Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 2
Vertigem I


Notas iniciais do capítulo

Olá novamente!

Talvez seja hora de determinar um intervalo para as atualizações dessa fic: imagino que ela seja atualizada de forma semanal, com algumas exceções. De qualquer forma, peço desculpas por não ter dado esse adendo antes.

Enfim, boa leitura!



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I

Você ainda está aí? Se sim, me diga: você ouviu o mesmo que eu?

Eu entendo que a essa altura do campeonato deva estar imaginando que eu sou louco. Apesar de simplista, não é um pensamento de todo errôneo. Mas não nos atentemos a isso.

Vamos focar na parte em que Luana está na minha sala e eu nunca vi o seu rosto em toda a minha vida letiva. Vamos, ainda não é hora de sermos tomados pelo alarde. Ora, sequer converso com as pessoas dessa sala — ela é só mais uma dentre a multidão que eu durante o ano inteiro ignorei... certo?

De qualquer forma, seu rosto me intriga. É pálido, sardento. Ela tem olhos claros acinzentados, cabelos longos, negros, presos num rabo de cavalo alto, que deixa cair alguns fios, tornando sua face mais harmônica.

Não tarda que ela sorria um sorriso simples e carregando uma ingenuidade, que eu diria que é fortemente simulada. Sua leitura é fluída, acompanhada de uma voz que se contradiz entre uma vivacidade imponente e uma doçura disfarçadamente — como dito antes – ingênua.

Qualquer detalhe é importante, caro amigo, quando se trata dessa garota. Quando se vive em total isolamento, os cubículos alheios se tornam completamente identificáveis. E seu cubículo é fechado, opaco.

— Muito obrigado, Luanna — a voz de Anistia irrompe de repente, em verdade que eu sequer me atentei as palavras proferidas pela moça — agora, vamos ver — as pessoas ao meu redor se tornam borrões tão logo as vislumbro.

— Vicente. Algum problema?

Nunca tinha me sentido tão exposto, desde meu ingresso naquela turma.

— Vicente? — Talvez, desde que eu entrei naquela escola, poucos puderam ver meus olhos. E no momento, minhas pupilas tremem. O lobo ...

— Vicente Filho. Qual o problema aqui?

E, novamente, um choque térmico. De volta para o cubículo. Eu olho o professor, mas vê-lo de fato se torna um problema. Tento um sorriso, mas sabe-se lá o que meu rosto se tornou nessa tentativa. Percebo, sem muitas dificuldades, que todos olham para mim.

Preciso me livrar o mais breve disso, penso.

— Na verdade — eu digo, a voz trêmula — estou com uma tontura. Posso ir ao banheiro?

Ouço um risinho ou outro em algum canto da sala, mas ignoro, ainda mais sobre a aprovação de Anistia. Menos mal. Levanto-me e fito a agenda por questão de segundos. Este maldito lobo a me fitar parece pular das páginas, os rabiscos que o compõem parecem possuir vida e vibração. Decido levar a agenda, detalhe que dificilmente vão notar, por tê-la colocado abaixo do manto.

Pronto para deixar a sala, me volto uma última vez à Luana, disfarçadamente. Ela ainda me encara, e a maneira pela qual o faz me causa incômodo. Talvez tenha se ofendido em ter sua atenção desviada, mesmo que eu obviamente não tenha pedido isso.

Enquanto todos os rostos ao meu redor se tornam um único retrospecto, e a voz de Anistia volta a irromper, abandono a sala, cabisbaixo, e simulando desordem em meus passos — afinal de contas, meu pretexto era uma suposta vertigem.

Quando finalmente saio e encontro o corredor vazio, sou tomado por uma sensação análoga a de tomar ar puro depois de tempos sufocando. Com a agenda em mãos, me volto às escadas, tencionando o caminho do banheiro. Minha pretensão no momento é a de passar o maior tempo possível lá dentro investigando o livreto, com aquele impetuoso lobo que eu sei que está lá, mesmo que por baixo das folhas, e limitado ao grafite rudimentar.

II

Quando finalmente começo a passar pelos degraus da escada, sinto a presença familiar logo atrás de mim. Porém, só encerro meus passos ao ouvir de sua voz:

— Vince, moedas de chocolate não compram barras de ouro.

Luana. Nitidamente aquela voz, já aqui descrita, logo atrás de mim, e a mim direcionada. Ou talvez não? No momento em que me volto, trêmulo, na direção da garota, toda a dúvida cessa — ela olha diretamente para mim. Mas o que diabos tinha dito?

— Vince — disse com mais veemência, com seus olhos acinzentados a me fitarem firmemente — moedas de chocolate não compram barras de ouro.

— O que — depois de segundos a encarando, provavelmente com a face mais enfadonha possível, consigo formular a frase, ou ao menos balbuciá-la — isso quer dizer?

E para a minha surpresa, a garota abre um sorriso quase que aliviada. Vai em minha direção velozmente, e ao chegar mais perto, abre seus braços, no que recuo instintivamente, quase que tropeçando nos degraus. Ela para na minha frente.

— O que foi? — seu sorriso se desfaz de imediato. Minha expressão, em meu silêncio, provavelmente é a de mais absurda confusão. Os olhos estão arregalados e as pupilas são como bolas de tênis — você não encontrou algo?

— Eu... Eu não sei quem é você.

— Para de ser bobo! — Nervosa, em ambos os sentidos da palavra, Luana me esbofeteia no ombro — você queria que eu viesse atrás de você, não queria? Eu estou aqui, Vince! Como você se sente?

Como eu me sinto? No que isso muda? Penso de imediato, um pouco afetado pela súbita, porém nem tão significativa agressão da garota.

— Moça... Você deve estar me confundindo. Eu...

— Para de besteira, moleque — exclamou abruptamente — eu posso ver no seu olhar... que você... se lembra...

Suas palavras começam a perder força. Ela desvia seu olhar conforme resmunga negações consigo mesma, tendo uma espécie de ataque histérico. Aquilo estava me deixando verdadeiramente desconfortável.

— É. Como pode ver, eu não sou quem você está pensando, perdão —cocei minha cabeça sem que ela estivesse coçando de fato, apenas para ter o que fazer com minhas mãos, pendentes e trêmulas — bem... a gente se vê por aí.

Quando me virei, senti meu manto ser fortemente agarrado por trás. Se por acaso te devo alguma descrição física minha, amigo, devo dizer-lhe que sou abaixo da média em relação a musculatura, o típico franzino. Luana, se apropriando desta característica, conseguiu tornar meu corpo de volta. E tudo durou questão de segundos: eu vi aqueles dois fantasmas acinzentados que eram seus olhos se tornarem um retrospecto, um peão, assim como suas sardas rosáceas no seu rosto como papel. Seu perfume indecifrável preencheu minhas narinas quando, de repente, eu senti seus braços envolverem os meus.

Ela me abraçava, tremendo tanto quanto eu, mas eu sabia que seus olhos não estavam tão arregalados quanto os meus.

— Eu sinto muito, Vince — lembra-se de quando mencionei sobre a ingenuidade simulada de sua voz? Bem, dessa vez ela estava lá, só que de forma honesta e genuína, sabe-se lá o porquê — eu realmente sinto muito. Eu... Eu sinto muito pelo que fizeram contigo. Eu estava engasgada com essas palavras e...

E eu, amigo, me desfiz de seu abraço de pronto. Eu não suportava mais aquilo. Ela era louca, só podia ser. Porém, muito me envergonho em dizer-lhe, mas, uma parte de mim acreditava na brandura de suas palavras, via nexo naquilo tudo que ela dizia, ma não é isso que faz um louco ser o que é? A certeza infundada em suas próprias palavras — essa, que afinal todos nós possuímos? Talvez Luana fosse alguma amiga de infância, da qual não possuo lembranças. Sim! A plausibilidade disso me aproximava da garota, de forma que não a evitei no começo. Ouvi, de frente, suas próximas palavras:

— Olha — choramingou, quase que arrependida — isso vai parecer estranho para você, mas, nós precisamos sair daqui juntos. Eu quero te mostrar alguma coisa.

— Como você saiu da sala?

— Não desconverse! Eu me enganei, sim, você ainda não se lembrou, mas... agora que já estamos aqui, isso precisa ser feito. Se você não vai se lembrar por bem, vai ter que lembrar por...

— Me lembrei do quê?

— Ah, garoto... você só vai saber se confiar em mim.

Bem, isso deve estar ficando enfadonho até para você, caro amigo. Então, saiba que eu tentei por muito tempo me desviar de sua conversa absurda, mas ela teimava naquela insanidade abstrata de você não se lembra; eu pensei que tinha te trazido de volta; eu pensei que você tinha mandado um sinal para mim; vamos sair daqui; confie em mim.

Saiba também que, depois de perceber que estávamos há muito tempo parados ali no meio do caminho (posição arriscada) a garota tentava me convencer, de alguma forma, a ir junto a ela ao refeitório, que naquele horário encontrava-se vazio, senão pelos inspetores, que seriam sim um problema, afinal, estávamos em horário de aula. Tínhamos sorte em não termos sido pegos jogando conversa fora. Protestei em relação a isso, no que ela disse:

— Sua agenda irá sanar o problema. Você só precisa forjar um atestado médico.

Fitei-a sem nada dizer, apenas para ver se ela sentia no ar o quão absurdo tinha sido sua afirmação anterior.

— Certo... Você não lembra. Vince... Olha — tentou pegar em minhas mãos, que foram quase que repelidas pelo seu toque — tudo bem, tudo bem. Você precisa confiar em mim, eu já lhe disse.

— Repetir isso não vai adiantar. Eu preciso voltar para a sa...

— Você precisa ter notado que essa sua agenda é uma das coisas que não é normal em sua vida. Você deveria notar mais dessas coisas, seu — a garota se conteve, franzindo o cenho e cerrando os olhos no processo — Desculpa. Eu não pensei em te ofender.

— Pensou.

— Sim, eu pensei, me desculpa! Argh! Por favor, Vince. Se você fizer o que eu te peço, eu asseguro que sua agenda vai conseguir forjar um atestado médico...

— Luana — disse seu nome a ela pela primeira vez, e me surpreendi com como ele soava, mesmo no tom corretivo em que o proferi — isso foi até um pouco engraçadinho. Mas chega. Eu não posso perder mais tempo.

Eu ultrapassei, então, uma Luana paralisada e com um tocante fracasso estampado em face, retornando pelo mesmo caminho. Pensei que o lobo e todo o restante da agenda poderia aguardar minha análise, que havia sido frustrada por toda aquela maluquice.

— Ou, talvez, eu possa te contar mais sobre o lobo em sua agenda — ela projetou a voz em minha direção, e as palavras vieram como que dilacerando meus tímpanos.

 


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Comentem suas impressões!

Obrigado pela leitura, e até o próximo. Arrivederci!



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