Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 11
Obliteração I


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

Manibus me disse que eles se parecem com grandes e terríveis insetos. Mas que o tamanho não é, de forma alguma, mérito de poder. Os menores, ele disse, são mais espertos e poderosos que as enormes bestas, que são quase que animais de estimação, cuja força não deixa de ser aterradora.

Que eles nos conhecem mais do que os conhecemos. Os primeiros ataques foram inteiramente surpreendentes e levaram pessoa por pessoa, cidade por cidade... nação por nação. Os lugares remanescentes, que se tornaram resistências, mantêm raro contato entre si. E nenhuma força bélica adiantou. Os var'croz eram superiores, com poderosos feixes de luz que eram precisos e nocivos.

A única vantagem que temos em relação aos vermes, ele disse, é a nossa familiaridade com a magia. Com relativa exceção do Lobo — que, como você já deve ter imaginado, também não tem a aparência ordinária de um var’croz — nenhum deles sabe usar a magia com proficiência. Por isso, as resistências são centros de estudo da magia: Institutos, Sociedades e afins. E ele estima que, atualmente, haja cerca de quinze delas no mundo todo.

Sei que estou usando a primeira pessoa do plural aqui... muito embora eu não me sinta parte desse mundo ainda.

É madrugada. O lugar todo é mal iluminado por globos de luz flutuando como grandes vagalumes, uma espécie de planície muito bem cercada. Chutaria que é aqui que os alunos da Resistência estudam educação física.

Estou olhando para uma placa de madeira de cerca de um metro e oitenta com um var’croz desenhado em vermelho. Ele muito se assemelha a uma espécie de tortuoso louva-deus. 

O professor está ao meu lado. Ele segura firmemente meu ombro, o que me causa certa dor; diz algo que não ouço muito bem, enquanto aponta para a placa. Peço que ele fale mais alto. Não adianta muita coisa.

— Eu recomendo — digo, sem nem levantar meu rosto em sua direção — que você troque de lado. Sabe, estou com um curativo tampando meu ouvido. E eu não sei o que você pretende..., mas isso é só uma placa de madeira, não importa o que diga.

Ele produz um estalo com a boca, e se prostra do meu lado esquerdo. Eu permaneço imóvel, fitando o desenho.

— Como você acha que os resistentes treinam? Essas placas de madeira ajudam a ter uma visualização...

— Corta esse papo, professor — ouço a voz inconfundível de Luana atrás de mim, fosca, na medida que uma voz pode ser fosca, e se aproximando — você não nos acordou a essa hora para ver o Vince botando fogo em madeira, certo?

Quando me viro, vejo-a, como se o sequestro nunca tivesse ocorrido. Ela sorri para mim, e em seguida me abraça. Reajo mais prontamente ao gesto, mesmo que meu corpo todo trema; o motivo eu não preciso te lembrar. Jeong está ao seu lado, e sua mão trêmula aperta a minha.

— Vocês... vocês estão bem?

— Nós é que devíamos te perguntar. Cara, quem é que faria uma coisa dessas? Eu não sei se sinto orgulho ou preocupação. Aquilo foi louco demais. O que vai acontecer com a sua orelha?

O excesso de informações me assusta um pouco, mas não demoro a responder:

— Bem... só preciso esperar cicatrizar, vai ficar tudo bem, eu espero. Eu só tenho que...

— Eu realmente gostaria de assisti-los conversar, só que... tempo é algo que nos falta — depois da interrupção de Manibus, ele derruba a placa de madeira no chão, virando-a. Do interior do seu sobretudo, ele retira uma espessa caneta e desenha, com precisão, na superfície da madeira, a silhueta de um corpo humano. Olho para Jeong, e ele aparentemente também não sabe do que se trata.

— Nós temos pouco tempo — o professor repete — e Vince, você precisa aprender a canalizar melhor sua magia. Pelo que Jeong e Lunna me contaram, o que você fez foi incrível, mas infelizmente tenho que crer que foi apenas sorte. Queria ter te ensinado mais no episódio da árvore, porém as coisas saíram um pouco do combinado. Então, a hora é agora.

Apontando para cada canto daquele corpo sinuoso desenhado, um Bernardo Manibus totalmente “professor” começa a discursar. É o seu show privado, e ele deleita cada pausa para olhar em minha direção, como se injetasse as informações em doses cavalares.

— Você deve saber que o seu corpo é um mero canalizador. A magia é uma única energia insípida e disforme, que tomará diferentes formas de acordo do manuseio do mago. O seu temperamento explosivo, a princípio, resultou numa das formas mais rudimentares possíveis da magia: o fogo.

Quando Manibus diz temperamento explosivo, eu tenho não um lapso de memória, mas algo muito próximo disso, como se eu estivesse me esquecendo de algo muito óbvio.

— No entanto, mesmo o fogo pode ser moldado. Isso vai depender da intensidade da energia que você vai descarregar... é como controlar sua respiração.

Percebo que Luana e Jeong estão se entreolhando, aos bocejos. Devem ter ouvido muito daquela conversa... e ela, de certa forma, não me soa como novidade, uma vez que já experimentara a magia de forma empírica.

— E essa energia, se liberada de maneira tão sutil, quase imperceptível, consegue alterar a natureza sem deixar rastros. É assim que se pode alterar e manipular a mente humana.

— Quer que eu faça hipnose, agora? — O comentário foi honesto, mas arrancou risadas dos dois ao meu lado. Me permiti rir ao mesmo tempo.

— Não. Está longe demais do seu caráter fazer coisas do tipo. Eu só digo isso para você aprender a se defender, como por exemplo...

E tão logo suas palavras saem de sua boca, sinto um ardor extremo acometer minha cabeça. A dor em meu ouvido fantasma se torna ainda mais aguda, como se eu ouvisse uma interferência de sinal absurdamente alta, que ressoa para dentro do meu crânio. Caio de joelhos, com o corpo inteiramente curvado sobre os pés de Manibus.

Percebo que os outros dois se precipitam — Jeong do meu lado, me dizendo algo que eu não consigo distinguir, sendo sua voz apenas uma enorme massa incompreensível se processando no meu cérebro. E quanto a Luana...

Luana me surpreende mais uma vez. Com um gesto preciso que projeta para frente a palma de sua mão, um impulso de ar surge entre ela e o peito de Bernardo, o jogando para trás. Sinto a dor em minha cabeça suavizar por uma fração de segundos quando o professor dá uma pirueta no ar, caindo de costas no chão; não tarda e ele se levanta, e só consigo vê-lo correr em direção a garota, enfurecido, quando um flash de luz forte demais para manter meus olhos abertos parte de suas mãos.

II

— O que achou de Jeong? — Rebeca pergunta, com um sorriso que me soa intensamente cínico. Retribuo com um olhar de desdém que não sai de minha face tão cedo. E claro, estou trêmulo.

— Vince... uma hora ou outra você tem que se acostumar com a ideia de dividir o seu quarto. Você não pode estar fora da política da escola para sempre. Anistia quer que...

— Desde quando a vontade de Anistia interfere na minha terapia?

— Ele é, acima de tudo, o diretor dessa escola, Vince — ela replica, o olhar dando força ao seu argumento — e tem respeitado sua condição até então. Eu não posso simplesmente voltar atrás e pedir para que retirem Jeong do seu dormitório. E em termos do seu tratamento, também seria retroceder.

— Não, não seria retroceder — eu levanto, enfurecido, me curvando sobre a mesa que está entre a gente — porque eu não avancei em nada! Eu não consigo olhar no rosto daquele cara. Ele é... ele é arrogante! Acha que pode impor sua vontade!

— Por que você diz isso?

— Ele o tempo todo sai e entra do dormitório sem aviso... toda vez que a porta se abre, eu me sinto exposto. Eu nunca me acostumo com a ideia da existência desse cara, e toda vez que ele surge, eu fico agitado. Ele... ele também tem uma mania incômoda de colocar post-its nas paredes, ele...

— Desculpe, Vince, mas... nada disso faz sentido.

— Ele quase me obrigou a sair do dormitório da última vez!

— Ele te obrigou?

O tom de Rebeca me faz repensar. Me abstenho um pouco, sentando-me novamente, desconfortável.

— É..., não. Mas ele insistiu muito. Fiquei incomodado.

— Eu consigo compreender sua relutância, Vince, de verdade. Mas eu preciso enxergar certa compreensão vinda de você, também. Você está realmente progredindo, e precisa dar um próximo passo.  Jeong é sua chance de fazê-lo... por que não conversa com ele?

— É sério que você está me perguntando isso?

— Sim. E eu peço que me responda. Por que não conversa com Jeong?

Ela se aproxima, e seus malditos olhos me fazem relutar. Que merda! Entende, amigo? Mesmo diante dos meus porto-seguros, eu me sinto encurralado... não existe, nesse momento, lugar em que eu esteja seguro.

Então é hora de eu me assegurar no próprio incômodo. É hora de terminar de destruir a zona de conforto já esburacada. Eu, contrariado, tento fixar os olhos de Rebeca (tarefa árdua) e, dolorosamente, digo que irei fazer o esforço.

Ela segura a minha mão... eu prolongaria esse gesto por muito mais tempo.

...

Estou diante Jeong, de pé, encostado na porta. A minha decisão de falar com ele se esvaiu tão logo os seus olhos estranhados me encontraram. Ele está com o seu laptop no colo, curioso.

— Vince? Qual o problema?

Eu chego mais perto, indo em direção a minha cama — temos sorte de não ter um beliche. Quando tenciono me sentar, um Jeong de olhos arregalados e ofegante agarra o meu braço.

— Vince. Você tem que parar com isso.

— O... quê...

— Por favor, você tem que se concentrar... essa dor não é real... essa dor não é real, Vince! Ele...

III

— Ele está brincando com você! Isso...

E sua voz novamente parou de fazer sentido. Por quanto tempo fiquei fora de órbita? Você não prestou atenção? A minha mente está perdendo a coordenação, e ela permanece ativa, consciente.

Sinto minha garganta arder de tanto gritar. Ninguém nessa merda de Instituto está ouvindo? Manibus não podia escolher lugar melhor... no meio da quadra.

Minha visão ainda está turva. O professor conseguiu prejudicar um dos meus únicos sentidos que ainda funciona com maestria... embora eu não tenha sido o seu alvo principal. Aliás, sinto um fino rio de sangue escorrer pelo meu rosto, saindo da cicatriz por trás do curativo.

Ele e Luana são duas manchas se aproximando e se afastando no meu campo de visão, à trilha sonora da voz afoita de Jeong.

O meu corpo se aquece internamente. Quero fazer fogo, mas pontadas de dor surgem toda vez que o tento. Quando tento erguer um pouco minha cabeça, vejo que estou...

IV

Vejo que estou sentado, numa sala de aula vazia. Espere, o quê?

O som agudo em minha cabeça foi se modificando até se tornar o sino indicando a troca de horários. No entanto, o lugar todo está vazio. Não só a sala está, como não sinto nenhum movimento do lado de fora... nem ouço nada — muito embora isso não signifique mais tanta coisa.

Disposta na carteira em que estou sentado, está o Diário. Abro.

É a letra da Rebeca, lindamente sinuosa pela pressa. O que ela faz aqui não é um atestado... mas uma espécie de carta. Um arrepio acomete todo meu corpo quando leio.

Meu Vince,

Gostaria de poder mensurar todo meu desejo. Mas é impossível... qualquer um diria que isso é antiético, mas, meu querido, todos os nossos instintos vieram antes da ética. O amor veio antes de tudo isso... e o amor que eu senti em te ter como meu paciente precedeu todos os momentos em que eu te ajudei.

Queria te levar para casa quando te vi ruir em sua ansiedade. Eu queria poder te acalmar com mais facilidade... queria ter liberdade para fazê-lo. Eu sinto que você veio até mim pelo destino. E eu quero que isso se concretize. Eu quero que... não, amigo, eu não vou continuar lendo isso.

Com meus músculos pulsando de tremor, arremesso a agenda contra o quadro negro, junto a um berro, e tão logo ela colide, desmonta em uma grande explosão de folhas de papel que invadem a sala, cobrindo a tudo. O cheiro de papel velho logo toma todo o lugar, e nenhum objeto está imune de ser coberto pelo oceano infindável a minha frente... inclusive meu corpo, me impedindo de me locomover até a saída.

Quando penso que isso não vai ter fim, logo todos os papéis caem, deixando apenas o mar que cobre até os meus joelhos. Pego um dos papéis, e com o coração pulsante, leio:

Meu Vince,

Merda. Próximo.

Meu Vince,

Meu Vince,

Meu Vince,

Mas que merda!

Praticamente desabo em uma outra carteira, a boca tremeluzindo junto ao restante do corpo. Eis que meus olhos cansados fitam com maior atenção o quadro negro. Eu não poderia ter sido menos atento.

Bem-vindo à obliteração.

Sinto muito, amigo, mas existe outro detalhe que esqueci de mencionar: uma luz lilás invade a sala de aula junto a luz do sol, que permanece imóvel. Vou até a janela, a movimentação dificultada pelos papéis que já cobre inteiramente meus pés, e se meu coração já estava disparado e a respiração ofegante, ambos pararam diante da paisagem.

Uma enorme nave jaz caída, inclinada e ocupando quase todo o pátio. Suas janelas projetam a luz roxa que quase me cega quando olho em sua direção. O objeto mais parece uma grande torre impulsionada por motores, e ela é coberta por algum elemento que se assemelha à terra, apesar de avermelhada demais.

 Minha cabeça parece feita de concreto. Quando olho para o chão novamente, vejo que nos papéis não há mais cartas..., e sim o desenho de um homem alto e de cabelos completamente brancos, com uma roupa que muito se assemelha a um traje de espião, cobrindo inteiramente a sua boca.

Tão logo minhas mãos voltam a soltar chamas, e meu corpo consegue ignorar completamente a dor que sinto, um nome invade a minha cabeça:

Bamphlech.


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Notas finais do capítulo

Há! Achou que não ia terminar com um gancho? Achou errado, otário!
De qualquer forma, obrigado pela leitura.

Até sábado que vem, se o destino colaborar.
Arrivederci! o/



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