Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 1
Parto


Notas iniciais do capítulo

Não há muito o que dizer aqui.
Boa leitura!



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I

Olá, caro amigo.

Faz questão de minutos que estou acordado, e já te vejo por aqui. Eu confesso, o seu parto foi algo tanto quanto desagradável – como todos eles costumam ser, no final das contas. Mas, veja, o pior já passou. Somos amigos a partir de agora. Como se sente? Em verdade, eu não posso te ver, mas sei que está aí. Deve ser interessante não possuir forma definida. Como é isso?

Só preciso me certificar de que podemos confiar um no outro. Sinto que coisas fatídicas acontecerão (ou melhor, continuarão acontecendo), e preciso que mais alguém tome conhecimento. E você está preparado para isso? Aliás, não perguntei se você está bem. Como vai?

...

Ah, olhe para mim. Falando com uma parede. Talvez você não consiga me ver. No momento eu me espreguiço. Vou em direção ao banheiro para escovar os dentes. Bem, é apenas um ritual matinal: não faz diferença a você, caro amigo.

Nosso colega de quarto, Jeong, não está aqui. Talvez já esteja no laboratório de informática. O rapaz é fissurado nessas coisas, entende? Hoje sequer temos aula.

Possivelmente meu nome lhe seja relevante. Vicente Filho. Nutro certo desdém por ele, então prefiro que me chamem de Vince. Peço que faça o mesmo.

Vamos: "o...lá...Vin...ce...!"

...

Não? Você é realmente difícil. Mas estou acostumado. Jeong é um cara reservado, e mesmo eu não costumo me comunicar com as pessoas. Aliás, eis um tópico interessante: ao contrário de Jeong, minha situação é clínica. Desde os meus onze anos de idade eu tomo remédios para conter minha ansiedade social, e por vezes tenho crises depressivas. Mas não se preocupe: você não irá sofrer com isso. Você está bem seguro aí, dentro da minha cabeça.

De qualquer forma, talvez você queira saber... talvez você queira saber o porquê da sua criação, não é?

...

Facilitaria muito se me dissesse alguma coisa. Mas eu vou supor afirmativamente. Dissertarei tudo para você; e no final, talvez entenda que eu preciso muito de você. Preciso muito que me escute.
Então, por favor, continue na linha.

Como já é claro como uma lagoa que reflete o céu, não sou um espécime que faz muitos amigos, mas as coisas começaram a acontecer tão logo se construía uma amizade.
E pelo instituto, se esgueirava um monstro.

II

“Acorda, tua hora é essa.”

Os bipes ansiosos do despertador me despertaram adrede e me cutucaram o subconsciente com este cruel imperativo.

Espreguiço-me. Água no rosto; pasta na escova; uniforme; livros, caderno, mochila. Jeong. Seus cachos estavam dispostos pelo travesseiro como um emaranhado de cobras de um negro profundo; da sua boca um rio de saliva desaguava. O rapaz se encontrava longe de acordar. Movendo o seu ombro gentilmente, tento despertá-lo.

— Vamos – digo, simulando imponência – hoje não é dia para se atrasar.

E aos poucos o Frankenstein franzino que se dispunha em minha frente ganhava vida. Balbuciou coisa ou outra, e achei justo esperá-lo enquanto se arrumava. Faltavam cinco minutos para as 6h40 – horário de obrigatória entrada para todos os alunos, sem admissão de atrasos.

— Tive um sonho estranho contigo, cara – lançou Jeong, com sua voz ainda embriagada de sono – éramos eu, você e Luana.

— Luana? – rebati.

— Sim. Estávamos enfrentando um lobo — descrevia ele, conforme se arrumava, numa lentidão idílica — mas era estranho... sua pele, ela era negra como uma sombra. E usava uma espécie de focinheira branca, branca feito osso... dois grandes buracos tinham ali... dois olhos vermelhos, brilhantes.

Fiquei em silêncio, sem prestar muita atenção na descrição da criatura. Estava mais preocupado com o tempo, que corria. Agora nos restavam três minutos.

— E era grande. Quase um cavalo, de tão grande.

— Você está pronto? — cortei-o, talvez soando mais ríspido do que gostaria – Estamos um pouco atrasados. Você pode contar no caminho o resto do sonho — Ah, sim, certo, foi mal.

Trajando o típico uniforme de Sempiternum — uma camiseta branca com o broche do colégio, sob sua típica manta enegrecida — deixamos o dormitório e partimos em direção do colégio em si: um basto casarão de rígida e escura madeira.

Um minuto. Jeong continuava falando do estranho sonho com o lobo. Por vezes citava a tal da Luana, que eu honestamente não recordava de tê-la visto em algum momento.

No sonho, enfrentávamos bravamente a criatura, que havia feito uma carnificina pelo colégio.  Eu a enfeitiçava com um poderoso cajado, enquanto ele a cutucava com um tridente, e ‘Luana’ lançava flechas e mais flechas com uma imponente besta.

Durante o caminho inteiro apenas refleti o quanto Jeong estava fissurado em RPG, sem dizer uma letra em relação a isso.

Deparamo-nos com as portas ainda abertas, e ingressamos, acessando de pronto o belíssimo salão.

Caro amigo, como eu gostaria que pudesse enxergar a beleza do saguão!

Um majestoso lustre pende sobre o recinto, que tem um piso de mármore reluzente com belíssimos desenhos de losangos em cores quentes. O andar de cima é acessível graças a duas largas escadas que foram dispostas de forma completamente simétrica, em paredes opostas. Ainda embaixo, bem ao centro, vários assentos macios formam um semicírculo de frente para a parede, que ostenta uma enorme televisão — que por motivos óbvios jaz desligada a esse horário matutino — abaixo de não tão menor relógio.

Como estudamos em salas distintas, nos despedimos antes de seguirmos escadas opostas, não sem antes Jeong me abordar.

— Você poderia encontrar algum livro sobre significado de sonhos ou coisa assim? Eu fiquei realmente curioso com aquele lobo.

O pedido me chamou a atenção.

— Não pode pesquisar na internet durante a aula em laboratório? — No que o rapaz ficou em silêncio, e tão logo desviou o olhar, começou a rir nervosamente.

— Nem sempre podemos. Não quero receber outra advertência.

Sobressaltei-me ao ouvir o som do sino. Disse a Jeong que sim, assim que tivesse acesso à biblioteca iria procurar o tal do livro, e me adiantei em direção a sala.

III

Professor Anistia lançou um comentário ou outro assim que me viu chegar em cima da hora à sala, mas nada além disso. Ah, quanto ao seu nome, eu também não entendo. Sobrenomes são curiosos – lembro-me do começo do ano, quando ele disse que não, esse nome realmente não tem nada a ver com guerra, política ou algo do gênero. Apenas algum louco em sua árvore genealógica pensou que seria uma boa ideia alguém se chamar ‘anistia’. Enquanto isso despertou o riso de toda a sala, o que me tocou a curiosidade foi o seu tom de voz. Ele estava claramente mentindo.

Era uma aula de literatura. Interesso-me sim pelo assunto, mas não da maneira como Seu Anistia, um homem já de idade com manchas em sua careca e uma barba branca respeitável, trata o assunto. Prefiro abrir o livro e lê-lo sozinho, com sua voz de pano de fundo, porém naquele dia em específico, eu resolvi dar uma olhada em minha agenda...

Ah, sim, sobre a agenda.

Devo-lhe alguma explicação. Ingressei no colégio com poucas coisas valiosas, contudo por alguma razão, cuido dessa agenda como se nela contivesse algum licor sagrado. Tenho a impressão que ela nem sempre foi minha. Nela, há de tudo, menos anotações — pelo menos não anotações compreensíveis. Nenhuma está em português. Isso sem contar algumas ilustrações curiosas. Por isso, vez ou outra, gosto de tateá-la e ver o que encontro.

— Os poetas dessa época se ocupavam em retratar a angústia da guerra e o desejo de dias melhores. Os invasores que passaram a assolar o mundo eram ilustradas exageradamente, para surtir no público melhores efeitos —Anistia declamava, enquanto eu folheava calmamente as páginas.

Mas toda a calma se esvaiu de repente: uma ilustração surge de pronto em meu campo de visão, e a encaro, incrédulo.

— Para isso, leremos esse texto, presente no Livro 2, página 140. Quem se habilita a iniciar a leitura compartilhada?

O que foi desenhado na página “10 de fevereiro”, apenas em grafite preto e branco, era um lobo. Um lobo que ocupava duas páginas de desenho. Era todo pintado de negro, enquanto seu rosto continha apenas uma focinheira branca com dois olhos vermelhos.

"Jeong?”, pensei de imediato.

— Podemos começar com você, senhorita Luana? – disse o Professor Anistia, me puxando de pronto do meu transe.

Meus olhos se arregalaram, e pela primeira vez, vi o rosto de Luana.


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Notas finais do capítulo

Esse foi realmente um parto. E ai, o que acharam? Devo frisar novamente a importância dos vossos comentários para que eu possa melhorar a Fic.

Enfim, os vejo no próximo capítulo. Arrivederci!



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