resistente como uma rocha.

Mollock se acomodara no trono ao ouvir a última frase, denotando uma certa animação.

— Relate-me o que lhe repassaram. - exigiu.

— De acordo com as suspeitas de alguns, é provável que os intrusos estejam confinados nas salas secretas. Ainda não conseguimos ter acesso a quase nenhuma delas, pois algumas precisam ser abertas com senhas... como se fossem cofres gigantes. - contou o soldado.

Mollock fizera uma cara de enjoo ao aparentemente se decepcionar. Pegara o livro à sua esquerda, abriu-o e começou a lê-lo, ignorando completamente a presença do soldado à sua frente. Deu um suspiro rápido, as narinas de focinho ficando mais evidentes.

— Ahn... senhor... - dizia a quimera, um tanto constrangida, fitando seu mestre. - Não vai comentar a respeito?

Mollock erguera os olhos amarelos, encarando o guarda com um infame desdém. Voltou-se novamente à leitura, sem se preocupar com a sensação que havia causado em seu subordinado. Os outros soldados lançavam risadas baixas de satisfação ao vê-lo naquela situação, a qual seria digna de escárnio eterno por parte de todos os pelotões. Algo que certamente nenhum súdito pensaria/gostaria de sofrer quando esperava querer agradar seu rei.

Mollock retornou seus olhos às páginas do livro, escondendo um discreto sorriso de satisfação ao dar-se conta do conteúdo. Para se livrar da irritante e obstinada presença do soldado, teve de dar uma ordem rápida e direta.

— Está bem. Continuem a busca e tentem decifrar as senhas das salas. Quero as cabeças destes invasores postas na minha frente em pouco tempo. - mandou, percorrendo seus olhos para cada parágrafo contido no livro.

Uma pequena ponta de um papel podia ser vista entre a última página e a contracapa. Não tardou para que Mollock pudesse percebe-la, a tempo de não se prender totalmente à leitura e se desconectar da realidade. Franzira o cenho, em curiosidade. Puxou de leve a ponta. Revelou-se um pequeno bilhete dobrado.

Pondo o livro em seu colo, mantendo-o aberto, Mollock focara suas atenções unicamente no bilhete de papel branco. Desdobrou-o e leu a mensagem escrita. O texto exibia uma lista com cinco nomes.

"Contribuíram para a escrita deste conteúdo: Ethan Nevill, Bernard Von Trask, Ronnie Moore, John Crannon, Robert Loub (membros da nobre fraternidade Red Wolfs)"

O último nome fez o coração de Mollock quase ser vomitado de tanta emoção.

Sorrira, mostrando suas brancas e pontiagudas presas.

— Não posso acreditar. Papai.


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