A Aurora de Castelobruxo - A Harry Potter Story escrita por ThaylonP


Capítulo 18
O Ataque




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742117/chapter/18

No Domingo, ainda que soubesse que havia mais uma matéria a estudar, a menina estava preocupada com outras duas coisas. A primeira, quis saber ao descer à base da torre acompanhada de Inara, esperando que encontrasse o amigo que havia deixado para trás. Esperou, relatando como vira o homem chegar imponente, cheio de nomenclaturas, e enquanto isso, uma turba de alunos de Anhangá a cumprimentava com alguns salves, dirigindo-se ao café da manhã. Uns até, notificando sua glória sobre o evento em que se envolveu, denominavam-na Caçadora da Aurora ou Caçadora de Anhangá (existiam variações); outros, mais apegados ao acontecimento do início do ano letivo, começaram com o termo Aurora de Anhangá, marcando o início da volta da casa no poderio. Ignorava a maior parte desses apelidos, afinal nem sabia reagir a eles, porém, não podia negar que se sentia lisonjeada, de vez em quando.

— Não acredito - Inara pontuou, cruzando os braços, assim que um quarto grupo passou.

A garota concordava, mas preferiu não dizer. Minutos depois, Antonino desceu às escadas bocejando, confirmando a presença da garota na sala de descanso localizada à base da torre. Aurora ergueu-se do sofá vermelho de uma vez, e viu que seu movimento pareceu chacoalhar os archotes rubi-citrino ao redor.

— Aurora - cumprimentou, num sobressalto. - Bom dia - disse num timbre que misturava a pompa com a dama e a sonolência.

— Nino, eu tava te esperando - o rosto do menino se iluminou. - Como foi com seu pai?

Ele demorou para reagir à pergunta, fitando as duas num outro bocejo.

— Desculpa - disse, quando a boca fechou e os olhos piscaram. - Foi... tranquilo.

— Tranquilo? - foi alta demais, surpresa. - Como assim?

— É, bom... - começou, levando a mão aos bolsos do paletó. - nós conversamos sobre os pontos na minha ficha. E é claro, ele trovejou para cima de mim com tudo que pensava sobre o meu comportamento. Em ofidioglossia, é claro, como a gente sempre faz quando tem que discutir qualquer coisa e não quer que pessoas em volta entendam - a menina imaginou a cena perfeitamente, os dois chiando, chicoteando e sibilando, numa gritaria feita de sussurros. - Literalmente trovejou. Mas, eu não fiquei parado não - o menino retirou Celeste do esconderijo, e a cobra rastejou até o pescoço de Nino. Com a mão livre, ajeitou a mecha que escapou para a testa. - Eu joguei tudo que eu pensava pra ele, de volta na nossa língua. E disse o porquê tinha feito tudo que fiz - a boca apertou, como se finalmente tivesse parado para pensar no que acontecera. - Não citei todo mundo, só você, Aurora, porque ele te viu comigo e perguntou se a estória tinha algo a ver, e tive que dizer que sim. Nesse momento, ele até ficou um pouco alegre, mas voltando ao assunto logo mais, gritou umas boas e gritei um monte de volta. Foi... divertido.

— Divertido? - a boca aberta quase a fazia babar. - M-mas...

Ela estava confusa. Há poucos meses, ele mal conseguia conceber a ideia da mãe negativar sua poção, e agora conseguia discutir em língua de cobra com o pai auror.

— Foi uma coisa nova - continuou, explicando o porquê de não fazê-lo antes. - Percebi que não tinha porque escutar calado. E por mais que eu tivesse fazendo algo que ele aprovaria... - começou.

— Nino - Inara saltou, tão rápido como um disparo de um alarme.

Os dois trocaram uma sessão de confidências curtas, e Aurora ficou de fora. Gostaria de perguntar o que estavam escondendo afinal de contas, mas tinha quase certeza que sabia. Como Inara dissera na Sala Comunal, tudo estava muito na cara.

— Eu sei, eu sei. A questão é que, fazendo o que eu estava fazendo - virou os olhos para cima, como se para lembrar -, lendo O Núcleo na biblioteca, saindo à noite pra caçar valentões ou até... fazer amizades com nascidos-putos...

Aurora sentiu-se vibrar, de repente. Aquele termo lhe deu uma certa angústia.

— ...eu tava fazendo, principalmente porque eu queria fazer - disse, com os olhos fitando o chão. Havia um ar de iluminação no menino. - Sei lá, sei que parece estranho, mas foi o que pareceu.

Tentou entendê-lo. Tinha muito ali que ela não sabia dizer ao certo, mas conseguia perceber que, no geral, o amigo estava feliz com o que havia absorvido. E para ela, isso era suficiente.

— Eu fico feliz por você, Nino - declarou.

O garoto abriu um sorriso. Era bobo, muito diferente da postura que tentava obter, que trazia um tom de conquista por trás das sobrancelhas franzidas, das covinhas falsas e da dentição perfeitamente branca. Singelo, aquele abrir de lábios parecia mais real do que qualquer outra coisa que Nino dissera desde que o conheceu.

Os três seguiram para fora da torre, e o assunto quase mudou assim que a clareira os iluminou com o sol da manhã. Nino, entretanto, resolveu anunciar:

— Ah, eu e Celeste fizemos as pazes também!

— É, eu... tô vendo - Aurora já havia se afastado dele, deixando Inara caminhar ao lado, usando-a como escudo. - Mas o quê você fez? Vai oferecer a gralha da sua mãe mesmo?

— Não - Nino riu, pensando na possibilidade. - É só que quando cheguei no quarto, xingando em todas as línguas que sabia algum palavrão, Celeste teve que me ouvir sobre o que aconteceu. E, digamos que, entre os ódios, ela odeia muito mais meu pai do que me odiava - ele acariciou a cabeça da serpente, que lambeu o ar. - Então, fizemos uma trégua, e deixo que ela saia à noite pra caçar.

— Não é ilegal? - Inara quis saber.

Nino deu de ombros, sem se importar em saber responder. Aurora deu um leve sorriso torto, surpreendida.

— Quem te viu quem te vê - comentou, num riso frouxo.

O garoto concordou com um aceno, mas logo ergueu os olhos, lembrando-se de algo.

— Oh, Aurora, esqueci de agradecer-te - todo o menino voltou de uma vez só. - Cara dama, sinto que devo...

— Eu retiro o que eu disse - ergueu as palmas, rindo. - Não precisa me agradecer por nada, não.

Inara acompanhou tudo com uma surpresa, quase a mesma da amiga, porém, polvilhada com um revirar de olhos constantes. Contudo, interrompendo a conversa dos dois, quase prontos para subir as escadas do castelo, apontou para algo na direção da torre da casa dos gaviões, Aurora franziu o cenho.

— Aquele não é o Matheus? - perguntou, para uma confirmação irritada da amiga.

— É sim, e aquela atrás dele é Letícia - confirmou ainda, como se fosse a informação mais importante da cena.

Os três conseguiam ver uma passada rápida do garoto, enquanto atrás, como um urubu aguardando a morte de um bicho doente, a ex-monitora rondava-o tentando uma investida, tentando falar algo que o menino não queria ouvir. Aurora pensou que não importava o que ela diria. Viu-o abaixar a cabeça, dizer algo para repreendê-la e caminhar na direção dos amigos, que já o avistaram de longe. Aproximou-se, mudando para uma expressão alegre, longe dela. Letícia, por outro lado, manteve a expressão fechada debaixo de, além da echarpe, uma touca escondendo os cabelos; outro elemento que desafiava o clima.

— O que ela queria? - perguntou quase que imediatamente quando o menino juntou-se a eles.

— Bom dia para você também, Aurora - disse, com um sorriso.

— Matheus, é sério - respondeu, sisuda.

— Eita, calma - o menino surpreendeu-se, curvando a boca. - É só coisa besta... de pedir desculpa e tudo mais.

Aurora concordou, vendo que o rapaz estava se importando tanto quanto ela em questão a não aceitar aquelas desculpas. Ainda assim, conseguia ver alguns vacilos quando desviava do assunto, citava Celeste no ombro de Nino ou afirmava a feição emburrada de Inara. Ele ainda não tinha certeza.

— Magizoologia? - perguntou Nino quando sentaram-se na mesa do refeitório.

Aurora avançava num mingau de aveia, que devia estar enfeitiçado de tão bom. Matheus, como sempre, comia misto de pão com queijo e presunto, com manteiga passada de ambos os lados, enquanto tomava um achocolatado com leite de cabra.

— É - respondeu, lançando partículas da massa na mesa. Os lábios eram desenhados por um rastro da bebida. - Eu tô ficando bom nisso, podia até ensinar a Aurora, sabe?

— Sei - duvidou Nino, arrancando um pedaço do bacon para lançar à boca.

— É sério! - rebateu Matheus, divertindo-se com a dúvida do rapaz sobre suas habilidades. - Olha, quer ver, Aurora, você lembra do meu macaco Chico, né?

A menina forçou a mente. Como não fazia as aulas de Transfiguração com Matheus, falhava em vê-lo carregando sua mascote consigo de um lugar para o outro, mas lembrava-se de cada grito estridente que o bicho, preso na gaiola, lançava ao ar, enquanto esperavam os Equiros na Estação Novecentos.

— Lembro, o que quê tem?

— Não é um mico? - perguntou Nino, apertando os olhos.

— É um sagui - corrigiu Inara, considerando que falava em definitivo.

— Ele não deixa de ser um macaco! Macaco é macaco - inferiu Matheus, podendo finalmente continuar. - Eu já lido com ele melhor, tanto que ele nem me arranha mais quando tento colocá-lo na gaiola.

— Não? - questionou Nino, com ambas as sobrancelhas muito levantadas.

— Tá bom, arranha um pouquinho ainda, mas é só porque ele não gosta de ficar ali preso - admitiu. - Paguei mico. Olha, viram essa!? Juro que não foi de propósito — disse, quando notou que fizera a piada por engano.

O grupo inteiro riu, até Nino que quase empurrou o prato para frente com as batidas que deu na mesa. Aurora estava prestes a se engasgar com o mingau. Continuaram a falar sobre os animais, inclusive os micos que o garoto presenciara nas turmas. Incluiu em seguida, com muito afinco, que vira muitos em Jaci e Guaraci com uma espécie de primata minúsculo que cabia na ponta de um indicador, e sabia que, como não podiam existir macacos daquele tamanho, tinham errado algum Feitiço de Encolhimento. Inara, contudo, estragou a alegria do menino quando disse que eram saguis-anões. Ainda contou, logo depois de ser corrigido, que as meninas de Guaraci disseram que propositalmente haviam escolhido micos-leões-dourados para combinar com as faixas de suas casas, sabendo de antemão pelos pais que seriam selecionados para essas.

— Isso é coisa de maluco - comentou Inara, balançando a cabeça.

— Eu achei até legal - comentou Nino, e os amigos viraram para ele num movimento único. - O que foi? - seguiu, ajustando a sobra do paletó.

Houve mais um momento descontraído antes que Inara chamasse por Aurora. Na verdade, o jeito dela chamar foi se levantar e conceder-lhe um olhar, onde a menina entendeu que precisava estudar.

Contudo, despedindo-se dos amigos, viu uma pessoa passar por cima de seu ombro, lembrando-a da segunda coisa que precisava fazer no dia. O inspetor Javier transitava entre as carteiras, em direção a uma abertura que guiava-o para outra seção do castelo. Mesmo nessa passada, estava apressado como sempre, retornando à sua rotina normal. Aurora reconheceu que o havia perdido, precisava de um outro momento para perguntá-lo sobre o globo com fumaça vermelha.

Atravessando o salão, a menina indígena desceu as escadas com uma pressa que Aurora não entendeu. Seguiu até igualar seu passo, pronta para perguntar o porquê do esforço.

— Eles aparecem melhor a essa hora do dia - disse, alcançando a parte gramada da clareira, rumando em direção à floresta.

— Ah, entendo, mas - Aurora acelerou ainda mais o passo -, nem a professora Negrini achou eles, por que acha que vai conseguir achar?

A menina adentrou a mata, passou pelos galhos que dividiam as primeiras passagens e ambas sentiram a umidade mudar, num frio diferente do castigo de mormaço da clareira. Pulou um tronco, evitando uma família de cogumelos, passando à direita deles. Aurora traçou o mesmo caminho, e a resposta de sua pergunta veio:

— Não é que ela não achou. Ela não os viu - respondeu.

Inara tinha uma maestria naquele terreno, andando como se estivesse em uma planície extensa. Se esgueirava por entre galhos, pulava em pedras para guiar seu percurso, quase não fazia barulho algum sobre os galhos. Enquanto isso, Aurora capotava, esparsava folhas e limpava terra dos calçados.

— Como não os viu? A gente viu a estátua, como não ver um bicho daquele? - comentou, vendo que a menina parara num tronco.

Tomou posição ao lado dela, se sentando, enquanto a outra colocava um pé e encarava à frente.

— Olha para frente - disse, apontando uma direção, numa divisão em 'Y' entre dois ingás. - Você tá vendo?

Aurora encarou o lugar, conseguindo visualizar a beleza da floresta. Ambas começavam a formar galhos a partir de muito cedo no tronco, e se curvavam como se fizessem uma reverência ao solo onde eram plantadas. Mas, tirando isso, nenhum Ninfusgo.

— Não - respondeu.

— É desse jeito que dá pra não ver um bicho daquele - comentou, saltando o tronco e caminhando em direção ao que apontava.

As duas mãos vinham na frente, pedindo calma quando se aproximava. De repente, a menina pediu que os passos de Aurora parassem com um gesto, e ela obedeceu. Inara continuou seguindo, agora baixando a cabeça numa reverência, medindo um passo de cada vez. E por fim, acariciou o ar, tocando algo que a menina não via.

— O quê... tem...

Não conseguiu perguntar, pois a menina mexeu a cabeça, confirmando. Tocou o nada mais uma vez, e fez um movimento único, de cima para baixo, num carinho. As mãos se afundavam em alguma coisa, enrijeciam, algo que não daria para fazer caso ela estivesse tentando fazer uma piada ao tocar no nada.

— Então... - tentou perguntar, se aproximando com muita cautela. - a professora...

— Ela não sabe. Quer dizer, não sei ao certo ainda - a voz vacilou. - Talvez ela veja e quer que continuemos procurando, ou talvez não veja mesmo, e acredite que são ariscos. Não quis desmenti-la na frente de todo mundo, ela ensinou tudo certo sobre eles, afinal - disse, pigarreando baixo. - Ou quase tudo. Ninguém acreditaria se eu dissesse, também.

— Mas - Aurora caminhou, como se desse a volta na criatura que não via - o que eram aqueles rastros?

No próximo passo, pisou em algo pegajoso, com um tom verde-musgo fluorescente. Foi uma espécie de resposta à sua pergunta.

— Eles deixam isso por onde passam. Se tem muito disso, é onde estão - a menina parou de tocar a criatura, tomou um passo de distância. - Os xavantes contam histórias que os Ninfusgos eram bons presságios. Se tinha um perto de você, é porque você estava seguro. Alguns iluminados — disse, sentindo um tom de tristeza por trás do termo - que não podiam os ver, citavam as marcas brilhantes que mostravam o caminho de volta para a casa.

A menina apontou à frente, e Aurora parou para olhar a direção. Uma lufada de ar passou por ela, como se estivesse diante de um trem em movimento. Por onde o vento passou, mexeu-se a folhagem, e muitas delas adquiriram o tom brilhoso de antes, traçando - conseguiu entender - as pegadas mágicas dos Ninfusgos. Estava maravilhada, ao mesmo tempo, cheia de dúvidas. Inara sentou-se no mesmo tronco de antes, e Aurora repetiu o movimento, mesmo sabendo que estava agitada demais para se acomodar.

— E, por que você vê eles? - perguntou.

A menina suspirou.

— Você tem que merecer - respondeu, fitando um par de cogumelo aos pés da menina. Olhando com atenção, Aurora viu que estavam crescendo, aumentando as formações laranjas semelhantes a orelhas. - Mas não é de um jeito bom.

— O que quer dizer? - perguntou, mas ao ver a esperança sumir dos olhos da menina, pensou se era a melhor coisa a se fazer.

— Quero dizer que... - não conseguiu falar, e Aurora ofereceu para que ela parasse, mas desviou-se para o estudo; a coisa que as levaram até ali. - Para ver os Ninfusgos, você precisa presenciar uma tragédia.

Aurora gelou, a voz da menina fora soturna.

— O quê? - balbuciou.

— Os Ninfusgos são espíritos de caridade - começou, unindo as mãos, mexendo com os polegares. - Eles julgam seu espírito, e então aparecem se reconhecerem que você passou por uma experiência onde necessita da presença deles.

A bruxa suspirou, depois engoliu a saliva para aliviar um nó na garganta.

— Então... você passou por uma experiência dessas - não era uma pergunta.

Inara acenou, confirmando a frase.

— Como foi? - Aurora resolveu arriscar.

A garota indígena ergueu o olhar, fitando o pouco céu que escapava entre a copa das árvores. Um dos galhos lhe atraiu mais atenção, e enquanto sua boca abria, preferiu olhar para a porção de folhas que tentavam se desprender com o vento.

— Desde que eu nasci - começou a falar, como se estivesse longe dali -, eu uso isso daqui. Minha mãe pintava em mim. Mas só bem mais tarde, descobri o que era - falou, referindo-se à pintura vermelha como uma faixa sobre os olhos. Aurora não se lembrava que estava ali, já havia se acostumado tanto que mal notava.

— E o que é? - Aurora perguntou.

— É um traço que sobrou de nós, panarás, depois que a gente teve que se juntar e misturar a outros grupos, porque nossa tribo era atacada com mais frequência do que as outras - disse, e lembrando-a do trecho que haviam lido da História, seguiu: - E a gente descobriu o porquê. Haviam feitiços de proteção, mas sempre tínhamos de nos mover para outro canto, pois alguém denunciava que estávamos onde estávamos, então, ficava mais fácil atacar. A faixa - continuou explicando, passando a mão, adquirindo um pouco de vermelho nos dedos - representa que continuamos a ser quem somos. É uma preservação - deixou os olhos encararem Aurora, por fim.

A menina não disse nada. Não sabia se devia. Então, ouviu-a continuar.

— Mas eu não costumava usar. Achava que era... feio, não sei. Gostava de como os hupdas se pintavam, e preferia adotar a deles - quando o disse, fez um movimento com os braços, como se os pintasse. - Até que...

A porção de folhas que a menina fitava se desfez, carregada pela ventania, e atrás delas, surgiu um ninho abandonado, revelando-se para o ar que também tentou o derrubar.

— Eu tinha ido pescar com meus irmãos. A gente brigou um pouco, pra ver quem levava o quê, já que Mabi tinha pegado muito mais do que todo mundo, outra vez. Ele resolveu dividir, e acabou me dando o maior, já que eu era a menor. E acho que também era por ser a única menina - deixou escapar um leve sorriso, que morreu assim que continuou a história. - Chegando lá, os vimos chegar, e não demorou muito até começarem a atacar. As peles claras, os uniformes justos ao corpo, os cajados. Dispararam sem olhar a quem - conseguiu passar por aquela parte com dificuldade. - Nós corremos, até conseguimos nos juntar aos nossos pais, nossa avó, e sair da área de acerto deles. Achamos que estávamos livres, até que elas chegaram.

— Quem? - perguntou Aurora.

— As Caiporas - respondeu, e a voz se entrecortou, sacudiu-se inteira. - Ainda lembro de cada uma delas. Aquelas carrancas, debaixo do cabelo vermelho. Pareciam derreter. As bocas abertas maiores que a cara, os dentes pontiagudos, os olhos lacrimejando...

— Inara, não - disse, quando a menina pareceu que estouraria ao falar do relato.

— Já... - perdeu-se na lembrança, mas não deixou de contá-la. - Já tínhamos ouvido falar delas, mas achamos que podíamos nos livrar, se não as irritássemos. Mas... elas já pareciam irritadas - os dedos que brincavam pararam, e ela apertou ambas as mãos com força. As dobras quase desapareceram, de tão brancas. - E então atacaram. Mabi colocou-se na frente, mas foi o primeiro. E... e eu vi. Eu vi os olhos dele se revirarem, ficarem brancos e... sumirem. Depois, foi a vez do rosto. Era como se, tudo que ele um dia foi começasse a evaporar na nossa frente - a menina não conteve as lágrimas, mesmo que tentasse. Rolaram pelo rosto, despencaram no cogumelo, que agora tinha quase a largura de uma palma. - Só sobrou pele da cara dele. Hoje... eu nem lembro mais como ele era.

A menina fez uma pausa, que Aurora compreendeu por completo. Em cima, no galho, o ninho se partiu, desprendeu-se de lá e chocou-se contra o chão.

— Nossos irmãos tentaram ajudar, mas cada um foi pego por uma delas. Elas se alimentavam deles. Tentamos fugir, tentamos feitiços, e ainda assim, eles foram levados. Raoni, Yahto, Iburá, Joaci... um por um. Meu pai foi o último - disse, limpando uma gota que não teimou a cair mais uma vez. - conseguiu correr e nos colocar num bote pra escapar, mas minha mãe acabou sendo tocada por uma delas. E já que elas não atravessam água, estávamos salvas.

A menina suspirou, outra vez. Mesmo tendo contado algo horrível, pareceu que o pior havia sido deixado para trás.

— Quando alcançamos o outro lado, minha avó e eu tentamos ver como minha mãe estava, depois do ataque. Ela... ela... tinha sumido. Não por inteiro. O corpo ainda estava lá, mas a mente se perdera. Ainda assim, algumas partes haviam sobrado. Ela conseguia reconhecer minha avó, e mostrou isso tocando na faixa vermelha sobre os olhos dela, mas, quando chegou a minha vez... - a menina parou a história, não conseguindo conter o choro.

— A marca não tava lá - Aurora afirmou, se vendo lacrimejar.

— Não - concordou, tocando a própria faixa. - Desde então, eu uso. Mesmo que ela não lembre ainda - a menina conteve um restante de frase. Aurora traduziu: e mesmo que minha mãe nunca lembre. - Eu ainda quero me lembrar.

Aurora se perdeu por um longo momento. Fitava a floresta, aguardando ter o que dizer, e além disso, esperando que a mesma mata te desse uma maneira de como dizer qualquer coisa que fosse.

— Quantos anos você tinha? Sabe... quando viu tudo isso? - questionou, apertando a vista.

— Sete - respondeu.

— Não é algo que valha ser merecedor, presenciar uma crueldade dessas para enxergar essas criaturas - disse, optando pelo óbvio ao respondê-la.

— Não, não é - concordou a menina, limpando o rosto. Mas em seguida, abrindo um sorriso singelo, e erguendo a mão para o vazio mais uma vez. Dessa vez, até Aurora sentiu uma reenergização, assim que um vento mais concentrado como um bufar, surgiu no tronco próximo a elas. - Mas a paz que trazem, é boa, de verdade - afirmou a menina, acariciando o bicho que não via. - Às vezes olho da minha janela e tento vê-los, principalmente quando sinto falta de casa.

— E funciona? - Aurora tentou, entortando a boca.

De tudo que ela contara, se relacionava com aquela seção da estória.

— Funciona - rebateu a garota, querendo mudar de assunto naquele momento e aproveitando a brecha para isso. - Para o quê você quer paz?

Aurora ergueu-se do tronco, pensando em coisas que poderiam ser acalmadas com a presença dos Ninfusgos.

— Ultimamente tenho tido algumas coisas que um Ninfusgo serviria mesmo - disse, depois percebeu o quanto havia sido insensível, lançando aquilo logo depois daquela história ter sido contada. - Desculpa, desculpa, eu...

A criatura acalmara seu espírito, e mesmo em seu estado habitual, a amiga deixou que aquilo passasse.

— Do quê está falando? - Inara devolveu. 
Pensou em falar sobre os pais, e como estava ressentida de não receber uma notícia desde que chegara. Pensar nisso, porém, a levou para outro lado; as afirmações que Ruína fizera sobre o assunto, lembrando-a que fosse para o que fosse, não era digna. Olhando à frente agora, tentando enxergar a criatura que a menina enxergava, notou que também não merecia vê-los. Deveria sentir-se agradecia por isso, mas apenas sentia-se deslocada, mais uma vez.

— Ruína. Ela tá - calculou o que ia dizer - pegando demais no meu pé. A da vez é que... eu tenho medo de usar o Orabutã. E que eu não o respeito.

— Eu concordo - rebateu Inara, sem pensar duas vezes.

Aurora sobressaltou-se.

— O quê!?

— Pensa bem - a menina refez o caminho da amiga, ficando de pé de frente a ela. - Você tem mesmo medo de usar.

— Mas do que você tá fal...

— Teve medo de usar quando desceu atrás do Matheus na Caça as Bruxas - lembrou. - Podia, mesmo errando, ter empurrado qualquer um daqueles lá para longe.

— Mas como eu poderia, é claro que não usei - começou, prestes a explicar o porquê. - Se eu tivesse, poderia ter mat...

— Também não usou em mim quando Ruína pediu - cortou, mais uma vez lembrando a garota. Fez a volta nela, voltou a olhar a floresta.

— Pelo mesmo motivo! Eu podia te destroçar a qualquer momento com isso - puxou o cajado. Como sempre fazia, Inara encarou-o com certa admiração. - Nunca ia disparar contra você.

— Mas Ruína estava na sala, e ela queria te testar. Acha mesmo que deixaria você me acertar com algo que podia me matar? - perguntou.

Aurora ponderou. A menina tinha um ponto, apesar de achar que não podia deixar de acreditar em nada vindo de Ruína. Se a ameaça era real, então o resto deveria ser.

— Não sei, com ela nunca dá pra saber nada - retrucou.

— Eu não acho que deixaria. E não acho que você me mataria se tentasse - disse, cruzando os braços ante a ela, negando-se a qualquer discordância.

— Não dá pra saber, eu não controlo - respondeu.

Depois, deixou-se ficar cabisbaixa. Voltou ao cogumelo, e agora parecia uma palma aberta, cheia de ranhuras, afundando, marcando a presença.

— Podemos tentar - rebateu, tomando mais um pouco de distância. Aurora ergueu o olhar, viu que a menina havia sacado a própria ferramenta, com as penas pendendo da base, como penduricalhos. - Dispara contra mim.

— O quê!? Nem pensar - respondeu Aurora, gritando.

O cajado em sua mão tremeu, e viu que mais uma vez era devido ao seu próprio corpo.

— Pode lançar. Eu estou segura - anunciou, apontando a arma na direção da amiga.

Inara surtara. Nada em sua expressão denunciava que estava mentindo. Realmente gostaria que Aurora disparasse. Talvez estivesse ensandecida graças aos Ninfusgos, e sua presença apaziguadora era, na verdade, um jato de loucura que tomava conta da pessoa. Louca ou não, a garota continuou em sua posição, sem mover-se um músculo sequer, o que fez Aurora ponderar sobre a situação, mas abandonar qualquer ideia logo em seguida.

— Não dá, Inara - negou com a cabeça. - É muito perigoso.

— Só se estiver com muito medo. Tenta - rebateu.

Aurora diria que a menina não sabia o que estava pedindo, mas tinha certeza que a amiga estava ciente. Presenciara cada explosão, cada disparo torto, cada raio vermelho sendo cuspido da arma. Podia matá-la, ali e agora. Contudo, mesmo sabendo tudo isso, continuava pedindo. Por quê?

— Confia em mim - Inara sustentou.

A garota concordou com a cabeça, sem saber afirmar que confiava. Na realidade, ainda estava impressionada pelo pedido da amiga, e pensando aonde havia chegado para ouvir isso dela. E, pensando também, que se ouvia dela, Inara estava certa do que falava.

Demorou até que tomasse consciência fora de seus pensamentos. Estava focada na posição de pernas esparsadas, nos braços estendidos à frente segurando a madeira, e no olhar determinado debaixo da franja. Naquela postura, não havia medo. E se o que estivesse dizendo estava certo, na sua, também não deveria existir.

Aurora afastou os pés, levada a fazer o que a amiga pedia, mas ainda receosa. O braço se ergueu, trêmulo, segurando o Orabutã com uma força que podia quebrá-lo. A fragilidade da ferramenta suportou o aperto, e sedenta, foi mirada na direção oposta, logo à frente, cobrindo a passagem onde Inara apontara o Ninfusgo.

Respirou fundo, a palavra que denominava o feitiço saltando na frente dos seus olhos, pedindo a vocalização. Ela demorou um pouco, tirando o olhar das ranhuras vermelho-sangue do cajado e levando à amiga. Os olhos a transmitiam confiança, pediam pelo feito. Ela podia fazer. Não a machucaria. Nunca a feriria.

O ar sumiu de seus pulmões, a boca abriu, os olhos fecharam.

— Expelliarmus - sussurrou, apenas para si.

De olhos fechados, perdeu um segundo da ação. Foi só quando abriu um deles que viu um lampejo avermelhado ser cuspido do cajado, atingir a amiga, e apenas lançar sua arma para longe. Um desarme perfeito.

Eu consegui.

Inara sorriu um pouco, ainda que sem muita expressividade. Recolheu o cajado caído, depois virou-se para a menina, que encarava sua ferramenta com admiração.

— O que mudou? - perguntou, se aproximando.

— Eu... - diria que não sabia, mas teve certeza assim que pensou sobre. - é como se tivesse escolhido fazer funcionar. Como se eu entendesse exatamente o que eu queria fazer e como, e... acho que o cajado entendeu. Foi como mandar uma mensagem perfeita, que eu não conseguia antes por que não sabia o quê dizer.

Inara ergueu as sobrancelhas, não esperando tamanha complexidade.

— Dessa vez, eu tinha certeza do que ia acontecer - falou, confirmando a hipótese do medo que tinha adquirido ao usar o cajado.

Agora, a amiga a encarava com algo além de orgulho. Tinha uma questão por trás daqueles olhos escuros, uma questão que não seria levantada no momento, porém que lhe trazia um certo desgosto. Aurora vacilou seu sorriso nela por um instante, mas em seguida, pensou no que podia fazer com aquilo. E a resposta imediata veio em sua mente, e todos os passos seguintes vieram em consequência.

— Inara, eu preciso fazer uma coisa - disse, guardando o cajado no bolso de trás, sabendo que poderia usá-lo caso precisasse. - Me espera aqui, prometo que volto para nossos estudos - anunciou, se afastando.

A menina não perguntou o que era, e então, ela partiu. Acelerou por entre os troncos, atravessou folhagens, saltou pedras, até alcançar a área do castelo. Seguiu por ela, ainda arfando na corrida, embarcando nas escadas que aliviaram o cansaço por um instante. Subiu por lá até encontrar a torre que sempre ia às quartas, quintas e sextas.

Sabia que o que precisava estaria lá naquele domingo, e não refreou-se em escalar cada degrau da espiral com a determinação sacudindo seu peito. Atravessou os corredores, os banheiros, todos escavados em pedra, sentindo falta dos alunos que transitavam pelo local em sua rotina típica. Por fim, encontrou a sala que precisava, entrou, escancarando a porta. A madeira arrebentou no batente, num baque surdo.

A pessoa atrás da mesa sacudiu os cabelos ruivos ao levantar-se de susto. O vestido azul-claro pareceu se eriçar, como um baiacu avistando perigo. Aurora ignorou a reação, focando no que precisava focar, empunhando o cajado e apontando para a mesa. A mulher escancarou o olhar, e num súbito movimento, estendeu a mão para pedir que a menina interrompesse a ação. Sabia o que vinha depois que Orabutã estava nas mãos da garota.

Mas não daquela vez.

A mira foi perfeita, e o feitiço seguinte, também. Uma faísca vermelha agitou a mesa, explodiu em mais três partículas, pulverizando a sala com o próximo estouro dos novos pontos de luz. Continuaram por um momento, até apagarem quando a mulher pôs um pergaminho sobre a magia. Periculum, ou o Feitiço de Alerta, servia para localização em situações de perigo e era posto como objeto de duelo apenas para que alunos do primeiro ano não se ferissem. Não era dotada de elementos inflamáveis, e portanto, nenhum projeto da mulher foi ferido. Contudo, a audácia da entrada, a produção do feitiço e a expressão orgulhosa no rosto de Aurora era suficiente para enlouquecer Ruína.

Entretanto, a moça devolveu a mão desconcertada ao vestido, os olhos encararam os pergaminhos com certa admiração. Depois, o mesmo sentimento pairou sobre Aurora, o que veio acompanhado de um surpreendente elogio.

— Muito bem, srta. Magalhães.

A menina afirmou com a cabeça, fez uma reverência, deixou a sala, sentindo os olhos a seguirem, mas com a sensação de que podia conquistar o mundo.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Aurora de Castelobruxo - A Harry Potter Story" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.